O silêncio é um amigo que nunca trai.
Os papeis em minhas mãos umedeceram.
As letras ali pareciam se mexer entre as linhas retas. A tinta gasta intensificava sua cor, alternando entre o branco e preto. As coisas em minha volta rodavam e zumbiam. Tudo virara um caos. Um caos que aqui significa muito mais que desordem. Uma mistura de sentimentos ruins que eu absorvia ao longo dos anos. Posteriormente eu sabia que o caos permaneceria daquele mesmo jeito. Diferente e único, a incrível e caótica desordem da minha cabeça. E quando se há desordem, há mentira, traição. Naquela noite, a minha vida não era nada mais do que essas duas coisas.
Aquele pequeno cômodo parecia imenso devido a minha perca de profundidade. Não enxergavam mais nada além daquela carta, que era mais do que um monte de papeis. Serviu como chave, destrancando todas as mágoas que se escondiam em meu ser. Libertou os pecados e segredos que me angustiara sem saber que angustiavam. Nem a tempestade grosseira me incomodava mais, pois meus ouvidos convertiam o forte som para algo abafado e irrelevante. Nunca tinha visto meu corpo reagir desta forma tão incomum.
A carta fora relida mais duas vezes antes de solta-la no chão e sair em disparada daquele lugar.
Totalmente transtornada, desci as escadas em passos largos, ofegante. Abri a porta dos fundos e fui em direção ao quintal, rumo a floresta. Escutei Feen gritando meu nome, o ignorei completamente. A chuva ainda estava forte, fazendo com que as gotas me atingissem com força, junto da ventania que as redirecionavam.
Eu precisava de uma confirmação.
Corri o mais rápido que pude, pulando as grandes pedras e troncos jogados no caminho. Passei pelos arbustos extensos, as vezes machucando as mãos em cascos ásperos de vários tipos de arvores, pisando em poças de lama, até por fim, chegar ao local do celeiro. Minha roupa além de encharcada estava imunda. As lembranças vinham mais claras que os relâmpagos. Meus pulmões doíam e minha boca enxia de água toda vez que eu ofegava. Os cabelos tampavam a visão atrapalhando-me. Fui para a parte de trás do lugar abandonado e ajoelhei em um canto. Com as duas mãos, cavei a terra dali, descontrolada, mesclando as lagrimas com as gotas do céu. Meus dedos latejavam de dor enquanto eu os fincava no amontoado de terra.
"Eles devem estar aqui, tem que estar." Pensei.
Retirava o lamaçal com as duas mãos, curvando a coluna em movimentos sincronizados. A tempestade começara a diminuir, mas não cessava. Trovões poderosos invadiam as nuvens cinzas no alto até quando finalmente minhas mãos tocaram um caixote grande.
Os documentos estavam lá. Do jeito que eu havia os deixado quando criança.
Deitei naquele chão macio, forrado por grama e terra molhada e gritei. Gritei o mais alto que pude, não em um ato de desespero, mas em um gesto de libertação. Minhas memorias estavam ali, recuperadas. Chorei como Deus chorava do céu. Encolhida e com frio, no meio do campo verde, onde uma pequena correnteza de água passava em minha volta, levando consigo algumas flores deslocadas que seguiam juntas para longe dali. O frio castigava, mas a vontade de permanecer deitada, pelo menos por um tempo era maior.
VOCÊ ESTÁ LENDO
III - Liberdade Para Irrecuperáveis
Mistério / SuspenseDa sequencia de Rebelião dos Irrecuperáveis, Pandora Moon, 28 anos, castigada pelo passado agora se vê fazendo uma difícil escolha em abraçar uma causa que a tempos fora esquecida. Unindo forças com novos e antigos aliados, ela selará seu destino e...