CAPÍTULO VINTE E QUATRO

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    Os dias foram passando e tornaram-se semanas. Minha adaptação ficava mais fácil dia após dia. Cada vez mais eu era capaz de sentir. Cada vez mais eu era capaz de entender. Em um piscar de olhos, dois meses já haviam se passado desde que eu pisara na terra pela primeira vez. Dois meses.
    Pela manhã, Tavvy só aceitava tomar café após sentar-se ao meu lado ou em meu colo. Às tardes, Emma fazia o impossível para me convencer a treiná-la, assim como Julian. Vez ou outra, Ty e Livvy me procuravam para conversar. Uma vez por semana, Dru pedia conselhos musicais. E todos os dias, sem excessões, Alec me encontrava em meus cantos reclusos e importunava-me até que eu aceitasse conversar. Durante horas ele perguntava sobre minha infância, sobre minha juventude, sobre minha família celestial. E eu contava tudo o que me era permitido contar. Alec era um bom amigo, mantinha-se por perto mesmo quando o abismo sob meus pés parecia tomar proporções imensas. Mesmo quando Magnus, com olhos faiscantes e expressão severa, recusava-se a permanecer em minha presença por muito tempo. Minutos, era o máximo que o feiticeiro me concedia. Aos poucos, concluí que ele não era favorável à minha amizade com seu namorado. Magnus afastava-se cada vez mais, não apenas de mim. Não tomava partido em nenhum planejamento, evitava participar de reuniões com grande frequência, mal visitava o Instituto. Alec sofria, o que fazia com que o peso que eu já carregava ficasse ainda maior.
    Outro incômodo cada vez mais recorrente era meu desentendimento com Theresa. Em diversas ocasiões ela tentava manter as crianças longe de mim, lançava-me olhares de desagrado e parecia evitar-me com tanto afinco quanto Magnus. E eu, apesar disso, não ligava mais. Havia um motivo para que a feiticeira se sentisse e agisse daquela forma. Talvez eu não entendesse qual era, mas respeitaria o fato de que ela não tinha obrigação alguma de simpatizar comigo.
    E havia Zacariah que, ao contrário dos dois feiticeiros, mostrava-se cada vez mais próximo. Ele me observava quando pensava não estar sendo percebido, me analisava durante longos momentos, procurava-me para conversar quase tão frequentemente quanto Alec. E eu o sentia. Sentia sua presença no segundo em que ele entrava em um cômodo onde eu estivesse. Sentia seu cheiro, o aroma natural de homem misturado à loção pós barba, sempre que estávamos no mesmo local. Sentia sua aura, cristalina e tremeluzente, a quartos, corredores, de distância. Eu o via e ouvia. E eu o admirava, tanto quanto era capaz de admirar alguém.
    Zacariah era como um ímã. E eu era o metal. Tudo em mim parecia me compelir a buscá-lo, tanto quanto eu buscava por Alec ou por Tavvy ou por Ty sempre que precisava de companhia. Mas entre tantas coisas, tantos problemas, minhas dúvidas quanto aos motivos de Zacariah – e os meus próprios – eram a menor de minhas preocupações. Pelo menos até o dia em que ele decidiu chamar-me para conversar após longos minutos me observando enquanto Jonathan, eu e os demais combinávamos uma caçada em busca de possíveis demônios.
    Estávamos preparados e reunidos. Não iríamos todos, apenas Jonathan, Alec e eu. Não havia motivos para que mais alguém fosse para, provavelmente, perder tempo. Eu vestia o traje de combate emprestado por Isabelle e carregava uma dezena de armas. Mesmo sabendo que todas seriam inúteis naquela noite, eu jamais ficaria despreparada. É claro que enfrentar dezenas de demônios teria sido muito mais fácil do que aquilo que esperava por mim.
    — Talita.
    Um estremecimento percorreu toda a extensão de minha coluna.
    A voz de Zacariah soou baixa, determinada. E fez com que um sinal de alerta se acendesse em meu interior.
