CAPÍTULO 11

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Vera chegou em casa da mãe preocupada, nervosa. Fitando seu rosto contraído, Norma logo percebeu que algo havia acontecido.
- O que foi? - perguntou abraçando-a com carinho. - Aconteceu alguma coisa?
- Não me sinto muito bem. Desculpe se vim aqui desabafar. É que eu precisava respirar um pouco!
- Sente-se, filha. Vou mandar preparar um chá. Logo estará melhor.
Norma foi a cozinha e voltou em seguida sentando-se no sofá, ao lado da filha. Vendo que ela continuava calada, indagou:
- O que houve?
- Não se preocupe, mamãe. Estou um pouco cansada, só isso.
- Cansada? Você! De quê?
- Depois que o doutor Vasconcellos morreu, as coisas mudaram muito lá em casa. Sei que preciso acostumar-me, mas há momentos em que não consigo. É demais para mim.
- Claro que quando alguém morre, as coisas se modificam na casa. É natural. O Dr. Vasconcelos era um homem de fibra, sempre controlou tudo muito bem. Sem ele, por certo as coisas levarão algum tempo para se ajustar. Precisa ter paciência.
Vera suspirou angustiada:
- Estou tentando. Nesses seis meses, mudei muito. Contudo, há momentos em que sinto vontade de fugir, voltar aqui para casa, largar tudo.
- Você está louca! Onde já se viu pensar assim? Você tem tudo, fez um belíssimo casamento, vive na alta sociedade, tem um filho maravilhoso, desfruta de mil regalias. Quantas mulheres dariam tudo para estar no seu lugar? E você fala em largar tudo! Francamente, você deve estar doente. Falaremos ao seu pai, e ele a ajudará.
Vera abanou a cabeça energicamente:
- Isso, não. Ele não pode ajudar-me. Não é de remédios que eu preciso, o que eu quero é felicidade, amor, alegria de viver!
- Você já tem tudo isso. Por que não percebe?
- Engana-se. Eu não tenho nada. Marcelinho, depois que assumiu os negócios do pai, mal para em casa. Desconfio até que tem outra mulher.
- Está com ciúmes!
- Acho até que não. Estou cheia de raiva, de tédio, cansada de fazer o que os outros querem. Não sou dona de nada, nem de brincar com meu filho livremente. Não aguento mais.
- Acalme-se. Você está nervosa. Com certeza se engana. Seu marido a ama, sua sogra é uma mulher de muita classe, muito bem-educada.
- É arrogante, dominadora e egoísta! Todo mundo tem que fazer o que ela quer. Marcelinho parece um bobo, não toma uma decisão por mais simples que seja sem que ela aprove. Ele mal aparece em casa e quando está, passa o tempo todo fechado no escritório com ela, confabulando. Eu não existo para eles. E se tento fazer alguma coisa por mim, ir a algum lugar, tentar me distrair, sou criticada asperamente. Parece até que eles me odeiam.
- Não pode ser. Você deve estar enganada. Como não percebemos isso antes? Por que só agora?
- Eles mudaram muito, mamãe, depois da morte do Dr. Vasconcelos. Ele era um homem enérgico e exigia disciplina. Tudo caminhava melhor. Agora, parece que nada mais funciona. Às vezes, chego a pensar que estou na casa errada. Eles me parecem desconhecidos. Estou casada com um estranho e não gosto dele.
Norma passou a mão delicadamente pelos cabelos dela, acariciando-a:
- Esqueça isso por agora, vamos. Você está aqui e sabe que a amamos muito. Acalme-se, descanse e tenho a certeza de que quando voltar lá, veráas coisas de outro modo. Quando estamos depressivos, vemos tudo negro. Logo se sentirá melhor e então verá que estava exagerando. A criada entrou com a bandeja de chá, e Norma apressou-se em preparar uma xícara para Vera, com uma generosa porção de açúcar para acalmá-la.
- Beba, minha filha. Não se deixe levar pelas impressões do momento. Reflita melhor. Estou certa de que tudo vai passar.
Vera não respondeu. Era-lhe muito agradável estar ali no aconchego materno. Ah! Se pudesse voltar atrás! Agora, sua vida parecia-lhe um pesadelo. Sorveu alguns goles de chá, pensativa, tentando controlar-se. Quando acabou colocou a xícara sobre a bandeja e recostou-se novamente no sofá. Por fim disse:
- Mãe, se eu não puder suportar mais, posso voltar para casa com meu filho?
