Capítulo 28

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Ladywell

Hillsbury

10 de junho de 1988

Querida Tessa,
Esta é a última carta que lhe envio por algum tempo. É necessário colocar em prática
certas idéias individualmente. Há uma tradição chamada "esvaziar o grupo", onde a Alta Sacerdotisa é separada de quase todo o contato com a família grupai, até que seu próprio grupo e seu estilo se estabeleçam completamente. Sendo bruxas (das sebes) solitárias, não nos envolvemos com grupos, mas vou aplicar um princípio parecido em você. Claro que isto não significa que não desejo sua visita. Espero-a no dia após o solstício de verão, como já combinamos. Antecipo com prazer o nosso encontro. Podemos falar sobre o "trabalho" e trocar notícias e idéias. Não haverá mais lições, por enquanto.
Entrementes, escrevo esta carta, sobre o que penso ser uma bruxa no dia-a-dia. Quais são as armadilhas, as responsabilidades, as satisfações? Também incluo um poema para você. É a minha visão muito pessoal do significado de ser bruxa; e espero que seja uma essência destilada, como todos os poemas. Esta carta é mais objetiva e tem mais detalhes. Leia-a primeiro.
Para iniciar, desejo falar sobre a sua auto-imagem, como bruxa. Um problema é a linha tênue entre um sentimento de superioridade e a humilhação. Você terá de percorrer esta linha toda a vida. De um lado, a arrogância, que coloca em perigo o fato de você se achar toda-poderosa, infalível. Seus feitiços funcionam! Você é, então, uma bruxa. A Deusa e o Deus e todos os Espíritos Guardiães a protegem sempre. Portanto, é invulnerável, não igual a homens e mulheres comuns. Penso que você não cairia nesta tolice. Mas algumas pessoas caem. Começam a acreditar que estão acima de qualquer falha, das dúvidas humanas e dos seus medos. Nossa cultura estimula essa ilusão, pois a linha funciona mais ou menos assim: "Se você é mesmo espiritual, tem realmente contato com os Deuses e os espíritos naturais, os reinos do Éter, os Reinos Psíquicos Interiores, então não precisa se preocupar com os problemas humanos. Mas se suas necessidades não estão satisfeitas, você não pode ser uma
bruxa de verdade, a despeito das suas afirmações."
Isto é bobagem. Nenhuma religião, nenhuma prática sobre a Terra pode ou deve
suprimir os "problemas humanos", seus defeitos e seus elos com a carne e o sangue. Pois a magia é apenas uma espécie de ferramenta, invocada em algumas situações. E a dignidade e a
satisfação de todas as criaturas são desejáveis, mas não uma panacéia para todos os males. Toda bruxa sabe que a perda de sua magia seria um grande empobrecimento. Para uma bruxa, a magia é a vida, como é a música para o compositor. No entanto, não há magia na existência que pode ou deve preencher a dádiva da sua humanidade comum.
Isto me traz ao outro lado daquela linha sutil, a humilhação (o lado que eu penso ser mais propenso a atingi-la). As pessoas às vezes dão a entender ou até exprimem diretamente: "O quê? Uma bruxa? E ainda se preocupa com dinheiro/um amor infeliz/problemas de habitação? Então não sabe praticar feitiços?"
Você pode dizer-lhes que a magia, como a patinação no gelo, envolve uma certa dose de tombos no caminho, mas que está chegando lá! Isto é provavelmente mais fácil do que explicar que suas prioridades mágicas se orientam, digamos, para o meio ambiente e não para a própria bolsa. (Todos a acusarão em silêncio de pretensiosa se disser isto.) Também é mais fácil explicar que alguns feitiços falham, porque você não se dedicou de todo o coração ao praticá-los. Talvez você esteja demasiadamente nervosa, ou com muito medo do que o feitiço possa demandar em sua vida cotidiana. Este tipo de sensação envolve seu desenvolvimento pessoal e ninguém a não ser você tem o direito de se intrometer.