    Olhei-o, ao mesmo tempo em que todos paravam o que estavam fazendo e copiavam meu gesto. Theresa, parada ao lado de Alec, arregalou os olhos. Se ela sabia ou apenas pressentia o que estava acontecendo, eu não poderia dizer.
    Engoli em seco.
    — Sim? — perguntei.
    Zacariah sorriu de leve.
    — Poderíamos conversar por um instante?
    Não.
    — É claro — respondi. Honestamente, o que mais eu poderia fazer?
    — A sós — ele completou.
    Com certeza não.
    Algo estava acontecendo, algo sério. Algo que poderia alterar tudo. Eu compreendia, cada instinto antigo em mim percebia isso.
    E, diferente de em todos os momentos de minha vida, esses instintos ordenavam que eu fugisse ao invés de ficar e lutar.
    — Tudo bem — falei — Vamos à Biblioteca.
    E então nós fomos, Zacariah andando a míseros dois passos de distância, diretamente às minhas costas.
    Sim, eu estava apavorada. Não, eu não sabia o motivo.
    O que estava acontecendo comigo?
    A Biblioteca estava deserta, o que era, em minha opinião, uma desvantagem. Não havia formas de fugir daquela conversa, não havia desculpas a serem usadas. Nem mesmo minha primeira ida a um Reino Demoníaco me causara tamanha apreensão.
    Zacariah parou encostado à mesa cujo tampo apoiava-se às costas de dois Anjos belamente esculpidos. Cruzou os braços, curvou o rosto e olhou-me. Estava lindo em suas roupas totalmente pretas, um conjunto de Chakrans sempre preso à cintura e uma expressão de firme resignação.
    — Há algum problema, Zacariah? — perguntei então.
    — Sim — ele disse — Quer dizer, não. Não há um problema. Eu apenas… Eu…
    Zacariah não gaguejava. Nunca. Com sua sabedoria de Irmão e extensa experiência de vida, ele jamais deixava de ter palavras sábias a serem ditas. Aconselhava e instruía as crianças, servia como fonte de inspiração para Nephilim ainda tão jovens como Jonathan e Clarissa, utilizava sua calma inabalável para tranquilizar o sempre nervoso Arthur. Ele não hesitava. Não até àquele dia.
    — Se precisa dizer algo — falei, demonstrando uma coragem que não sentia — então diga.
    Zacariah assentiu.
    — Eu venho tentando compreender as coisas há mais de dois meses — ele confessou — Compreender a mim mesmo, em grande parte do tempo. Creio que tenha entendido, afinal. E ainda assim venho me recusando a colocar tudo para fora.
    Franzi o cenho.
    — Não tenho certeza se estou acompanhando seu raciocínio, Zacariah.
    — Você tem mil e trezentos anos, Talita. Viu e viveu mais do que qualquer um aqui. Então ajude-me, aconselhe-me.
    Era isso então. Todo o meu receio, toda aquela ansiedade… Era apenas de um conselho que o Nephilim precisava?
    Respirei fundo, entre aliviada e desconfortável.
    — Se eu puder ajudar, farei isso — garanti.
    E quando acreditei que tudo ficaria bem, quando achei que nada mais sairia de meu controle naquela noite, Zacariah pronunciou as palavras que mudaram tudo. Mudaram meu mundo, minha percepção da vida e das pessoas, minha concepção de paz de espírito. Mudaram a mim, em meu íntimo.
    Zacariah soltou um suspiro, passou as mãos pelo rosto e encarou meus olhos com tamanha intensidade que peguei-me dando alguns passos para trás.
    — O que fazer se me apaixonei por alguém que não posso ter? — falou — O que fazer se a mulher que passei a amar não permanecerá nesta dimensão por tempo o suficiente para que eu a conquiste? O que devo fazer, Talita?
    E foi assim, com aquelas perguntas, que o chão se abriu completamente abaixo de mim. E eu entendi, enfim, o que significava parte daquele abismo, aquele aperto em meu peito, aquelas reações físicas cada vez mais frequentes. Eu entendi a mim mesma… E aos meus sentimentos.
    E morri um pouco por causa disso.

Os Instrumentos Mortais - Cidade dos Anjos Renascidos (concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora