A voz do povo é a voz de Deus

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Ah, bem, pensou ela, olhando o tablóide deixado em sua mesa de cabeceira com o café da manhã, minha vida está acabada.

Ela tinha certeza de que fora deixado ali de propósito por seus pais de maneira passivo-agressiva. Era o que Egeo sempre fazia, deixar pistas, no caminho, do quanto estava desapontado com ela. Quanto mais crescia e mais perto ficava de ser adulta, mais ele parecia infeliz com tudo que ela fazia. Mas não tinha problema! Ela estava feliz em seu relacionamento com o príncipe, e ele parecia gostar dela tanto quanto ela gostava dele. Seus pais fizeram caretas e tentaram convencê-la a terminar o relacionamento no momento em que contou sobre aquilo. Não era coisa de uma moça decente, disseram, se divertir por aí sendo candidatas aptas a uma Prova Real. "Mas é o próprio príncipe herdeiro", argumentara. "Pior ainda", responderam. Ele a veria como descartável, e justo antes da Prova? Ela seria vista como uma golpista, que queria apanhar o príncipe antes das outras.

Parthenope não pensaria nisso, concluiu, agarrando a alça da caneca de café. Estava feliz como estava, e nem uma matéria sensacionalista sobre como ela tinha sido flagrada tomando sorvete com Callum podia mudar isso. Bebeu um gole do líquido quente e açucarado, sorrindo feito uma tonta. Iria ouvir tanto dos pais por ter sido apanhada em seu romancezinho com o príncipe... Achou que valia a pena ler a matéria. Com certeza veria uma foto tirada às pressas de um canto escondido por algum paparazzi mal pago.

Entretanto, não foi a única que viu, e o choque a fez largar a caneca por cima de seus cobertores — derramou café pela cama inteira e ainda se queimou no processo. Incrédula, fitou com ódio a foto de Callum ao lado dela em um encontro, ambos sorrindo e se encarando apaixonadamente. E bem ao lado desta, uma foto dele e de ninguém mais, ninguém menos do que Esme Titanos, a vaca insípida que era sobrinha da rainha. Ela lançava a ele o mesmo olhar que a própria Parthenope lhe reservava, e pelo ângulo, não podia ver o dele, mas passava um braço em torno dos ombros dela protetoramente, de maneira diferente da qual um amigo, ou até um primo faria. Leu e releu a matéria extensa com os olhos queimando de raiva, tanta que quase não sentia a pele danificada pelo café. "A ambiciosa Parthenope Osanos", dizia. "Tentando dar o golpe da barriga em nosso querido príncipe? Querendo seduzi-lo por avaliar suas chances de vencer a Prova como tão nulas assim?" E um milhão de outras quinquilharias perniciosas e cruéis. Até a acusavam de querer estragar "a bonita relação entre Callum e Esme".

Furiosa, gritou. Não um grito qualquer, um urro, onde pôs toda sua mágoa, toda a traição daquilo. Era capaz de apostar que a víbora imbecil que era Esme tinha pagado para que escrevessem maculando a imagem dela e enaltecendo sua própria.
Bufando, o rosnado baixo preso em sua garganta, chutou para longe os cobertores, e junto a caneca, que se espatifou no processo. Dois guardas e uma criada apareceram à porta, preocupados com o grito da jovem senhora. Parthenope atirou a revista à cara de quem estivesse mais perto, e marchou para o banheiro.

—Limpem esta bagunça, e é melhor que esteja tudo pronto quando eu voltar se ainda desejarem ter uma cabeça sobre os ombros. — e bateu a porta à cara deles.

***

Sozinha no Pequeno Salão do palácio de Astraea, Esme Titanos saboreava sua vitória. Tinha em suas mãos uma xícara de delicada porcelana dourada com chá de hibisco até a metade, e bebericava dela distraidamente, entre uma mordida e outra de biscoitos decorados com glacê. A revista estava aberta à sua frente, sendo segurada por uma criada vermelha, e àquela hora a matéria principal deveria ser o assunto dos jornais e programas de futilidades que ela tanto adorava. Em breve, seria a fofoca do reino, como a cruel e ambiciosa Parthenope tentara roubar o amor da pobre Esme. Bem feito para ela. Ninguém mandara que aquela vadiazinha nojenta tentasse roubar o que era dela de direito. Callum havia nascido para ser seu, do mesmo jeito que a ridícula Eirian tinha nascido para ser uma piada no nome da família real.

Mordeu um dos biscoitos com cobertura roxa delicadamente, os pegando entre dois dedos com cuidado. Parthie merecia a má publicidade, dizia a si mesma com vigor. Qualquer uma que se pusesse no caminho merecia.

Riu mais uma vez, em triunfo. A voz do povo era a voz de Deus, diziam, e a voz do povo gritava "Parthenope é uma vagabunda traiçoeira".

***

O moreno fitou a irmã mais nova com desgosto. Naquele momento a odiava por ter trazido o assunto à mesa. A traidorazinha apenas saboreava sua salada de frutas com um ar servil e inocente, como se não tivesse acabado de selar o destino dele pelos próximos seis meses no mínimo.

Emmeline encarava o filho com decepção estampada no rosto. Esbravejava sobre como ele precisava pensar nas consequências de seus atos, e como a reputação de duas garotas nobres, bem nascidas, e poderosas tinha sido manchada pela incapacidade dele de se controlar. Callum não prestava a menor atenção nela. Só não revirava os olhos nas órbitas porque precisava manter a imagem.

O rei, Maximus Samos em toda sua glória matinal desalinhada, observava a troca, também com pouco interesse. Não achava nada de mais o filho aparecer por aí na companhia de moças, quaisquer fossem. Mas se a mulher precisava fazer disso um problema, tanto fazia para ele.

Leonard estava contido em sua própria carapaça. Achava por bem o primo receber reprimendas, era um idiota sem par que precisava ser posto no lugar. Não que os castigos da rainha fossem resultar em alguma coisa, não. Callum nunca aprendia, e tanto ela quanto a princesa eram imbecis em achar o contrário. Mas saborearia as restrições de Callum. Afinal de contas, quanto mais eles enjaulassem o leão, mais ele se tornaria incontrolável, e eventualmente explodiria, o que seria bem infeliz para o resto dos Samos. Mas não para ele.

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