Norma empalideceu. Essa idéia nunca lhe passara pela cabeça. Sua filha separar-se! Que horror!
- Você não pode estar em seu juízo. O que pensa da vida? O casamento é uma instituição muito séria. Não se desfaz assim, por da cá aquela palha. Logo você! Como pode ser tão leviana?
- Você sabe que não sou leviana. Nunca fui. Pelo que eu tenho passado naquela casa, pressinto que já não há remédio.
- Como pode dizer uma coisa dessas? Vocês são jovens, tudo tem remédio.
Vera abanou a cabeça desalentada:
- Não é o que me parece. Eu ainda não disse que vou separar-me. Só perguntei se, no caso das coisas piorarem, eu posso voltar para cá com meu filho.
- Você sabe que aqui é sua casa, mas seu lugar é ao lado do seu marido. Seu pai não consentiria. Não podemos apoiar sua imaturidade. Você não conhece a vida, acha que seria feliz deixando seu lar? Abandonando seu marido? Pense um pouco, perceba como está errada.
- Seria bom que você estivesse certa. Mas pressinto que meu casamento acabou. Vou tentar mais um pouco, no entanto, o que fazer se o amor morreu? Marcelinho não liga para mim e nem se dá ao trabalho de fingir.  Simplesmente me ignora. Parece até que me despreza. Diz que sou um fraca, que não sei sequer cuidar do nosso filho.  Ele gostaria que eu fosse dura como D. Laura, mas isso eu nunca farei. É contra minha natureza. O encanto entre nós se quebrou e agora ficou difícil conviver. Você se lembra Juliana?
- Do quê?
- Do que ela disse quando o Dr. Vasconcelos morreu. Ela previu o que ia acontecer. E você não me deixou falar com ela!
- Não meta Juliana nesta história. O que aconteceu foi só coincidência, nada mais.
- Começo a pensar que foi coincidência demais. Primeiro, a doença do Dr.  Vasconcelos, depois, o nascimento do Martin e por fim, preveniu-me contra D. Laura. Ela estava certa. Ela sabia o que estava dizendo.
- Que bobagem! Que seu pai não a escute dizendo uma barbaridade dessas.
- Juliana está em casa?
- Não.  Você sabe que ela está no colégio.
- É. Sei. Mas eu preciso falar com ela. Vai dizer-me com certeza o que irá acontecer. Assim poderei decidir melhor.
- Você não fará isso! Colocar uma coisa tão séria nas fantasias de sua irmã. Você enlouqueceu?
- Muitas amigas minhas vão às cartomantes. Costuma dar certo.
- Sua irmã não é uma cartomante. Percebeu a besteira que você disse? Começo a pensar que está seriamente perturbada. Onde já se viu? Proíbo-a de falar com Juliana sobre esse assunto.
Vera deu de ombros.
- Isso não adianta. Se ela falar, desta vez vou ouvir com atenção.
- Filha, por que não procura um conselheiro? Um psicólogo?
- Pensa que estou louca?
- Quem cuida de loucos é o psiquiatra. O psicólogo ajuda as pessoas a mudar o comportamento. Nessa história toda, começo a pensar que você esteja realmente necessitando de ajuda. Está tão diferente da Vera que sempre foi! Será que não foi você quem mudou? Será que não foi você quem se desequilibrou?
- Vejo que não acredita em mim. Vim aqui à procura de conforto, e você não me compreende.
- É meu dever de mãe orientá-la. Quando pretende jogar sua felicidade no lixo sem motivo sério, o que posso pensar? Como deixá-la tomar uma decisão precipitada que a infelicitará pelo resto da vida e da qual certamente se arrependerá?
- Já vi que não posso contar com você.
- Ao contrário. Sempre estarei aqui para ajudá-la, não a fazer o que pretende e que é errado, mas o seu dever, o que é direito, o que é preciso.
Vera passou a mão pelos cabelos, nervosamente. Sua mãe estaria certa? Ela seria a errada mesmo?
- Só sei que aguento mais. Como está, não pode ficar. Terei que tomar uma decisão. Falar com Marcelinho, exigir que me entenda. Dizer-lhe como me sinto infeliz.
- Cuidado. Seu marido pode não gostar. Lembre-se de que a mulher precisa compreender o marido.
- E ele não precisa me compreender? Só considera a mãe? E eu? Não mereço atenção? Antes ele não era assim.
- Isso é natural no casamento. Com o tempo tudo vai mudando. A rotina estabiliza o amor dos primeiros tempos. É preciso aceitar isso.
- Não aceito. Eu quero ser feliz! Não posso conformar-me em viver relegada ao abandono e sem alegria. Não. Não sou conformada.
- Se pensar assim, vai sofrer inutilmente. A mulher precisa aceitar as coisas como são. Renunciar a si mesmo para que a família se mantenha.
- Não posso fazer isso, mamãe. É contra minha natureza.
- Estou casada há vinte cinco anos e sempre coloquei a família em primeiro lugar. Assim consegui manter meu casamento até hoje.
- Nós somos diferentes. Papai é diferente.
- Acha que foi fácil conviver com ele? Não percebeu que ele sempre diz a última palavra? Determina tudo? Já pensou o que aconteceria se eu não concordasse? Seria o caos. Viveríamos brigando e o ambiente aqui seria insuportável. Aprendi a calar e com jeito conseguir as coisas que eu quero.
Vera fixou a mãe, admirada.
- Você é feliz ?
- Claro, filha. No fundo o que importa é manter a estabilidade, a calma. Depois, seu pai é um médico, estudou, sabe mais do que eu.
Vera calou-se pensativa. Vivera tantos anos naquela casa e nunca observara o relacionamento dos pais. Agora reconhecia que de fato ele era autoritário, e a mãe aceitava isso com naturalidade. Estaria certa? Ela também deveria aceitar as ordens da sogra e a displicência do marido?
- É difícil para mim aceitar isso, - disse por fim. - Sinto-me rebaixada.
- Esse orgulho só atrapalha. Com o tempo aprenderá. Verá que é mais fácil do que supõe. Depois, na sua situação, você tem inúmeras vantagens. Muito mais do que eu.
- Não vejo nenhuma.
- Tem dinheiro, frequenta a sociedade, tem amigos. Pode preencher o tempo com coisas agradáveis, deixando a direção dos negócios e dos problemas domésticos com D. Laura. Se seu marido e displicente, não tem ciúmes, é bom, você pode aproveitar a mocidade. Só vejo vantagens onde você vê problemas.
- Você acha mesmo?
- Claro. Daqui algum tempo nem se lembrará do que eu disse. Se se dispuser a ceder, tudo entrará nos eixos.
- Vou tentar. Talvez esteja com razão.
- Trate de agradar seu marido e sua 888sogra. Não lhes dê motivos para queixas.
- Está bem, mamãe. Sinto-me mais calma. Vou para casa.
- Isso, filha. Quando se sentir aborrecida, venha aqui, conversaremos e garanto que se sentirá melhor.
Vera despediu-se e saiu cruzando com Juliana que acabava de chegar. Vendo-a, perguntou:
- Está bem? Juliana?
- Estou. E você?
- Agora melhor. Tenho andado cansada. Conversei com a mamãe e sinto-me mais calma.
- É melhor assim.
Vera olhou-a firme nos olhos e perguntou:
- Não tem nada a dizer-me?
- Eu? Por quê?
- Você tem me dito coisas... Não vai me dizer nada agora?
- Não. Não sinto vontade de dizer-lhe nada.
- As coisas em casa não vão bem, e eu pensei que você pudesse me ajudar.
Juliana sorriu:
- Você está muito bem. É forte e inteligente, saberá cuidar de tudo muito bem.
- Está bem. Já vou indo. Até outro dia.
- Até.
Juliana entrou em casa e Norma, vendo-a, imediatamente perguntou preocupada:
- Você viu a Vera?
- Vi. Encontamo-nos no portão.
- Espero que não lhe tenha dito coisas fantasiosas.
- Não disse nada, mamãe.  Vera sabe muito bem o que faz. Não se preocupe.
- Não estou preocupada, - mentiu ela. - Ela anda nervosa, e eu não queria que você a incomodasse com suas idéias.
- Quando ela resolveu deixar o marido, ninguém conseguirá evitar. É melhor ficar do lado dela. Vai precisar.
