Capítulo 23

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Ladywell

Hillsbury

30 de março de 1988

Querida Tessa,
Vou continuar. Não há dúvida de que o Deus Cornífero parece mais difícil de perceber
durante um transe, porque nós, mulheres, cremos entendê-lo menos. Em nossa cultura, imagens de masculinidade estão de tal forma ligadas à violência e ao autoritarismo, que é difícil acreditar no homem. Há o Deus cristão, por exemplo, propenso a torturar os que erram, com os fogos do inferno, por toda a eternidade. Mesmo os deuses pagãos, desde os tempos patriarcais, têm sido envolvidos em mortes como deuses da guerra, dando carta branca a estupradores e ladrões. E neste ponto, as deusas pagãs da mesma época eram às vezes divindades da guerra. Mas este fato é menos familiar a nós e um fator menor. Podemos ignorá-lo mais facilmente e invocar um ente mais antigo, a Mãe de Toda a Vida, ou a Deusa Tripla do Círculo do Renascimento.
Suponhamos colocar-nos aquém do patriarcado à aurora dos tempos em que o Deus macho imperava. Podemos então perguntar: "E o que significaria o Deus Cornífero numa Era em que se desconheciam as guerras?" Mas será lícito acreditar que o Deus existe agora? Ele esteve ausente do mundo por tanto tempo, banido, por assim dizer. Podemos trazê-lo de volta? Podemos invocar seu retorno? Assumindo o fato de que ele é diferente de todos os deuses patriarcais que conhecemos, ele seria relevante? Esta não é, afinal, a remota Idade do Ouro, mas o século XX (quase XXI), muito próximo, parece, da Idade do Plutônio ou Urânio.
Quem é este Deus Cornífero? Como bruxa, meu único conselho pode ser que você mesma verifique. E que tenha a coragem das convicções da Deusa. Pois ele é seu par e também o Pai de Toda a Vida. A palavra "pai" é bem intrigante. Vamos esquecer todas as conotações patriarcais, como "chefe de família". Significa simplesmente "progenitor" e suas implicações. Significa paixão e a dança da vida: o desejo. Também o mantenedor e educador
masculino das crianças. Essas coisas são vistas na natureza. O cavalo-marinho macho é que dá à luz o filho; o leão macho cuida e cria os leõezinhos. Padrões e possibilidades paternas são muito diferentes no mundo da natureza. Mais uma vez, você deve visualizar sua esfera azul, pedir proteção aos Espíritos Guardiães e sentir a relva abaixo dos pés, como vê as árvores ao seu redor.
Chame o guia familiar e fale que deseja encontrar e conversar com o Deus Cornífero. (Não esquecer de mais uma vez confirmar seu guia familiar.) Peça que a acompanhe e guie, e depois a deixe na clareira. Como no último transe, caminhe pela vereda do bosque e encontre a caverna. Se ficar irritada ou tiver algum problema, peça ajuda ao guia. Como antes, você penetra na caverna pela fenda, entre duas rochas. E a vela está ali, esperando por você. Pegue- a e siga pela passagem tortuosa de pedras atrás de si, descendo e descendo, cada vez mais fundo. Você emerge outra vez numa bela e pacífica paisagem. Deixe a vela na saída da caverna.
Desta vez você não vai em direção ao mar, pois seu guia a levará para longe da costa, ao interior. Esta é uma terra selvagem e bela. Há regiões calcárias montanhosas e cinturões de árvores. Exceto nos terrenos mais altos, as florestas são densas. Atravessando os bosques emaranhados, você vai sair num monte despido de vegetação e começar a subir. Uma vez lá em cima, enxergará por muitas milhas de distância. Giz, pederneira e grama rústica estão todos sob seus pés. Agora você se encontra numa saliência estreita. Este também é um local sagrado.
Peça então para ver o Rei do Dia, o Jovem Caçador. Ele vem, caminhando a passos largos, homem alto trajando peles de animais e lã áspera. A cabeça possui chifres como os de um grande veado macho. Talvez esteja lhe sorrindo com ar divertido, pois este Deus é um brincalhão. Verifique se é o verdadeiro Rei do Dia, o Jovem Deus Cornífero. Ele de repente senta-se, indicando para você também sentar-se a seu lado. Ele é elegante e flexível, e você intui que ele pode ultrapassar o vento e tem grande força. Ele pergunta se você gostaria de ouvi-lo cantar. É natural que o faça. Você não lhe pediu auxílio, você não tem fome, você não está assustada? Bem, então a vida é para o prazer. Você prefere uma canção ou uma história? Ou, quem sabe, dançar? Neste último caso, você ensaiará passos de dança selvagem com o Deus Cornífero, no topo do monte deserto, acompanhando a música de seu trautear abafado. É uma dança louca, estranha, às vezes uma jiga, às vezes pura improvisação. E parece que seu próprio sangue se agita, e os distantes morros dançam, bem como as árvores, enquanto o Deus gira cada vez mais rápido e começa a rir. Você pode quase cavalgar o vento! Você quase tem
os pés na terra e a cabeça em remotas estrelas. A vida se derrama, e você pode sentir-se ligada também à terra: você conduz a vida.
Um bruxo macho dançaria assim com o Deus Cornífero; ou é somente para você, sacerdotisa da Deusa, mulher? Não sei. Preciso perguntar ao Cole. Por que não? Entretanto,
acho mais provável, num primeiro encontro, que um homem simplesmente pediria para despertar nele o poder vital de dançar. Assim como você já pediu à Deusa que despertasse o poder dela em você. Talvez seja a Jovem Deusa que gira rapidamente para longe com um macho, a dançar selvagemente na praia deserta, enquanto as ondas se espatifam, o vento voa e o borrifar salgado se transforma em prata.
Ao terminar a dança, você cai de novo. Está relaxada agora. Pode fazer perguntas ao jovem caçador-dançarino, o Deus Cornífero. Pergunte por que ele é caçador, se desejar. Ele provavelmente dirá que caça para sobreviver e não por diversão, levando só o que precisa para se alimentar. Vai dizer ainda que é um animal perseguido, ligado a outras criaturas que estão sendo caçadas. Ele é também o veado macho se defendendo, aprisionado e morto. Este é o mistério que nos diz muito sobre o Deus, e sobre nós próprios, de acordo com a nossa reação. E fica além da lógica. O significado só pode ser sentido na profundeza do nosso ser, e não de maneira objetiva.
Lembre-se de que este Deus é o Rei da Morte, como o é da Vida. A Morte é um aspecto da Vida. Ele é agudo como a pederneira aos seus pés, suave e macia como o giz. Flechas de pedra e figuras de giz. Pois o artista que desenha figuras de giz na calçada de uma cidade pode também manifestar o Deus Cornífero. João-Grande brincalhão e criativo, João- Grande rebelde e sobrevivente.
Quando você fizer todas as perguntas, indague também como pode expressar e sustentar seus princípios de vida em selvagem alegria e honestidade, cumprindo a verdade dos instintos opostos às nossas falsas e condicionadas representações — instintos reais, que
embelezam a vida e a sustentam.
Então agradeça-lhe e diga que deseja ver o Velho Sábio, que é seu outro Eu. Ele vai
lhe mostrar o caminho que desce o monte e penetra no bosque. Aqui você verá o Velho Sábio dirigindo-se ao seu encontro. Folhas podem estar emaranhadas na sua barba, e talvez o perceba como um velho louco e excêntrico, e também um sábio astrólogo. Os chifres ainda estão na sua cabeça e ele tem uma capa de lã rústica sobre o corpo. Não é um mágico da corte, mas um xamã. Ele pode deixar o corpo quando quiser e colecionar a sabedoria escondida nas raízes das árvores; ou então, transformado em cão, uivar para a Lua, ou dançar como lebre de março. Ele possui o poder das chamas de velas entre os dedos. Elas brilham douradas e vermelhas, enquanto ele mistura as ervas. Suas capacidades curativas têm o poder de todos os elementos, e ele é ainda o guia nos reinos após a morte, onde esteve também. Na vida ele é perito nos mistérios. Depois da vida, é o guia antigo e traz a compreensão.
Após certificar-se de que é o genuíno Rei da Noite, seguindo os mesmos procedimentos já expostos, siga-o adiante no bosque. Aqui, verá um abrigo rústico, construído de madeira, lama e musgo. Ele a convida para entrar. (O que se vê ali?) Então ele acende uma vela. Não estava escuro antes, mas agora tudo ficou mais brilhante pelo resplendor da vela, até o distante e misterioso sombreador além. O Velho Sábio está quieto, mas sua presença não é austera. Agora ele indaga de que criatura você quer aprender. Pergunta estranha. Se você não tem nenhuma idéia, é melhor dizer: "De quem eu mais preciso aprender?"
Ele toca a sua testa. Imediatamente você se transforma em raposa, texugo, gato, galinha, coruja ou cabrito ou o que você escolheu ou precisou ser para obter mais conhecimentos. Logo a mudança é completa e você mudou de forma. Ele a leva adiante, e você explora a floresta ao seu lado. Se você é um pássaro, voa no céu. Não existe medo, porque ele a protege. Mais que uma vez, ele pode ajudar na mudança. Talvez seja um peixe e nade na correnteza de um rio veloz, ou então uma águia, ou lontra ou corça, ou mesmo borboleta. O Velho nunca está longe. Ele pode falar-lhe de dentro de uma árvore ou de uma rajada de vento.
Finalmente, você retorna ao casebre e ele toca sua testa uma última vez. Você volta à forma humana, de mulher. A vela já queimou bastante. O Velho Sábio a olha insistentemente e espera as suas perguntas. Você agora aprendeu, talvez, a arte de voar, ou a arte de ser ave,
fera ou cobra. Peça que ele explique outros mistérios sobre pássaros e animais. Pergunte o que quiser. Finalmente peça-lhe para dizer como você pode expressar essas perícias mágicas e essa compreensão no seu dia-a-dia. Se ele perguntar algo, responda honestamente.
Bruxos machos podem ter essa experiência, não com o Velho Sábio, mas com a Velha Sábia que tece os transes. Aqui, acho que eles simplesmente fariam perguntas, e mais tarde pediriam ao Velho Sábio que lhes despertasse o sentimento dos mistérios, que abrangem o fino deleite da magia e uma busca da verdadeira sabedoria.
Agradeça ao Velho Sábio e peça a sua bênção. Você deve então retornar à caverna onde deixou sua vela. Peça ao seu guia familiar que lhe ensine o caminho. Atravesse a passagem da rocha, suba à parte mais alta, onde mais uma vez deve deixar a vela. E volte à clareira.
Agradeça ao seu guia. Retorne à esfera azul e então reverencie os Espíritos Guardiães. Desenhe ao redor de si uma esfera azul debruada de ouro. Quando estiver pronta, levante-se.
Você pode estar pensando sobre o que acontece quando um bruxo macho encontra a Mãe Deusa. Acho que ela o convida a um passeio no mar. O que ocorre depois, eu não sei. Mas penso que inclui a confiança e a interconexão de toda a vida. Aqui talvez se aplique a lição da baleia e do golfinho, mamíferos cuja inteligência pode ser igual à nossa e cuja sabedoria é muito maior. E talvez o bruxo tenha de nadar embaixo d'água.
Agora você encontrou a Deusa e o Deus, em transe. Não se iluda com a idéia de que há três Deusas e dois Deuses. Pois você já foi uma jovem, é agora a mãe e será um dia uma velha. Não significa que há três Tessas. Assim ocorre com a Deusa e o Deus: uma Deusa e um Deus, só que com vários aspectos.
Parece-me que só podemos entender a Deusa e o Deus em relação um com o outro. Pois de que valeria ser uma fêmea num mundo inteiramente feminino? A palavra perderia o seu significado. Similarmente, num mundo masculino, ele é macho em relação ao quê? Não quero dizer, é claro, que os sexos devem ser estritamente definidos em termos de representação de papéis. Quando a Deusa põe calças compridas e desentope um cano, ela ainda é mulher.
Por favor, escreva-me contando como foi o seu transe. Enviarei estas quatro cartas de uma vez. Antecipo o prazer de suas respostas. Espero que seu equinócio da primavera, o seu rito de Eostar, tenham sido ótimos.

Envio minhas bênçãos.
Rae

A Bruxa Solitária - Rae BethOnde histórias criam vida. Descubra agora