CAPÍTULO SEIS

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     — Não — Magnus falou com convicção enquanto se afastava de mim — Isso não é possível. Fadas não são realmente descendentes de demônios hoje em dia, elas se reproduzem normalmente, como os humanos.
     Pelo menos essa era a versão do Códex. Eu já não sabia mais em que ou em quem acreditar, porém.
     A Rainha Seelie seria mesmo irmã de Magnus? Com toda aquela frieza, todo aquele rancor... Ela tinha permitido que Sebastian o levasse para Edom como prisioneiro! Que irmã faria isso? Mesmo alguém como ela, com tanto tempo de vida e tantas artimanhas preparadas, não poderia chegar ao ponto de...
     Parei meus pensamentos nesse momento exato. Eu era tão ingênuo assim? Não, não mais. Valentin havia se disposto a sacrificar a esposa e os filhos em nome da causa que defendia, então nada impedia que Seelie, uma Rainha que obviamente não se importava nem mesmo com seu povo, fizesse isso também. Valentin era apenas um homem; poderoso, sim, mas só um homem. E se ele foi capaz de causar a destruição que causou, Seelie poderia ser ainda pior. Com os demônios ao seu lado ela traria mais dor e perdas do que eu gostaria de imaginar.
     Veio de repente à minha mente a voz de Magnus, no que parecia ser outra vida, falando sobre seu sonho, sua previsão. As ruas sombrias, o sangue escorrendo como água pelas calçadas... Não pensamos na época que seria Sebastian o causador daquilo tudo? Talvez estivéssemos errados, então. Não teríamos imaginado que algo pior nos esperava mais à frente, mas, pelo visto, o destino tinha terríveis inclinações a tentar nos matar de diversas formas diferentes.
     — Como você disse — Talita começou — Hoje em dia as fadas se reproduzem entre si e muito raramente com humanos. Mas Seelie e Unseelie são muito mais velhas do que vocês pensam. Elas foram as primeiras​, foi com o nascimento delas que o Povo das Fadas surgiu.
     — Então as lendas antigas são verdadeiras? — Jace perguntou — O lance todo sobre Anjos e Demônios terem dado origem às fadas?
     O curioso era que todos nós, talvez com exceção apenas de Izzy, começávamos a conversar com Talita como se ela fosse uma inesgotável fonte de conhecimento. Era como se ninguém tivesse mais dúvida alguma de que ela falava a verdade. Todos queríamos respostas.
     — Sim e não — Talita disse — Quando Asmodeus caiu junto com Lúcifer, deixou no Céu alguém que o amava, por assim dizer. Não era propriamente um Anjo, ela era um dos Espíritos Missionários, seres com aura e talentos angelicais que são enviados à terra para cumprir missões divinas. Geralmente vêm como médicos e trazem a cura de uma doença misteriosa que, quase sempre, foi causada por algum demônio desgarrado. O nome dela era Sarah.
     "Quando recebeu a missão de descer e avaliar uma epidemia que estava devastando uma cidadezinha, Asmodeus a chamou. E ela foi até ele, seja lá em que Reino Demoníaco ele estivesse. Ela engravidou, mas obviamente foi expulsa do Céu e acabou virando um demônio também, passando a se chamar Sarahay. As crianças, no entanto, foram geradas quando ela ainda era um Espírito angelical.
     "Seelie e Unseelie se relacionaram com muitos humanos para originar a grande população de fadas que vêem hoje, podem ter certeza disso."
     Eu estava de queixo caído.
Aquilo parecia tão absurdo, tão improvável e maluco... Mas a história do nascimento de Talita também era tudo isso, não? E eu acreditava que era verdadeira. E se Raziel, sendo um Anjo, tinha sido capaz de se apaixonar por uma humana, talvez não fosse tão louco que outro ser celestial tivesse se apaixonado também. OK, se apaixonar por uma humana não era a mesma coisa que transar com um demônio, mas eu já tinha visto muita coisa nessa vida. Nada mais era impossível àquela altura.
     — Isso resolve o enigma, então — Clary murmurou — a Rainha Seelie acredita que pode confiar em Asmodeus.
     — Errado — Magnus falou — ela não é tola o bastante para achar que pode depositar sequer o menor dos votos de confiança nessa parceria. Meu pai não é um exemplo de lealdade.
     — Ela provavelmente se considera astuta o bastante para superar Asmodeus — falei — Os séculos devem ter aumentado a prepotência e diminuído a droga da inteligência naquela cabeça ruiva.
     Olhei para Clary.
     — Sem ofensas — completei, percebendo minha pequena gafe.
     Isso serviu para fazer Jace rir, ao menos.
     — O ruivo dos cabelos da Rainha não é nem comparáveis ao da Clary, Alexander Gideon Lightwood — ele disse.
     Foi minha vez de engasgar.