- Ela disse que quer largar o marido?
- Não.
- Então por que está me dizendo isso?
- Porque é verdade. O óleo não se mistura com a água nem que você queira. Vera é água e o marido é óleo. A separação é natural.
- Não repita isso. Não gosto que você fique inventando coisas sobre sua irmã. Se seu pai souber, não vai gostar.
- Você também não. Do que tem medo? Por que duas pessoas que não se gostam precisam ficar juntas?
- Vou fazer de conta que você não disse uma barbaridade dessas.  Proibo-a de voltar a este assunto. Agora vá tomar seu banho para não atrasar o jantar.
Juliana não respondeu e subiu para o quarto. Norma suspiram irritada. Não bastava a imaturidade de Vera, havia ainda fantasias de Juliana. Felizmente ela estava atenta para impedir que elas cometessem alguma tolice. Se o Berto soubesse, seria mais um problema. Faria tudo para que ele não percebesse nada.
Vera chegou em casa mas animada. Reconhecia que ela estava cansada. Tantas emoções e mudanças em tão  pouco tempo haviam-na desequilibrado. Talvez a mãe tivesse razão. Era mais experiente do que ela. Se tivesse mais paciência com a sogra, talvez Marcelinho melhorasse com ela. Seria amável e procuraria ignorar as exigências dela. Afinal, D. Laura também sofrerá a perda do marido. Tivera que assumir os negócios. Marcelinho era tão inexperiente! Certamente isso afetará.  O melhor que tinha a fazer era aceitar as coisas como eram e tentar viver bem com o marido e a mãe.
Ela também não queria separar-se. Tinha horror ao escândalo. Viviam em sociedade onde as aparências contam. Depois, quando um casal se separa, a mulher perdia mais. As desquitadas não eram bem-aceitas em sociedade. Nenhum casal as convidava, os amigos desapareciam, os conquistadores se assanhavam. Ela não desejava uma situação como essa. Depois, sabia que seus pais não a apoiariam. Eram rigorosos nesse ponto. Assim, para onde ela iria com um filho pequeno nos braços? E se eles quisessem separá-la do filho? A esse pensamento, estremecia de horror.
Pensando bem, ela precisava ser esperta e mais inteligente do que eles. Afinal usufruía de uma situação privilegiada socialmente. Mais uma vez sua mãe tinha razão. Por que privar-se de tudo isso?
Foi ver o filho. O menino brincara entretido. Vendo-a abriu os bracinhos. Ela correu tomou-o nos braços, beijando lhe a face rosada. Brincou com ele um pouco mais e quando a ama veio apanhá-lo para jantar, ela foi para seu quarto. Depois de um banho caprichado, desceu para o jantar.
Arrumara-se com esmero. Marcelinho gostava de vê-la bonita. Mas ele não viera jantar. Na cabeceira da mesa bem-posta, D. Laura esperava.
Vera tentou ser amável:
- Boa-noite, D. Laura. Marcelinho não veio?
- Não.
- Ele tinha algum compromisso especial?
- Não.
Vera irritou-se com o tom dela, mas dissimulou. Precisava conservar a calma.
- Estamos sós. Esta casa ficou triste sem o Dr. Vasconcelos. Se ao menos Marcelinho viesse!...
- Ele é homem não precisa ficar aqui suportando essa solidão.
Vera queria dizer que ela também era jovem e não gostava de ficar ali com ela. Mas não disse nada. Do que adiantaria?
Enquanto comia sem muita disposição, pensava o que fazer para espairecer. Tentara convidar amigos, mas D. Laura não permitira alegando o luto e a necessidade de ficar só. Sair era difícil, uma vez que Marcelinho não gostava que ela saísse sem ele. Contudo, ele saía sempre só nos últimos tempos. Desde que ficara esperando bebê, eles fora aos poucos se afastando a pretexto de que ela precisava de repouso.
Aquela noite, ela decidiu esperá-lo acordada. Logo depois do jantar, Laura recolheu-se como de hábito desde que perdera o marido, e Vera apanhou uma revista foi para o quarto. Não podia ligar o rádio, vitrola, nada. O luto não permitia. Suspirando, resignada, sentou-se em uma poltrona e começou a ler.
O tempo passava, e Marcelinho não chegava. Vera foi ficando tensa. Ele por perto estaria em boa companhia, com os amigos, enquanto ela obrigada a ficar só naquela inércia.
Ele estaria mesmo com os amigos? Não haveria alguma mulher metida nisso? Trincou os dentes com raiva. Por que um homem podia e a mulher não? Porque ela deveria ficar submissa e engolir a raiva? Era injusto ficar ali, sem poder fazer nada, enquanto ele ia onde queria. Se ela reclamasse, não lhe dariam razão. Ela era jovem alegre. Queria viver! Passava das três quando o Marcelinho chegou. Abriu a porta do quarto com cuidado e, vendo Vera semi-adormecida na poltrona, não conteve um gesto contrariado.
Ela levantou-se imediatamente, espreguiçando-se.
- O que está fazendo acordada? Por que não foi dormir?
- Estava à sua espera. Queria conversar.
- A estas horas? Não vê que estou cansado?
Ela engoliu a raiva e tentou contornar.
- Faz tempo que não conversamos.  Você não pára em casa. Hoje eu decidi esperar. Não pensei que fosse tão tarde!
- É tarde. Aconteceu alguma coisa?
- Nada de mais. É que nós não temos saído juntos ultimamente. E esta casa ficou muito triste depois que seu pai morreu. Sinto-me muito só.
- Não sei por quê. Mamãe fica em casa  todo o tempo e há Martin.
- D. Laura não conversa. Anda triste e quase sempre ocupada. Martin tem ama e quase não posso cuidar dele. Gostaria de sair um pouco.
- Claro que mamãe anda triste. Perdeu o companheiro de tantos anos. É preciso compreender isso. Estamos de luto. É preciso respeitar.
- Mas você não pára em casa.
- Eu sabia que atrás de tudo isso havia um propósito. Você quer que eu também fique fechado em casa. Se você não pode sair, eu também deveria ficar. Não é egoísmo de sua parte?
- Egoísmo? Eu?!
- Sim. Não vê que estou triste e preciso esquecer? Que saio um pouco um pouco porque eu não posso suportar esta casa sem papai? Não é capaz de entender isso?
Vera olhou-o admirada com o tom de  sinceridade dele.
- E acha que eu sou egoísta!
- Sim. Você é minha mulher, deveria compreender que estou sofrendo. Ajudar-me. No entanto, só reclama.
- Não sei o que quer, tem tudo e ainda reclama. Se tivesse que enfrentar os problemas que estou afrentando na empresa e em todo mais, pensaria  diferente.  Mais enquanto me esforço para cuidar do nosso futuro, você fica em casa, no conforto sem fazer nada. O que quer mais?
Vera irritou-se ainda mais. Contudo controlou-se. Não queria brigar. Ao contrário. Desejava apaziguar as coisas.
- Está bem, - disse - talvez eu não tenha avaliado bem o que você está passando. Mas eu gostaria tanto que você ficasse comigo como antigamente. Depois, penso que poderíamos aliviar luto. Seis meses são mais do que suficientes para o luto fechado. Nós poderíamos convidar alguns amigos para o jantar, ou irmos ao clube.
Marcelinho fez um gesto contrariado. - Nem pensar - disse. - O que mamãe pensaria? Ela ainda não esqueceu, nem eu. Você nos ofende com essas idéias.
- Poderíamos ir ao cinema pelo menos.
- Nem pense nisso. É melhor acostumar-se. Tão cedo não iremos. Não sinto vontade. Agora vou dormir. Estou moído. Espero que não me incomode mais com essas infantilidades.
Vera não respondeu. Preparou-se para dormir, deitou-se. Marcelinho deitou-se e logo adormeceu. Vera não conseguiu. Olhos aberto na escuridão no quarto, tentava sufocar a revolta e a tristeza. Marcelinho não a compreendia ou estava fingindo por conveniência? Ela não sabia. Naquele instante senti raiva da própria com impotência. Ouvindo o marido ressonar tranquilamente, ela não ligou quando as lágrimas descera.-lhe pelas faces. Compreendeu que dali para frente seria sempre assim. Ele não a ouviria.
Aconteceria isso com outras mulheres? Seria o destino da esposa ser passiva e aceitar as vontades do marido? Com ela ia ser diferente. Era inteligente o bastante para encontrar uma forma de ludibriá-los. Aparentemente, se deixaria dominar, mas, por outro lado, daria um jeito de fazer da sua vida o que queria. Eles não haveriam de derrotá-la. Ela se  recusava a ser infeliz e aceitar passivamente um lugar subalterno.  Eles não sabiam do que ela era capaz.
A cabeça cheia de pensamentos conflitantes na tentativa de encontrar uma saída, o dia já estava clareando quando ela finalmente conseguiu adormecer.
Ao acordar na manhã seguinte, Vera  pelo menos sabia quais as primeiras atitudes que ia adotar. Conhecia imensa validade da sogra e do marido. Era ali que iria pegar. Quando desceu para o café, passava das dez, e Laura já estava ocupada no escritório. Marcelinho ainda dormia, e ela ocupou-se com o filho que brincava com ama no jardim.
Depois, como a ama entrasse para trocar a roupa de Martin, Vera ficou na sala com uma revista de moda, pensando nas roupas que faria quando aliviasse o luto. O telefone tocou e como a criada demorasse, Vera atendeu.
- Alô!
- Vera? Que bom falar com você. Finalmente consigo. Tenho tentado, mas sempre me dizem que você não está.
- Nice! Como vai? Ninguém me disse que você havia ligado.
- Não? Liguei, sim. Você anda sumida. Tenho visto o Marcelinho circulando, sozinho. Você não estará facilitando? Marido moço, bonito, sozinho, cuidado!
- Gostaria de conversar com você. Depois da morte do Dr. Vasconcelos, as coisas aqui mudaram muito.  Tudo ficou muito triste.
- Vou buscá-la para tomarmos um chá. Gostaria?
- Adoraria, mas não sei se poderia. D. Laura não aprovaria. Para ela, o luto fechado é questão de honra.
- Ninguém mais faz questão disso hoje em dia. Há até quem já aboliu o preto.
Vera suspirou resignada:
- Quem dera que ela já pensasse assim. Gostaria de falar com você em particular. Somos amigas há tanto tempo!... Sei que me compreenderia.
- Pelo jeito, está tendo problemas!
- É. Estou. Sabe como é. Não aceito certas coisas. Mas estou tentando. Preciso aprender a ser uma boa esposa. Amadurecer.
- Hum! Já vi que está pior do que eu supunha. Você não pode sair de casa?
- Não é bem isso. É que D. Laura se aborreceria. Não pretendo contrariá-la. Marcelinho ficaria muito zangado.
- Acha que nem para uma missa de defunto você poderia sair?
- Claro que sim. Mas, como eu iria arranjar uma?
- Eu tenho. Lembra-se da esposa do Dr. Gilberto, que faleceu sábado passado?
- Sim.
- A missa é hoje, às onze e meia. Fale com D. Laura, invente o que quiser, diga que eu estou inconsolável, e lhe pedi para ir comigo a essa missa. Passarei por aí às onze e sairemos juntas. Almoçaremos em algum lugar e conversaremos à vontade.
Vera animou-se. Faria qualquer coisa para distrair-se um pouco.
- Está bem - disse. - Vou tentar.
- Daqui a pouco estarei aí. Até logo.
Vera desligou o telefone com alegria. Procurou dar um ar compungido à fisionomia e bateu ligeiramente no escritório e entrou.
Laura olhou-a e indagou:
- O que quer?
- Estou em um dilema e vim procurar sua ajuda. A Nice tinha uma tia muito querida, aliás a senhora conheceu, a esposa do Dr. Gilberto Resende.
Laura fez que sim com a cabeça. Vera prosseguiu:
- Faleceu no último sábado e a Nice está inconsolável. A missa é agora às onze e ela deseja ir, mas sente-se muito emocionada, tem receio de sentir-se mal. Pediu-me para acompanhá-la. O que acha?
- Não seria delicado esquivar-se numa hora dessas.
- Sinto-me triste. Ir à uma missa de defunto depois do que passamos...
- O dever é muito importante. Você deve ir, sem dúvida.
- Marcelinho não está.
- Tem minha permissão. Vá. Dê-lhe meus pêsames.
Vera disfarçou o contentamento. Saiu da sala e assim que se viu só, foi para o quarto arrumar-se. Quando a Nice chegou, toda de preto e com ar abatido, sentiu vontade de rir. Com o coração aos saltos, acompanhou-a. Sentia-se livre.
