O tempo corre, tic toc.

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Ele a encarou do outro lado da mesa. Ela encarou de volta.
—Preciso mesmo jogar em preto e prata? — Camille fez uma careta. Kurt se limitou a sorrir, de maneira apologética.
—Desculpe, Cam. Você jogou em preto e vermelho da última vez. — ele fez um sinal com a mão para que ela começasse. Os peões prata tinham a "vantagem" das peças brancas, sempre.
Jogavam apenas pelo passatempo. Nenhum ganhava do outro, sempre era assim. Às vezes Camille dizia que era um mau presságio para eles, claramente em sarcasmo — mesmo que um estivesse a ponto de sofrer um xeque-mate, o outro sempre preferiria o empate, afinal, apesar de serem peças Samos contra Calore, acima de tudo era Kurt contra Camille, e eles sempre se recusariam a estar nessa posição. Sempre pelo equilíbrio.
—O rei está subindo o rio. — ele anunciou. — Não embarcou ainda, mas o palacete recebeu ordens de preparo.
—O tempo corre. — ela encostou um cavalo prata no lábio, medindo sua jogada.
—Tic, toc. — ele batucou uma unha na mesa distraidamente.
—E sempre foge.
—Sempre para o mesmo lugar.
O verso era como uma predição amaldiçoada. Sulpicia repetia para Dante quando ele duvidava dela. Eles repetiam em conjunto quando algo se punha em movimento. Era uma ameaça e um medo.
—Eu nunca quis ser rainha, Kurt. — ela apoiou o rosto nas mãos, observando o tabuleiro.
—Eu sei. — Por um momento, desejou que tudo estivesse trocado. Fosse Eirian o príncipe e ele a candidata Calore muito daquilo estaria resolvido. Mas ele supunha que não era bom pensar nisso. O que tinham em mente exigia um certo desapego da parte de Camille. — Precisamos de duas peças chave para isso.
—Prossiga. — ela entregou um peão para a "morte". Ele derrubou este com outro peão.
—Um bispo. — ele imitou a posição dela sem perceber, também apoiado entediadamente sobre as mãos. — Só anda pelas laterais. — ela sorriu. Sabia de quem ele falava.
—E o outro, meu querido irmão?
Ele não respondeu, apenas olhou fundo dentro dos olhos dela, muito sério, e moveu uma única peça pelo tabuleiro de forma precisa e a derrubar outra peça propositalmente para o colo dela. Não soltou a própria peça.
Camille juntou com uma careta o rei do colo. Aquele rei prata, imbecil, dispendioso, ridículo. Ele certamente pareceria mais bonito com dez facadas no torso e sangue igualmente prata jorrando para fora de suas feridas. Kurt ainda a encarava. A peça, que não tinha soltado, era esculpida em mármore brilhante, polido, bonito. Mármore preto e vermelho. A rainha Calore.
Ela mordeu o lábio. Era a primeira vez que ele tinha derrubado o rei dela. Mas entendia o simbolismo. Seu tão-imbecil rei precisava de acesso, chance, oportunidade, e mais importante, de impunidade, para que sua morte corresse bem.
Permaneceram em silêncio, encarando um ao outro. Estavam com medo, e com razão. Qualquer deslize levaria a ambos para o Ossário. Se concordassem naquilo — e concordavam, de um jeito solene que apenas os gêmeos sabiam fazer —, precisavam de todo o cuidado do mundo. A feitura de reis era algo tão sensível.
Com delicadeza, ele retirou o rei de obsidiana e prata dos dedos dela e substituiu pela rainha de mármore. Fechou a mão dela em torno da peça com cuidado. A mensagem era clara.
Precisamos da rainha Calore.

***

Em outra parte de Archeon Oeste, uma jovem donzela atira facas em um alvo. Este alvo seria como qualquer outro alvo regular de arco e flecha. Branco com círculos pretos, um miolo vermelho.
Sozinha, mal humorada, nutrindo velhas raivas, inimizades, feridas, a donzela atira facas em seu alvo, trancada em seu escritório bagunçado, cheio de papéis e livros em todo lugar, e armas — suficientes para fazer do lugar um campo minado —, a donzela atira facas em seu alvo.
Se é que você pode chamá-la de donzela. Esse título parece ter sido arrancado dela à força, e ela se ressente disso, mas quem poderia culpá-la? Os boatos eram terríveis. Nem os prateados engoliam o tipo de crueldade que vinha dele.
Sozinha em seu escritório, Stachys Tyros atira facas em seu alvo. Todas atingem o centro, sempre. E no centro está a muito esfaqueada, sorridente imagem de Leonard Samos.
Você vai me pagar cada maldito centavo, Samos. Pensa a donzela, remoendo memórias que não são mais.

A Silver KnifeOnde histórias criam vida. Descubra agora