Olhando a mesa posta para o jantar, Norma sorriu com satisfação. Dagoberto telefonara avisando que, além do Dr. Morelli, levaria Armando para jantar.
Apesar de decorridos quase seis meses do casamento de Vera, não lhe passara despercebido, naquela festa, o interesse de Armando por Juliana. O rapaz recebia diploma em menos de um ano e representava um partido excelente para Juliana. O Berto apreciava bastante o Dr. Morelli, unir as famílias seria ideal.
Juliana era apagada, mas Armando era um rapaz bonito, elegante. Por certo saberia despertar o interesse nela. Afinal, que moça não se sentiria feliz com um partido desses?
Clóvis entrou em casa e, vendo-o, Norma foi logo dizendo:
– Se vai tomar banho antes do jantar, apresse-se. Teremos convidados esta noite.
Ele fez um gesto evasivo.
– Não sei ser poderei ficar. Tenho um compromisso.
– Nada disso. Você sabe que o jantar em família é sagrado. Depois você poderá sair.
– O doutor vai implicar. É melhor ir antes que ele chegue.
– Não diga isso. Ele se interessa por você, é isso.
– É só me ver pronto para sair, logo vai perguntando as notas, o que eu preciso estudar etc. Parece que adora jogar água no meu entusiasmo.
– Não fale assim de seu pai. Se você fosse disposto a estudar como é para se divertir, seria o primeiro da classe.
– Hiii!... Vou tomar banho. Depois, veremos.
Norma abanou a cabeça contrariada. A quem ele saíra? Quando ele voltou meia hora depois, não houve argumento que o impedisse de sair.
– Vou dar só uma volta, não demoro.
Norma suspirou. Sabia que ele só voltaria horas depois. Sentia falta de Vera. Era ela quem mais lhe dava atenção. Clóvis estava sempre desatento, e Juliana, embora cordata e bem na escola, não era comunicativa.
Às vezes ela se sentia muito só. Dagoberto, quando estava em casa, mergulhava nas revistas médicas, ou levava seus colegas para intermináveis conversas científicas.
Orgulhava-se do marido, respeitado e estimado por todos, mas as vezes sentia falta de algo mais que não sabia precisar.
Nesses momentos, sentia-se deprimida e solitária. Recriminava-se por isso. Afinal ela era uma ingrata. Tinha tudo quanto uma mulher poderia desejar. O que lhe faltava? Por que essa insatisfação e essa infelicidade?
Claro que ela dissimulava. Gostava de desempenhar o papel de esposa feliz, equilibrada.
No fundo, no fundo, diante de tanto sofrimento que havia no mundo, ela deveria dar graças a Deus pela sua vida feliz.
Quando se sentia assim, mergulhava mais e mais nos cuidados e deveres da família, interessando-se pelos pensamentos dos filhos, do marido, seus problemas, que se esquecia dos próprios, vivendo as alegrias e as tristezas dos seus entes queridos.
A dedicação ao lar – pensava ela – o devotamento, faziam-na esquecer a própria tristeza.
Quando Dagoberto chegou com os amigos, ela os recebeu com prazer. Enquanto conversavam na sala, mandou chamar Juliana. A moça cumprimentou-os com delicadeza.
O jantar decorreu agradável. Dr. Morelli observava Juliana furtivamente. Embora s e sentisse curioso de perguntar sobre as crises de sonambulismo dela, sabia que Dagoberto se aborrecia.
Durante aqueles meses, ele estudara o assunto e, se as causas do fenômeno não estavam suficientemente claras, pelo menos sabia que o fato existia e que nesse estado alterado, os sonâmbulos às vezes revelam conhecimentos e poderes que não possuíam na vida comum.
Parecia-lhe um estado próximo à hipnose, sem que houvesse um agente controlador. Sentia enorme curiosidade de falar sobre o assunto com Norma, mas não ousava.
Após o jantar, os três homens conversavam na sala de estar, e Juliana sentou-se no jardim, em seu banco preferido, aspirando gostosamente a brisa leve que passava.
Sentia-se fora de casa, gostava do ar livre, deixava-se ficar largo tempo, sentindo a vida ao seu redor, o contacto da brisa em sua pele, o cheiro das plantas, o brilho das estrelas.
– Posso fazer-lhe companhia?
Juliana sorriu.
– Claro.
Ele sentou-se a seu lado no banco.
– Você senta-se sempre aqui?
– Sim.
– É seu lugar predileto?
– Mais ou menos. Gosto do ar livre.
– Eu também, quando posso. A vida é tão absorvente, tão cheia de compromissos que nos esquecemos de gozar as delícias da Natureza.
Juliana fixou-o séria durante alguns instantes, depois perguntou:
– Por que está se tratando desse jeito?
Ele surpreendeu-se.
– Desse jeito como?
– Se obrigando a fazer mais do que gostaria.
– A carreira que escolhi é desgastante. Estou no último ano e desejo tornar-me um bom profissional.
Juliana sorriu com doçura.
– Se não cuidar bem de você, nunca chegará a cuidar bem dos outros.
– Você não compreende. Há muito que aprender. Um médico tem a vida, o ser humano nas mãos. Precisa conhecer cada vez mais.
– Um médico não é Deus. Embora possa ajudar as pessoas, o sopro da vida independe da sua vontade.
– Essa é uma batalha que nos cumpre vencer. Derrotar a morte é nosso objetivo.
– Isso é impossível. Valorizar a vida e trabalhar pela felicidade, pela saúde, pela alegria, é o mais importante. Porque quando chega a hora da mudança, a morte é a própria força das coisas que ninguém conseguirá derrotar.
Um arrepio percorreu o corpo de Armando. Alguma coisa em Juliana o emocionava.
– Nesse caso – disse – não haveria estímulo para o estudo, a dedicação, a ciência.
– Não falo contra os estudos nem contra a ciência. O que é preciso compreender é que se não enxergar a verdade, como é o processo da vida, o que há atrás do fato de nascer, crescer, morrer; você gastará toda sua energia de maneira inútil, no intelectualismo convencional, nas teorias, terminando frustrado e desiludido porque, no fim, terá perdido inúmeras batalhas onde a morte levou a melhor.
Ele admirou-se ainda mais.
– Você fala como uma pessoa experiente e que já conhece o que a maioria das pessoas ignora. No entanto, é quase uma menina, sequer viveu.
Juliana sorriu levemente, e seu rosto tornou-se mais expressivo quando disse:
– A sabedoria é mais velha do que a civilização. A verdade não tem idade. Ela apenas é.
– Você diz coisas estranhas. Como sabe o que é verdade?
– Não colocando regras nem fantasias na cabeça, a verdade aparece. È só não pensar, não julgar, apenas observar.
Armando sentia-se atraído por aquele rosto expressivo e belo, por aquelas palavras novas que o obrigavam a pensar, a questionar. Quis ir além.
– Seu pai é um bom médico. Vive estudando, dedica-se com esforço à profissão. É o que eu estou tentando fazer.
– Ele é esforçado. Faz exatamente o que tantos fazem e o que você quer fazer. Contudo, para mim, ele tenta apenas curar os sintomas do corpo, aquilo que parece ser, sem entender nada da alma, das suas feridas e das suas necessidades. Se quer ser um verdadeiro médico, procure as causas, os problemas emocionais que fizeram o corpo adoecer e quando as curar, será de forma definitiva. É preciso curar a causa, não os sintomas.
Armando abanou a cabeça.
– Claro que os problemas nervosos molestam a saúde, mas daí a afirmar que são causa de todas as doenças é loucura. Está provado cientificamente que micróbios, vírus, é que são os causadores de certas moléstias.
– Sim. Mas também está provado que eles se desenvolvem mais ou menos de acordo com o campo favorável. O que você sabe sobre imunidade? Por que alguns se contaminam com o contágio e outros não?