     Honestamente, que momento mais impróprio para expor a porcaria do meu nome do meio. Jace me pagaria.
     — Gideon? — Simon perguntou com zombaria.
     — Não acho que seja hora para brincadeiras, Lewis — respondi na tentativa de soar o mais digno possível. Aquele era mesmo um nome péssimo.
     — Realmente — Talita concordou — Há muito o que preciso fazer. Não espero que acreditem em tudo o que contei e nem que se disponham a me ajudar, mas peço que não contem à Clave sobre minha existência. Ainda não.
     — Não precisa esperar nada mesmo — Izzy respondeu. Tive medo que ela fosse reiniciar a briga com Talita, ou que começasse a discutir por algum motivo. Não foi à toa que me surpreendi quando, depois de uma pausa, ela concluiu: — Nós acreditamos em você. Quer dizer, eu acredito. E se você convenceu a mim, tenho certeza que os outros já foram convencidos também. Eu sou a mais difícil daqui, caso ainda não tenha percebido.
     Jace riu, Simon tentou mais uma vez disfarçar a risada com um acesso de tosse e Magnus cobriu a boca com a mão cheia de anéis. Eu me mantive firme unicamente por Izzy ser minha irmã, do contrário teria gargalhado abertamente. Meus tempos de discrição faziam parte do passado em momentos como aquele.
     — Alguém gostaria de uma chicotada? — Izzy ameaçou, séria.
     Todos pararam de rir.
     — Talvez seja melhor guardar seu chicote para os demônios, Isabelle — Talita aconselhou. Ela estava fazendo uma brincadeira ou era impressão minha?
     — Ótimo — Izzy respondeu — E qual é o seu plano para impedir a catástrofe iminente, Menina Anjo?
     — Se não for muito, gostaria que usasse meu nome quando se referir a mim, assim como faço com vocês.
     Izzy não respondeu.
     Talvez aquelas duas não devessem ficar muito próximas, no final das contas.
     — Enfim — Talita tornou a suspirar — Eu recebi instruções claras. Preciso contatar os Submundanos e prevenir a todos eles do perigo que correm. Inclusive o Povo das Fadas. E só depois me encontrarei com a Clave. Se eles acreditarem em mim, então deveremos reforçar as barreiras e convocar os Irmãos do Silêncio e as Irmãs de Ferro. Eles saberão lidar com a situação melhor do que qualquer Nephilim.
     — Espere aí — pedi — Você disse "inclusive o Povo das Fadas"?
     Eu devia ter ouvido errado, não era possível que Talita tivesse realmente dito que pretendia avisar justamente quem estava contra nós.
     — Sim, Alexander — ela afirmou — Talvez eu não tenha me expressado adequadamente antes. A Rainha Seelie se aliou aos demônios, mas não a Unseelie.
     — E você acha provável que a outra Rainha não vá participar disso? — perguntei. Parecia loucura para mim. De novo.
     — Eu não cheguei até aqui pensando em probabilidades. O Anjo Miguel me deu certeza absoluta de que posso tentar uma aproximação com a Corte de Unseelie. É o que farei.
     Eu começava a perceber que aquela era uma mulher que não se desviaria de seu objetivo por nada. Ela era decidida ao extremo.
     Mas eu não conseguia acreditar que o Povo das Fadas, mesmo não sendo da Corte de Seelie, nos ajudaria. Se a Rainha que conhecíamos era tão irreversivelmente má, eu não via como sua irmã gêmea seria diferente. Foi esse pensamento que verbalizei.
     E não foi Talita quem o respondeu.
     — Alec — Clary estava bem irritada ao falar — O sangue que corre em nossas veias não significa nada. Meu irmão era um monstro, meu pai era um monstro, mas os laços familiares não me tornaram igual a eles.
     Foi como um soco na cara.
     Ao que parecia, aquela noite seria voltada às minhas falhas com Clary.
     — Assim como eu sou diferente de Seelie — Magnus murmurou — mesmo sendo irmão dela.
     Mais um soco.
     — Vocês acreditam mesmo em mim? — Talita perguntou de repente.
     — Sim — respondemos todos em uníssono.
     — Eu só tenho uma dúvida — Jace disse — Você falou sobre as providências que precisamos tomar caso a Clave acredite em tudo isso. Mas e se eles não acreditarem?
     Talita voltou o rosto para cima e olhou para o teto. Era como se tentasse admirar o céu acima do telhado do Java Jones.
     — Então vou fazer tudo por conta própria — respondeu sem vacilar — Fui treinada para agir sozinha e para não parar por nada. Não será a teimosia dos Nephilim ou a traição de Seelie que me fará desistir. Os Anjos confiaram em mim. E eu nasci para vencer minhas batalhas, independente de quem seja o inimigo. Mesmo que tenha que morrer para isso.

Os Instrumentos Mortais - Cidade dos Anjos Renascidos (concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora