Egoísta como um imortal

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A fumaça se enrolava em espirais delicadas no ar acima deles. Flutuava para fora dos lábios entreabertos de Camille como se tivesse vida própria. A mão que segurava a piteira era a mesma que portava a pulseira de metal com o mecanismo gerador de faíscas. Mesmo nua era a única coisa que ela nunca tiraria. Pairava como uma sombra ominosa entre ela e Thomas — ela não confiava em ninguém, nem nele.
Ele não usava o poder, nem um pouco. Não gostava de saber as respostas dela antes que as desse. Tirava toda a graça da coisa.
Afagou o rosto dela devagar, ambos vagamente cobertos pelos lençóis de algodão egípcio. Quando não estava olhando para ele, o tipo de análise que dirigia a tudo era fria, ele percebeu.
Ela deixou claro que o que quer que acontecesse entre eles nascia e morria entre aquelas paredes. Mas apesar da clareza, nunca deixava de doer cada vez que precisava recusá-lo ou negar um apelo. Ele nunca pedia demais dela, nunca mais do que ela pudesse dar. Pior, ele estava disposto a perdê-la por quaisquer que fossem seus objetivos. Se Camille quisesse ir, podia ir, e não a impediria embora o rasgasse por dentro.
—Sabe que daqui a pouco eu preciso ir embora, certo? — ela não olhou para ele, e soltou mais fumaça, sua voz baixa.
—Fique mais. — ele franziu o cenho, suspirou. — Passe a noite. Ninguém se importaria.
—Eu me importaria. — fechou os olhos, e virou-se para o homem ao lado antes de voltar a abri-los. — Quereria um escândalo? Que a estupidez dos outros me sirva de exemplo. — E tão, tão perto da Prova... Completou seu cérebro.
—Não se inscreva. Diabo, deveríamos estar em um contrato de casamento, e você não teria que se preocupar com impressionar o rei e a rainha, nem com um casamento com um palerma que todos nós desprezamos. — ele suspirou, a afirmação não era um pedido. Thomas não seria cruel de pedir aquilo dela. Conhecia o fardo de Camille quase como se fosse o seu, mas não realmente.
—A honra é uma amante fria e egoísta, Lorde Eagrie. — ela voltou a fitar um ponto perdido no horizonte. Que eu nunca esqueça de seu peso, pensou.

***

Não soltou a cintura da garota mesmo ao afastar o rosto do dela. Longe do palácio, no terreno aberto, não haviam câmeras que necessitassem desvio. Os cavalos pareciam felizes em serem liberados para pastar na grama dali.
Eirian sorriu de forma inocente e voltou a beijá-lo. Não tinham tempo juntos. Nunca tinham. O palácio, cheio de olhos, ouvidos, câmeras, se punha como um obstáculo no relacionamento deles. Ela não se importaria de  fazer bem claro ao mundo que ele pertencia a ela e ela a ele, mas nunca era tão simples para Kurt. Ela tinha passado a aceitar aquilo, embora insistisse. Queria algo público, um contrato, um noivado em preto e vermelho, anunciado bem alto para o mundo inteiro ouvir. Mas ele não deixava. Com amargura, insistia nos seus pontos. Afetaria a irmã e suas chances, o mais importante deles, e, diabos, o rei era pai dela, quase tão importante quanto. Ela não via por que seria um problema, ele era quase um aprendiz do pai, encargo que, no momento em que o Calore aceitou, Callum se viu livre para desprezar. Ele via o problema aí. Como não ser acusado de querer pôr uma coroa na cabeça quando o pai dela tinha uma sobre a sua própria?
—Daqui a pouco precisaremos voltar. — encostou a testa na dela, os polegares fazendo círculos ansiosos nas costas da garota. Olhava dentro dos olhos dela, e ela era capaz de vez onde o carinho terminava e começava a apreensão que era causada pelo primeiro fator. Doía nela, e doía nele também.
—Precisamos mesmo? Ninguém vai notar se demorarmos mais vinte minutos ou três horas. — riu baixinho e apertou os braços em torno dele, a cabeça encostada no peito.
—Eu notaria, Eirian. — aproveitou a oportunidade para apertá-la também, firme, enquanto ambos estavam sentados sobre a grama. — Sirva seu irmão de exemplo, não nos cabe estar também em algum escândalo.
—Você e sua honra. — resmungou, bufando.
—Fria e egoísta como só um imortal sabe ser. — retrucou, ao levantar, ainda a segurando, firme contra si.

***

Ele encarava a morena, estupidificado por um momento. Ao mesmo tempo a queria para si e e queria destruí-la. Ambas as vontades eram conflitantes. Não conseguia decidir qual delas era mais forte.
Ela tratou o silêncio e a confusão dele com leviandade. Se não tinha certeza do que fazer, era problema dele. Alexis nunca tinha dito que o amava. Estava apenas indo com a maré. Alimentava as ideias de grandeza dele. Ele, órfão, sem um guia maior, sucumbia ao estímulo. A ideia sempre estivera lá, gritando, e ele sempre dera ouvidos. Ela apenas juntara sua voz à interna dele.
—Algum problema, Lorde Samos? — ela piscou inocentemente. Ele pareceu titubear e engasgar nas palavras antes de responder.
—Não. Estava apenas pensando.
—E no que pensa vossa senhoria? — o tom continuava inocente, embora a vontade dela às vezes fosse de destilar o veneno que trazia escondido.
—Penso em uma rainha. — sorriu, parecendo ter achado uma solução a seus conflitos.
—Pensa em sua majestade? Ou por ventura na falecida, que os deuses a tenham, rainha Alyssa?
Ele pareceu remoer ainda as palavras. Não queria admiti-las ou dizê-las em voz alta. Quis estrangular a outra por um momento, a mesma vozinha que falava de ilusões de realeza era a própria mandante. Estrangule-a, dizia. Assista ela sufocar nas suas mãos e seu rosto perder a cor, suas mãos arranharem e seus pés chutarem, lutando por ar. Assista a vida deixar o corpo dela, a única coisa no caminho de sua grandeza. Mas ele preferiu empurrar a voz para o lado, e levantou o queixo da garota, ainda com os gritos a seus ouvidos, mas não a estrangulou. Beijou-a.
—Penso em uma rainha Haven ao lado de um rei magnetron. — Não especificou que rei. Não era necessário. Ao fim de todo aquele jogo ele planejava ser o único magnetron elegível para ocupar aquele posto.

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