Armando olhava-a fascinado. Juliana falava parecendo não vê-lo, e seu rosto refletia uma alegria luminosa extraordinária.
– Acho que falei demais para uma primeira vez. Pense no que eu lhe disse. Observe. Não fique no academicismo. Vá além, experimente fatos, verifique, vivencie. Um dia falaremos melhor sobre isso. Lembre-se de que o bom médico desenvolve também a intuição e a observação que vão além das aparências.
Juliana suspirou e teve um ligeiro sobressalto. Armando ia falar, mas conteve-se. Ela passou a mão pelos olhos, depois disse:
– Deus do céu, acho que cochilei. Desculpe, não foi intencional.
Ele sorriu procurando dissimular a estupefação.
– Você não cochilou, não.
Ela sorriu.
– Você é gentil. Mas... você dizia que gosta do ar livre como eu.
– E também que estou me preparando para ser um médico tão bom quanto nossos pais. O que acha disso?
Juliana abanou a cabeça
– Não sei. De medicina não entendo nada.
Armando não insistiu. Ela lhe parecia sincera. Não se lembrava da conversa animada de momentos antes. Seria um caso de ausência? Não ocultou a curiosidade.
– O que deseja estudar quando terminar o colégio? Qual a carreira que deseja seguir?
– Não decidi. Para ser franca, sinto que em nossas escolas estudam coisas inadequadas e sem utilidade na vida prática. Ninguém pensa em aprender a valorizar a vida, ser feliz, aproveitar o momento presente para criar situações de alegria e beleza, alimentar a alma, viver melhor.
– Em um mundo como o nosso, esse é um sonho impossível.
– Não creio. A vida materializa nossos pensamentos. Conforme acreditamos, ela se torna.
– Nesse caso, todos seriam felizes. Não haveria sofrimento. Todos desejam a felicidade.
– Cultivando o medo, a falta de amor, egoísmo e a descrença. Não é esse o caminho. As pessoas querem, mas suas atitudes revelam o oposto. Para receber é preciso primeiro dar. Para atrair é preciso irradiar. Essa é a força da vida.
Armando olhava-a curioso.
– Onde aprendeu essa teoria?
– Está dentro de mim. Sinto que essa é a verdade. Não são teorias, são leis da Natureza, simplesmente acontecem.
– Você é diferente – considerou ele, olhando-a nos olhos como querendo ler o que ia no coração.
– Nem tanto. Eu apenas gosto de observar e de pensar.
– Suas idéias me surpreendem. Gostaria de conversar mais com você, de conhecê-la melhor. Posso vir visitá-la de vez em quando, ou quem sabe convidá-la par um passeio?
Juliana não gostava de aceitar convites de rapazes. Eles partiam para a conquista, e como ela não estava interessada, o passeio acabava sempre em discussão e aborrecimento.
Olhou para ele procurando descobrir suas intenções, mas seu rosto franco e agradável inspirava-lhe confiança. Apesar disso, respondeu:
– Se for para conversar, trocar idéias, terei prazer. Em todo caso, devo esclarecer que eu ainda não desejo envolvimento amoroso. Se é por amizade, pode me procurar.
A franqueza de Juliana o deixou um pouco encabulado. Apressou-se em dizer.
– Quanto a isso, não se preocupe. Não tenho intenção de namorá-la. Não pretendo um relacionamento sério com ninguém e, por certo, a amizade entre nossos pais impede uma atitude leviana.
Juliana sorriu levemente.
– Ótimo. Não gostaria de brigar com você.
– Por quê?
– Por que é inteligente e sabe manter uma boa conversa.
Continuaram conversando até que o Dr. Morelli acompanhado por Dagoberto e Norma apareceram para as despedidas.
Norma sentia-se feliz, Juliana nunca dera tanta atenção a um rapaz, conversando durante tanto tempo. Talvez pudesse sonhar com um futuro casamento. O Dr. Morelli mal encobria a curiosidade. No carro, quando voltavam para casa, perguntou:
– E então?
– Pai, você tem estudado o sonambulismo. Pode um sonâmbulo ter ausências?
– Perda de consciência, desmaio?
– Não. De repente falar uma porção de coisas e em seguida esquecer tudo, como se nada houvesse acontecido e voltar a um assunto anterior?
– Não sei. Explique melhor. O que aconteceu?
Armando relatou tudo ao pai, terminando:
– Ela não só esqueceu como disse que ignorava tudo sobre medicina. E o mais estranho foi que ela pareceu-me normal todo o tempo. Eu não saberia precisar o momento em que ela mudou, se é que aconteceu. – É notável. O sonâmbulo, quando entra nesse estado, fala sobre coisas que desconhece em seu estado de vigília, revela conhecimentos os mais diversos, amplia seu nível de instrução.
– Mas ela não entrou em um estado diferenciado. Conversamos naturalmente. Só percebi quando ela bocejou e afirmou que havia cochilado, o que não aconteceu.
Morelli entusiasmou-se.
– Que maravilha! Um caso desses nas mãos e o Dagoberto tão indiferente. Se ao menos ele se interessasse, poderíamos estudar melhor.
– Vou estar com ela mais vezes. Ela aceitou meu convite para sairmos de vez em quando.
Morelli sorriu com uma ponta de malícia.
– Vai ser uma pesquisa agradável.
– Nada disso. Não estou interessado nela e se quer saber, ela já disse abertamente que comigo só deseja manter amizade.
Morelli riu gostosamente.
– Ela jogou água fria em seu entusiasmo, ou será que o aumentou?
– Não é nada disso, pai. Estou curioso, quero descobrir o que há com ela. Diz coisas diferentes revelando idéias impróprias para uma menina da sua idade. Hoje, percebi que não é fingimento nem fantasias próprias da adolescência. – Já é um bom começo. De fato, essa menina tem algo especial. Você não sente?
– Talvez.
– Mantenha-me informado de tudo quanto observar. Seria bom se você lesse sobre o assunto.
– Acha realmente que Juliana tem a ver com o que leu nesses livros?
– Certamente. Certos assuntos geraram forte preconceito em nossa área por causa dos abusos que pessoas ignorantes praticaram em seu nome. O sonambulismo presta-se a essa exploração, e isso costuma afastar os pesquisadores sérios. Todavia, acredito que nossa ignorância tem contribuído muito para isso.
– Fala serio? Você crê que exista base científica para isso?
– Tenho certeza. Não se pode negar os fatos. O que aconteceu com Juliana, que eu presenciei, tem de haver uma explicação séria. Não foi fingimento nem ilusão. Foi um fato. Agora, eu não creio em superstição ou em sobrenatural. Se o fato nos parece estranho é por que nós ainda desconhecemos o seu mecanismo, é só isso. E é isso que eu gostaria de descobrir, sem ilusões, fantasias ou preconceitos. Tudo tem uma explicação, e eu farei o que puder para encontrá-la!
– Você está determinado!
– Estou. Já pensou em quantos pacientes poderiam ser beneficiados se lançássemos mais luz sobre os fenômenos mentais?
– De fato – considerou o moço pensativo. – Não tem receio de que o tomem por um místico?
– Aí é que está a chave do problema. A mistura que se faz quando se ignora a origem dos fatos.
A conversa continuou animada até chegarem em casa, onde cada um recolheu-se ao seu quarto preparando-se para dormir.NÃO SE ESQUEÇAM DE VOTAR...
Não esqueçam de me seguir no wattpad pois assim vocês vão ficar por dentro de todas as informações.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Pelas Portas do Coração - COMPLETO - ZIBIA GASPARETTO
EspiritualA maioria de nós está repleto de modelos sociais de felicidade. Todos queremos ser certos e adequados. E, assim, nos obrigamos a agir contra os impulsos de nossa verdadeira natureza. Pensando fazer o melhor, acabamos por nos conduzir ao vale do de...