As pessoas talvez queiram exigir que você mostre suas credenciais como "bruxa branca", provando que não tem defeitos. "O quê? Uma bruxa sacerdotisa que grita com as crianças/não se dá bem com a irmã/negligencia as visitas à tia doente e envelhecida? Pensei que você disse ser o caminho que traz força interior e paz."
Este tipo de contratempo deve ser tratado com humor. Porque, claro, você não é perfeita ou não estaria aqui na Terra, ainda aprendendo. Você pode responder que entraria para a Igreja cristã se tivesse aspirações à santidade. Enquanto isso, faz o melhor possível para aprender, crescer e se tornar integrada, e o caminho da bruxa solitária é a sua escolha. O humor combinado à humildade é a vereda recomendada. É melhor do que explicar a verdade a quem não escuta.
De fato, a humildade é sempre preferível à humilhação ou ao orgulho. E é provavelmente o nome daquela linha fina. Não preciso dizer tudo isso. Você já sabe. Mas decerto quero prepará-la para os cruéis questionadores.
Sua responsabilidade ante a bruxaria está em cumprir seu papel, em viver como bruxa
e sacerdotisa no dia-a-dia, em preservar a chama da magia natural queimando, em manter seu senso de encanto intacto. Também abrange não trazer descrédito ao caminho trilhado. Isto não significa que jamais deve exceder-se numa festa. Você não é, como eu já disse, perfeita. O descrédito real está no mau uso de sua magia, ou no mau uso de seu poder, ameaçando ou se
vangloriando. Ou deixar um vão imenso e hipócrita entre o que você prega (respeito à natureza) e o que pratica, em sua vida particular.
Os prazeres da bruxaria você já conhece. Com o rolar do tempo, eles se aprofundam, preenchem a sua vida, e assim há uma ressonância mágica em tudo que sentir. De tempos em tempos, seu prazer na sensibilidade psíquica atinge alturas que depois jamais esquece. Você terá visto todas as estações como se fossem recém-criadas, e mesmo assim muito antigas. Como nos primeiros dias. A essência da primavera, do verão, do outono e do inverno, em flores, cálidas paisagens, folhas brilhantes, frio e neve. Você terá visto o mundo das fadas, visto no mundo real. Pessoalmente, não sei como alguém que já viu tanta beleza poderia querer mais do que penetrar naquele reino outra vez. Não possuí-lo, mas somente estar lá. Isto, eu suponho, é o que distingue a bruxa e o pagão. Eles sabiam disso, e sempre trabalharam para trazer a beleza, buscando-a nos reinos etéricos; querendo talvez ajudar a Terra a remover todos os véus que a humanidade colocou sobre ela.
Os prazeres da bruxaria são fáceis de conhecer, porém difíceis de transmitir.
Espero que você aprecie o poema. Seu nome é "Resoluções de uma Bruxa" e considere-o um presente de solstício de verão.
Há uma tarefa que lhe peço desempenhar para mim. Mantenha seu Livro de Sombras sempre em dia durante o ano todo. Depois responda: "O que é uma Bruxa? Do seu ponto de vista, o que faz uma Bruxa?"
Quanto a mim, acho que é uma espécie de floresta interior que a pessoa tem. Há cavernas, flores, larvas e vermes, riachos prateados. As estações seguem umas às outras e há vento correndo entre as árvores, luz do Sol, sombras, luz de estrelas e a Lua. E há sempre uma espécie de chama, como a chama da vela na caverna, e ela brilha em toda a floresta, na Terra e em todas as criaturas. A bruxa também tem essa luz. Brilha na sua floresta interior. É chamada de algo como "sombra-de-fogo". Eu reconheço a luz nos olhos de outra bruxa. Já a vi brilhar nos seus olhos, Tessa.

Sabedoria, glória e muitas bênçãos. Rae

A Bruxa Solitária - Rae BethOnde histórias criam vida. Descubra agora