Uma vez no carro, Nice apressou-se em colocar uma echarpe vermelha ao redor do pescoço e trocar os sapatos e a bolsa por outros também vermelhos.
Em poucos minutos, havia mudado completamente a aparência.
- É agora onde iremos? - indagou Vera, deliciada.
- Primeiro, almoçar em algum lugar bem agradável.
- Não posso encontrar nenhum conhecido. Já pensou se Marcelinho descobre?
- Hum!... Até parece que tem medo dele!
- Não é isso. É que pretendo viver em paz. Não quero arranjar aborrecimentos. Ele não gosta que eu saia sem ele.
- Quando foi a última vez que saíram juntos? Não os tenho visto juntos pelos lugares onde circulamos. Quanto a ele, sim. Parece que não perde nada.
- Por que diz isso? Ele tem trabalhado muito e sofreu demais com a perda do pai. Precisa distrair-se.
- E você, não? Antes eram inseparáveis.
Vera suspirou.
- É que eu tenho Martin. Com um filho pequeno, não dá para sair muito.
- Não concordo. Todas as nossas amigas têm bebês e não ficam em casa por isso. Para que servem as babás? Aliás, você tem uma ótima. Logo que Martin nasceu, vocês saíam muito.  Não se lembra?
Vera não encontrou argumentos para responder. Nice continuou:
- Sabe o que eu acho? Que você anda facilitando muito. Tem marido moço e rico. Se eu fosse você, tomava conta dele, não o deixava circulando sozinho por aí.
- Não sou ciumenta. - Mentiu ela, procurando disfarçar a raiva.
- Mesmo assim. Se continuar desse jeito, um dia quando menos esperar, pode arrepender-se.
Vera fez o possível para esconder o que sentia, mas uma súbita suspeita deu-lhe um aperto no coração. Marcelinho estaria flertando abertamente? Só a essa idéia, sua raiva crescia. Nice tinha razão. Ela não podia sujeitar-se a ficar em casa enquanto ele passeava por onde lhe aprouvesse. Era demais.
Nice observou:
- O que há com você? Sinto que está com raiva, que as coisas não estão bem. Por que não se abre? Somos amigas há tanto tempo! Desabafar pode fazer-lhe bem.
- Vamos nos acomodar. Talvez tenha razão. Preciso mesmo saber que posso contar com alguém. Sinto-me tão só!
Haviam chegado ao restaurante e escolheram um lugar tranquilo onde se sentaram. Pediram a comida e enquanto esperavam, Vera não se conteve mais. Contou a amiga toda sua desilusão com o casamento, com a sogra, e a situação de isolamento em que vivia.
- Falei com mamãe, pensei encontrar compreensão e apoio. Mas enganei-me. Ela escandalizou-se. Ficou contra mim, fez-me prometer que aceitaria a situação e que faria tudo para manter o casamento.
- Eu sabia que ela ia dizer isso! É como as mães pensam. A minha também teria dito isso! Afinal, elas sempre obedeceram aos maridos, por que pensariam em outra opção?
- Fiquei confusa. Ela pode ter razão. E se eu estiver sendo leviana? Se estiver sendo caprichosa e exigente. Afinal, em nossa sociedade os homens sempre têm direitos que nós, mulheres, não temos.
Nice irritou-se:
- Pois eu não aceito isso! Comigo, não. Por isso ainda não me casei. Não tenho paciência para atuar ninguém mandando em mim. Na primeira vez, acho que daria nele. Isso é uma injustiça. Afinal a vida é nossa, temos o direito de escolher a maneira como queremos viver!
- Marcelinho está diferente. Antigamente, era gentil, delicado, não saía sem convidar-me. Depois que o Dr. Vasconcelos morreu, ele mudou. Só faz o que a mãe quer. Até parece que ela é tudo para ele. Se está em casa, fica com ela; dá até nervoso. Toda hora vê se ela está bem, se quer alguma coisa, se está confortável, etc.
-Você está com ciúmes!
- Estou com raiva. Ele mal me olha. Eu sou sua mulher! Sequer brinca com Martin.
- Marcelinho nunca foi com crianças, isso era de esperar.
- Com estranhos, sim. Mas com o filho! Sinto-me decepcionada.
- Já tentou conversar com ele, fazê-lo compreender como se sente?
- Já. Ele não me ouve. Vem com sermão, que eu preciso ser boa esposa, compreender o sofrimento de D. Laura e o dele. E eu? Até quando poderei suportar esse estado de coisas?
- Até quando quiser. Porque se casou com ele não é obrigada a viver como eles querem. Onde está sua dignidade? Você merece respeito e deve colocar-se. Se não fizer isso, eles logo vão ignorá-la.
- É isso mesmo o que estão fazendo. Me ignorando. Esquecem-se de mim. Às vezes, sinto-me como uma criança de cinco anos. Não me senti assim nem em casa da mamãe.
- Infelizmente nós, mulheres, estamos em desvantagem. Nossa sociedade é masculina. Só o homem tem direitos. Já leu o Código Penal? É uma vergonha.
- É por isso que mamãe não deseja que eu me separe. Teme que eu sofra e seja discriminada por isso.
- Será, com certeza. No entanto, ninguém tem o direito de julgar. Mesmo porque quando a coisa está doendo, é você quem sente, ninguém mais.
- Não sei o que fazer. Nem sei se teria coragem para enfrentar uma briga com Marcelinho.
- Isso é muito pessoal. Desculpe se me excedi. O que eu faria, não tem nada a ver com o que você faria. Cada pessoa tem sua maneira de fazer as coisas. Não se precipite. Espere um pouco mais. Deixe as coisas acontecerem. Tudo pode mudar.
- Têm o que não. Você agora quer consolar-me. Contudo, certas atitudes são reveladoras. Não os conhecia como julgava. Aliás, não me preocupava em observá-los. Eu era tão ingênua! Só tinha olhos para o que eu pensava, meu romance de amor, minha casa nova, meu filho, meu mundo! Meus sonhos!
Nice balançou a cabeça, concordo:
- Você não é a primeira nem será a última que me diz isso. Parece uma fatalidade!
- É isso que eu não me conformo. Admitir que meu sonho de amor fracassou, que estou infeliz e que agora não há mais remédio, terei que suportar.
- Tenho pensado muito. Eu também não quero suportar. O que farei? Meus pais não me aceitariam em casa se eu me separasse. Para onde iria com um filho nos braços?
- Tem razão. Sem dinheiro e sem marido, seria o caos. Ainda se pudesse ir para casa de sua mãe! Tem certeza de que ela não voltaria atrás?
- Tenho. Papai é rigoroso. Nunca me aceitaria.
- Nesse caso, só tem um jeito.
- Qual?
- Tentar juntar dinheiro, o mais que puder, e só depois que estiver bem rica, sair de casa.
- Não sei se teria coragem!...
- Eu faria isso. Com dinheiro nas mãos, você teria sua liberdade assegurada. Seria independente! Teria  uma renda e poderia viver muito bem com seu filho.
As duas continuaram conversando e depois do almoço foram andar um pouco, ver as vitrines das lojas. Só no final da tarde foi que Vera voltou para casa. Antes de entrar, tirou a pintura e compôs a fisionomia. Quando ela se despediu na porta de casa, a criada ainda viu de relance o rosto abatido de Nice dentro do carro.
A partir daquele dia, Vera procurou sair com Nice e para isso, arranjava pretextos diferentes. Acompanhava-a ao psiquiatra, ao dentista, acudia suas crises de tristeza. Tanto Laura como Marcelinho não desconfiavam de nada. Até gostavam que Vera se ocupasse com a amiga, porque assim não os aborrecia com suas queixas.
Marcelinho, interessado em uma loura muito especial, quase não parava em casa, e Laura, envolvida com seus próprios problemas, concordava com as saídas de Vera, vendo-a sempre discreta no papel de boa moça, fazendo o bem. Sentia-se feliz quando o padre Olavo elogiava Vera, pela sua vida tranquila e discreta.
Para ser sincera, Laura pouco se importava com Vera. Tinha mais em que pensar. Os negócios não iam bem, e ela começava a perder dinheiro.  O filho não se ocupava de nada, e ela precisava decidir tudo. Enquanto Vera continuasse apagada e discreta, não se ocuparia dela. Era muito insignificante. Não lhe daria trabalho.

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Pelas Portas do Coração - COMPLETO - ZIBIA GASPARETTOOnde histórias criam vida. Descubra agora