Camille
Eu sempre soube que subiria em um altar, acompanhada de meu pai, para ser vendida a alguém por uma razão qualquer. A despeito de minha venda, eu sabia que teria ao menos um aliado na multidão. Os olhos dele eram iguais aos meus, sempre foram, sempre seriam. E no entanto, enquanto ambos encarávamos o teto do quarto dele, em nossa versão de vinte e um anos de idade de um forte de travesseiros, eu sabia que tanto eu quanto Kurt tentávamos processar o mesmo tipo de dissociação.
O casamento aconteceria no dia seguinte, ao pôr do sol. E não era de noite ainda. Mas tínhamos fechado as cortinas, porque não era a mesma coisa com a luz sobre o rosto. Felicidades ou não, ainda estávamos sendo separados de uma maneira cruel. Anéis de noivado e vestidos brancos eram o corte final, e doía.
—Às vezes eu imagino como seria se tivéssemos decidido que não queríamos nada com a coroa. O quão mais pacífico seria dormir à noite. — ele suspirou, ainda encarando o teto.
—Eu estaria me preparando para outro casamento, agora. Teria um anel de ouro preto com pedras brancas. — respondo, me sentindo tão exausta quanto ele soa.
—Seria tão bom não viver sob a sombra de três ancestrais que fizeram as escolhas erradas.
Eu concordo com ele. Se Agni Calore tivesse sido um pai melhor, talvez Seraphine não tivesse crescido fraca, faminta, apenas saciada pelo poder. Se Marsala Nolle tivesse insistido na importância de sua filha, talvez ela não tivesse visto em seu corpo morto, ainda quente, a oportunidade de sua vida. Talvez se Ishan ou Brandt tivessem visto o potencial bélico de sua irmã, ela não tivesse estado tão disposta a arrancar a coroa ardente de suas mãos. Mas pais Calore costumavam ter o péssimo hábito de só se importar com os herdeiros, rainhas com pouco espírito guerreiro viam nas filhas apenas uma futura esposa, e herdeiros criados por pais displicentes não viam no feminino um perigo. Seraphine Calore era filha das consequências, e pagou com moeda de ferro aquilo que os irmãos compravam com ouro. Tinha posto o reino a seus pés pela força, não pelo amor. E ainda assim, foi fraca demais para fazer a última coisa, a única que faltava para assegurar a permanência de seus descendentes no trono. Porque um Calore ainda era um Calore, e ela não podia passar os irmãos pela espada. E sou obrigada a discordar. Não serei a fraca. Minha paz só se consegue com minha descendência no trono.
—A paz se conquista, Kurt. Você esquece daqueles que nos prejudicaram, e você esquece o que nós ainda temos a perder, e as dignidades que ainda precisamos roubar para acertar com um sussurro aquilo que deveria ter sido respondido com guerra quando aconteceu. Você me pertence assim como eu pertenço a você, e até que tudo esteja dito e feito você não esquecerá, e não escolherá ferro a fogo. Eu serei rainha, e gerarei um rei para este trono, e você, meu irmão, me prestará tributo como me deve por sustentar isso em seu lugar.
A única resposta dele foi fechar os olhos por um longo momento, e por fim assentir em concordância.
—E como sempre, eternamente serei grato que a coroa não me cabe à cabeça, não é assim, irmã?
—É assim. Não baixe a guarda, Kurtis, nunca. Eu posso ser a rainha, mas você é quem dorme com a filha do aço. Com a única que restou. — sorrio, acho graça na ideia. — Talvez eu permita que o filho de Cantrix herde a fortuna Samos. Seria uma bondadezinha. Não matar aço com aço.
—Às vezes eu me preocupo com sua sanidade. — ele sorri, e beija minha testa. Esta é uma pequena paz.
—Eu sou tão normal quanto você.
—Então talvez estejamos ambos loucos.
***
A imagem que me encara de volta do espelho é muito mais majestosa do que deveria. Parece que, afinal, o papel de rainha pudica nunca me coube. Um número de damas da corte também me rodeia, mas não adianta. São como pardais perto de uma águia. Pardais belos e coloridos, sem dúvida, mas pardais de qualquer forma, quebradiços, pequenos, substituíveis.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Silver Knife
Fanfiction"[...] Você esquece daqueles que nos prejudicaram, e você esquece o que nós ainda temos a perder, e as dignidades que ainda precisamos roubar para acertar com um sussurro aquilo que deveria ter sido respondido com guerra quando aconteceu. Você me pe...