Camille chutou os saltos dos pés com alguma raiva. A porta estava trancada atrás dela. Ninguém precisava saber que ela estava enfurecida. Kurt estava lá, esperando. Lia um livro, sentado numa das poltronas macias do quarto. Quando Leonard mostrara a menor intenção de falar com ela, pediu que ele esperasse lá. Ele certamente quereria saber o resultado, visto que o afetava.
Chegavam a ponto de ter os mesmos livros, quase. Ironicamente, cerca de vinte em cem dos dele eram romances, e o mesmo número dos dela era de suspense. O volume que ele lia era o mais que antigo 'O Príncipe'. Apropriado.
—Como foi? — o tom de Kurt sugeria um amigável passeio pelo jardim.
—Leonard é um ser desprovido de massa neuronal que acha que preciso dele para me coroar rainha.
—Nada de novo, então. — ele virou uma página.
—Nada de novo, não. — ela suspirou.— O que está lendo? — ela se atirou na cama, vestido e tudo.
—O Príncipe.
—Maquiavel nunca envelhece. — ela riu sem emoção, e lavantou. — Me ajude a tirar esta coisa.
No meio do caminho, deixou a diadema que usava por cima da penteadeira. Se postou de costas na frente dele, e ele abaixou o zíper do vestido. Ela saiu dele no mesmo momento, a peça abandonada em uma poça de tecido prata e vermelho.
—Vá pôr uma roupa. — ele fez uma careta. Ela vestiu um suéter longo o suficiente para servir de vestido.
—Não me torre a paciência, Kurt. — Camille se jogou na cama. — Em suma. Concordamos em fazer Leonard Samos rei, e ele concorda em me fazer rainha e me manter. Por que está folheando Maquiavel?
—Procurando algo que seja útil na Prova. Já não era sem tempo que fosse convocada, estão pedindo por isso desde que ele tinha dezesseis. Talvez porque tenham falhadoem convencê-lo a escolher uma favorita. Maximus não sabe do perigo que tem nas mãos. — ele suspirou.
—Maximus é o epítomo da estupidez. Seu real pescoço anseia por uma faca bem afiada.
—Logo. Ele há de ser enterrado no mausoléu dos Samos assim que tudo isso se fizer pronto. Maximus, Emmeline, Leonard, possivelmente Callum... — Virou a página, encarando o papel com um olhar gelado. — Todos eles. Menos Eirian. Ela me pertence e tem mais serventia viva.
Ela grunhiu alto. Mais do que seria considerado adequado a ela em público. Não gostava da cria real de aço. Era tola, fraca. Seu mundo tinha pouco espaço para os fracos, e usualmente o pouco espaço era debaixo de seus saltos ou em camas de morte.
—E o que pertence a mim, Kurt? — ela cuspiu, as palavras com gosto de veneno na boca. — Todos tem alguém. Até sua insípida Samos pertence a alguém. — e adicionou, num tom de voz amargo. — Sempre me considerei uma criatura tão amável... Me diga, Kurtis, quem me pertence? Quando tudo estiver dito e feito, quem vai juntar os cacos junto de mim.
Ele encarou a outra. Tinha os olhos fixos nela, a boca entreaberta, parecia congelado. Ela se deu por vencida. Ele não tinha uma resposta, tinha?
—Cam, eu pertenço a você. — ele franziu o cenho, e levantou para sentar na beira da cama. — Quando tudo estiver dito e feito, quando você estiver sozinha debaixo de uma coroa de ouro vermelho, eu vou estar lá. Eu sempre vou estar lá. O poder é solitário, sim, mas sangue não é água.
—Sim, Kurt, sangue não é água. — ela rosnou. — Continue com seus sonhos de se casar com a filha do aço que te tem pela garganta. Esqueça que eu disse alguma coisa.
—Se você tem uma solução, sou todo ouvidos.
—Solução para o quê.
—Camille, eu não sou um deus, a despeito do que queira que acreditem. Eu posso pô-la no trono, posso mantê-la lá, posso ficar do seu lado até o último momento, mas há limites para o que eu posso suprir. Me diga do que precisa. — a tensão era enorme entre ambos. O estresse os fazia frustrados um com o outro. Ele não entendia, entendia?
