Do funciono e derrota

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Encarou o espelho e soltou um grunhido frustrado. Estava pronta para começar outro dia lindo, com as besteiras usuais que dizia a si mesma todo dia ao acordar, mas naquela manhã em especial estava se sentindo especialmente... Como uma criatura habitando um corpo. Sabe como é, pensou, eu só trabalho aqui.
Tirou o pó branco da gaveta na penteadeira, e começou a cobrir o rosto com ele. Tinha visto aquilo em um dos livros sobre o velho mundo e achara formidável. Se tornou sua principal máscara. Apenas o lábio inferior pintado de preto. As linhas em suas pálpebras superiores a faziam parecer mais etérea. Como o predador que não se sentia. A túnica que tinha vestido para o dia era de um verde escuro adornado com dourado, as cores de sua casa. Sentia vontade de revirar os olhos pensando nisso.
Não esboçou reação quando Ivayne basicamente invadiu seu quarto. Estava acostumada com a irmã fazendo aquilo. E naquela manhã, enquanto ela se sentia especialmente opaca, Ivayne estava radiante.
—Você ouviu, ouviu? — ela praticamente pulava, sentada na cama dela.
—Sobre o que eu deveria ouvir? — apenas continuou a pintar o rosto.
—Ah, a Prova Real, Friedrich! Papai diz que eu sou esperada para participar! Estaremos todos no Palacete, junto de todas as outras pessoas. Vai ser o evento social da geração. — ela cobriu a boca para soltar um risinho.
A Prova Real. Aquele insípido evento em que todas as filhas das casas aptas deveriam se pavonear em uma arena para a rainha e o rei. Naquele momento quase agradeceu a sorte de não precisar participar dele. Fez a última linha no rosto, e virou dramaticamente para a irmã.
—Realmente quer se dispor como um objeto para ninguém menos que Callum Samos? O príncipe inconsequente?
—Fried, que garota não quereria se tornar rainha? Por ambição, amor, ou status? Imagine o quanto você poderia fazer sendo irmão da rainha! — ela passou a assumir sua pose de felino. Tinha um pouco de medo pelas concorrentes de Ivayne. A irmã lutaria com unhas e dentes pela chance.
Eu, eu não quero ser rainha, Fried pensou consigo mesma. Porque quereria ganhar como prêmio por todo meu esforço e excelência um marido acéfalo?
—Seamus aspira a derrota de Minerva Merandus. — Ivayne sorriu. — Pretende tirar os papéis de noivado do bolso assim que for anunciado que a vencedora não foi ela. Ou assim me parece. Não entendo por que tanto alvoroço. Minerva não é tudo isso. Não tem a metade da beleza de Roslyn.
—A beleza de Roslyn vem imbuída de tolice e veneno inútil, e ele sabe disso. — Sorte para ele, pensou. Ao menos Minerva é uma mulher sensata.
—Não seja ridículo, irmão. Para que precisaria de algo além de beleza e poder? Quem gerirá a Casa é ele, ela só precisa aparecer bonita em público. — jogou os cabelos por cima do ombro, desconsiderando o argumento.
Ah, deuses, pensou consigo mesma. Se é isso que Ivayne acha que é ser rainha, é melhor que não ganhe.

***

Kallai Gliacon não era um homem clemente. Os criados tinham medo dele com razão, qualquer desculpa que dessem era suficiente para execução. Trabalhar no palácio de Greatwoods era como ter uma espada sobre a cabeça. Para ele, vermelhos eram infimamente substituíveis, e se não estavam se comportando como ele queria, não deveriam permitir que decepcionassem mais ninguém. "É como funciona neste mundo", dizia.
Elisa comia carrancuda seu almoço. Os pais não estavam ali outra vez, mas não era nada de novo. A tensão podia ser cortada com uma faca. Sempre era assim quando não havia ninguém por perto para controlar Kallai. Ela sabia que em algum lugar dentro do palácio, também comiam as cinco favoritas do irmão, privilegiadas e sempre na corda bamba. Ele sempre cansava delas e as substituía assim que estivesse entediado. Ninguém se importava, eram vermelhas, feitas para servir, e serviriam do jeito que fosse útil. Mas eram dele. Pelo tempo de duração da servidão delas, eram dele. Era uma das razões da apreensão dela. Porque por algumas semanas já, ela andava roubando a favorita. Não apenas uma delas. A favorita.
—Como estamos hoje? Animadas com a ideia da Prova Real, penso eu. — ele bebeu um gole da própria taça, esperando respostas obedientes e treinadas.
—Com certeza, irmão. — respondeu Catrice.
—Como nunca. — engoliu Elisa. — Com sua licença, estou me retirando para cumprir com meus deveres.
—Toda. — ele lançou a ela um olhar gelado, que ela temia ser de alguém que sabia de mais do que ela gostaria.
Levantou-se, graciosamente, e andou sem uma falha por seu caminho pelos corredores. Medo dele ou não, ela ainda era uma Gliacon, e precisava ser a senhora que tinha sido treinada a dura pena para ser.
Os deveres dela constituíam de pequenas partes administrativas. Ela tinha de aprender a ser útil. Geralmente fazia isso do próprio escritório, uma sala com janelas que iam do chão ao teto, bem iluminada e confortável.
Charlotte, mais conhecida como Lotte dentre a criadagem, era uma moça baixa e curvilínea, pele bronzeada, cabelos muito escuros, e olhos igualmente escuros. A favorita. A possessividade do irmão por ela ia a limites absurdos. Ninguém tocava em Lotte, e, de um tempo adiante, se falava com Lotte o mínimo possível. Lotte acontecia de ser a criada pessoal dela. Kallai não podia fazer nada se visse Elisa falando com a moça, ou qualquer coisa dessas. Mas não imaginava o que faria se descobrisse sobre as duas. Talvez algo impensável.
A própria veio lhe trazer o chá que bebia depois das refeições. Verde, sem açúcar. Levantou, como que fingindo que procurava um livro. Cuidou para que uma película de gelo cobrisse as câmeras. Só então, tomou as mãos dela nas suas e beijou-lhe as juntas dos dedos, o olhar quase suplicante. Lotte lhe acariciou o rosto, os cabelos. Beijou sua testa, e então seus lábios. Durou apenas um momento. Ela precisava ir. E foi, com olhos pesarosos.
Afinal, era assim que o mundo funcionava, e ela pertencia a Kallai.

A Silver KnifeOnde histórias criam vida. Descubra agora