Marcas

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...

Quando acordei aquela manhã o quarto já estava vazio, mas havia comida na mesinha ao lado da cama e uma jarra de chá de alguma planta que não consegui identificar.

Sentei lentamente sentindo as feridas em meu corpo latejarem e me estiquei um pouco até a jarra, colocando o líquido amarelado na xícara ao seu lado, levei a xícara aos lábios e senti o cheiro meio amargo do conteúdo, pensei que gosto teria aquilo e se eu realmente deveria beber, mas lembrei que era necessário para minha recuperação, então apenas prendi a respiração e entornei o líquido da xícara, colocando-a de volta ao lugar e puxando uma maçã da cesta de frutas pra tirar o gosto amargo que ficou em minha boca.

Deitei novamente tentando relaxar os músculos e tentando pensar em outra coisa que não na minha dor, quando a porta do quarto se abriu e Maria a atravessou.

- Está se sentindo melhor? - perguntou minha mãe, eu podia ver as sombras ao redor de seus olhos e a vermelhidão por ter chorado durante a noite, toda vez que a mulher aparecia em meu quarto meu coração se apertava.

Fiz que sim com a cabeça acentindo a pergunta mesmo não tendo sentido diferença no meu estado, só queria que ela pudesse se sentir um pouco melhor, só queria ser um pouco mais forte por ela.

Alguem bateu duas vezes a porta e a empurrou um pouco.

- S.. será que eu poderia entrar? - Meu pai perguntou e meus olhos marejaram, minha mãe abriu espaço para que ele entrasse quando assenti.

Meu pai estava mil vezes pior que minha mãe e percebi que ela estava tentando ser forte por nós dois, o homem estava mais magro e a barba estava mal feita, os olhos estavam profundos e sem brilho algum, os cabelos bagunçados como se deitasse na cama e não conseguisse dormir, mas ainda assim se remexia de um lado para o outro tentando alcançar o sono.

Ele se aproximou do pé da cama e lá ficou, as vezes olhava pra mim e desviava os olhos, o que me fez sentir mal, queria esconder ainda mais meu corpo então puxei um pouco mais os lençois.

- perdão por não ter vindo antes Soffia... - Pediu. - E..eu tava...

- me dando espaço. - o interrompi. E os dois me olharam surpresos por eu ter falado. - eu entendo pai, sinto muito por não ter impedido...

- Não foi sua culpa. - dessa vez ele me interrompeu, meus olhos marejaram assim como os dele. - nunca vai ser sua culpa meu anjo. - ele se moveu como se fosse se aproximar e impediu a si mesmo. - culpe a mim Sof, por não ter conseguido protege-la, mas não a si mesma. - uma lágrima deixou seus olhos e minha mãe se aproximou dele e repousou uma de suas mãos sobre as costas do homem, demonstrando apoio.

- Não pai, o senhor não tem culpa alguma, se alguém é cupado, então esses são os homens que fizeram... o que fizeram... eu só queria sumir, ter conseguido lutar um pouco mais, ter corrido ou algo do tipo. -

- Não se castigue filha. - foi a vez de minha mãe me interromper. - não foi uma escolha sua. - ela se aproximou e segurou minhas mãos. - O mais importante é que ainda esta viva, que ainda temos um ao outro, as coisas vão melhorar, você vai ficar bem, estaremos sempre do seu lado.

- Tudo bem. - disse e sorri amarelo. - mãe podemos conversar em particular? - pedi, olhando meu pai que estava desconfortável em estar ali a minha frente, ele tocou a pontinha do meu dedo do pé antes de se virar de costas e passar pela porta fechando-a atrás de si.

- Aconteceu algo? - questionou preocupada. - está se sentindo mal?

- Não é isso. - respondi e continuei. - apenas vi que o pai não estava se sentindo bem e achei melhor que ele saisse um tempo.

- Seu pai só esta com medo de fazer algo de errado e você se sentir mal na presença dele Sof. - explicou.

- Eu entendo. - disse. - mãe, será que a senhora poderia me ajudar a tomar um banho de verdade? Faz quase uma semana que estou nessa cama tomando banho com lenços e... Eu não... Não consigo me sentir limpa é como se tudo que aconteceu ainda estivesse impregnado em mim e eu não consigo respirar a noite, lembrando de tudo isso.