—Eu preciso de muita coisa. — ela murmurou, afundando na cama como a idade que tinha. — Terei que aceitar tudo que não quero.
—Por um fim. Todos fazemos sacrifícios. — ele fechou os olhos.
—Ninguém fará sacrifícios maiores que os meus, Kurt. — a verdade nas palavras era irrefutável.
—Ainda há tempo de recuar. Não precisa fazer isso, eu não vou forçar você, e não vou permitir que seja de uma maneira que não quer. Pode escolher alguém, eu mesmo redijo o contrato de casam-
—NÃO. Não. — repetiu, balançando a cabeça. — Me convença. Me convença a continuar. — Quisera eu, pensou. Quisera eu ser uma qualquer.
—Ninguém lembrará de mim. — ele sorriu, não sem certa melancolia. — Lembrarão de você. Gerações no futuro, filhos, anos, reis, lembrarão de você. Apenas você. A rainha Calore que lhes deu origem.
—FILHOS MAGNETRON DO MEU MARIDO SAMOS. — ela respondeu. Teria chorado, teria chorado, mas as lágrimas tinham queimado antes de escorrer.
—Sempre existe a possibilidade de que sejam ardentes. Uma porcentagem pequena herda os poderes da mãe, embora dentro da corte estes geralmente morram antes da idade adulta em "circunstâncias misteriosas". — Ele deu de ombros, sincero nas palavras. Ela suspirou e arrefereu, mas não por completo.
—Ata, pô.
Ele parou, e piscou algumas vezes, então levantou uma sobrancelha.
—... Você disse "ata pô"?!
—Irmãozinho querido. Sua fé me constrange. — ela suspirou. — Você, confiando no milagre? Esperava mais de você. Estamos fadados ao fracasso, sabe. Não me adianta estar no trono se meu filho for um magnetron. Não é um herdeiro Calore. A dinastia não voltaria.
—Infelizmente, não há nada que possamos fazer sobre is-... — alguma coisa pareceu cruzar a mente dele. O que quer que fosse, ele não gostou nem um pouco, e balançou a cabeça com uma expressão enojada. — ...-so.
—Kurt... — o tom dela era incisivo.
—Não.
—Me conte. — ele balançou a cabeça. — Me conte! Kurtis Calder Calore, diga no que pensou antes que eu decida que sua pele daria um bom casaco! — ela rosnou.
—Tem uma solução, certo?! — ele bufou, desconcertado. — Mas... Não. Não. É ruim. Deuses, é ruim.
—POIS ME CONTE! — ela já perdia a paciência.
Ele a olhou nos olhos, e franziu o cenho, também de maneira incisiva. Ela demorou pouco mais de dois segundos para entender.
—Deuses, a que ponto chegamos. — e afundou totalmente. — Estamos realmente considerando... Isso?!
—Não estamos considerando nada! Eu disse que era uma solução, não que eu concordava com ela. — ele balançava a cabeça enquanto falava.
—Oh, deuses, estamos considerando isso. — ela grunhiu. — Até as últimas consequências, certo? — sussurrou, para si mesma.
—Camille...! — ele começou, exasperado.
—É a única maneira, não é? — ele lutou com as palavras o quanto pôde.
—Não temos outra nem ninguém mais para executá-la. — baixou a cabeça, de olhos fechados.—Então que seja. Estamos planejando matar o rei, a rainha, e pelo menos mais um do clã deles, além de executar um golpe. Tudo que estamos fazendo é ilegal. O que é mais um crime? — ela também não parecia nem um pouco feliz com a ideia, mas muito mais resignada do que ele.
—Quando foi que nos tornamos tão incorrigíveis? — ele desmontou sobre a cama, cara no colchão.
—Alguns séculos atrás, na verdade.
—Está mesmo disposta a fazer isso? — ele suspirou, e levantou para ir embora.
—Até as últimas consequências, Kurt. — ela respondeu. — Não importa o quão ruins sejam.
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A Silver Knife
Fanfiction"[...] Você esquece daqueles que nos prejudicaram, e você esquece o que nós ainda temos a perder, e as dignidades que ainda precisamos roubar para acertar com um sussurro aquilo que deveria ter sido respondido com guerra quando aconteceu. Você me pe...