Ela sorriu emocionada e mexeu em meus cabelos.

- Claro que posso ajudar. - afirmou. - vou pegar suas coisas e levar ao banheiro, você tem certeza que consegue fazer isso? - quis saber devido ao fato que, da última vez que tentei ficar de pé eu derrubei todas as coisas de cima da escrivaninha e acabei desmaiando com a tontura. Assenti afirmando que conseguiria e a mulher começou a separar minhas coisas dentro do quarto.

Comecei lentamente a desenfaixar meu corpo enquanto me sentava na cama, notei que a roxidão que havia na minha pele não estava mais tão escura e tinha tons esverdeados.

- Está pronta? - perguntou e fiz que sim, ela se aproximou e esticou os braços. - venha vou te ajudar.

Segurei em suas mãos enquanto ficava de pé, dá última vez que tentei sozinha minhas pernas pareciam não querer me obedecer e a dor que sentia fez com que eu desmaiasse, então tive medo de tentar de novo, mas dessa vez Maria estava comigo, então eu me sentia segura para fazer aquilo.

Ela me ajudou a caminhar até o banheiro e a remover as demais ataduras que restaram, eu notei quando seu olhar mudou, quando sua respiração ficou entrecortada e suas mãos começaram a tremer, quando a olhei nos olhos e ela me encarou, vi uma lágrima deixar seus olhos e logo depois inúmeras outras surgiram e ela acabou me deixando sozinha no banheiro, eu a entendia, como poderia não entender.

Não tive coragem de olhar pra mim, se o que a minha mãe viu lhe deixou tão desesperada o que aquilo faria comigo?

Com a ajuda das paredes me posicionei em baixo do chuveiro e o abri, as gotas de água pareciam pequenas agulhas caindo do céu e castigando a minha pele, respirei fundo enquanto as minhas lágrimas se misturavam a água e escorriam sobre mim até desaparecerem.

Dexei que água levasse toda a sujeira que eu sentia em meu corpo, mas não adiantava, eu olhava para meus braços e via as marcas na minha pele, então olhei para meu corpo, para como ele estava estragado na minha percepção e minha respiração começou a ficar ofegante.

Aquilo não saia de mim, não queria sair de mim, não adiantava quantas vezes eu esfregava com o sabonete, não importa quantas vezes eu deixava a água lavar a minha pele, ela não saia e eu não conseguia me sentir limpa, estava em todos os lugares, o sangue não desaparecia e eu não conseguia mais respirar direito, meus olhos embaçaram, era como ter voltado ao tempo, voltado aquele bosque e meu corpo estivesse esticado ao chão completamente quebrado.

Foi quando minha mãe voltou a entrar no banheiro, um pouco recuperada do choque e notou meu desespero.

- Ta bom Sof, ja pode sair dai, venha. - chamou, mas eu não quis escutar, não estava limpa o suficiente. - Soffia venha. - ela esticou a mão pra mim e me afastei assustada, me encolhendo até estar no chão do banheiro em posição fetal agarrando meu próprio corpo como se ele não me pertence-se, como se meu espírito estivesse prestes a se soltar dele. - Sof. Por favor meu bem, eu sinto muito eu não estar aqui antes, sinto muito eu ter sido fraca, mas prometo, não sair mais do seu lado, por favor, pare e me deixe ajudar, não quero que se machuque ainda mais.

Eu não dei ouvidos, mesmo deitada eu continuei o que estava fazendo, tentando limpar cada partícula do meu ser, estava desesperada demais, assustada de mais para entender que eu estava machucando a mim mesma, até sentir suas mãos impedirem as minhas, até sentir suas braços me abraçarem.

Ela passou as mãos por meus cabelos molhados e sussurou em meu ouvido.

- Esta tudo bem agora, vai ficar tudo bem, vamos vestir você e tirar você daqui certo? - falou minha mãe desligando o chuveiro e assenti, eu sentia que a cada passo que eu dava eu piorava tudo, que não havia sentido em continuar, mas a cada vez que eu a via lutando por mim, se levantando e sendo mais forte por nos duas, eu tinha vontade de lutar também.

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Anjo MeuOnde histórias criam vida. Descubra agora