CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

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    Equilibrei-me na beirada do telhado do Instituto. A verdade, porém, era que eu me encontrava inclinada sobre perigos muito maiores. Inclinava-me sobre meu precipício, o poço cujo fundo, se eu caísse, jamais chegaria. Meu desejo era criar asas, voar, apenas por alguns poucos instantes. Apenas para observar o rosto de Raziel, sua aura dourada, e assim respirar sossegada… Pois foi ele, desde sempre, o meu protetor, o meu guia, o meu refúgio. Era ele o único ser do universo a conseguir erradicar completamente a fúria e o fogo.
    Eu me sentia queimar aos poucos, como se cada brasa que tinha origem em mim agora tentasse irromper por minha pele.
    Quando eu tinha onze anos de idade, perguntei ao meu pai por que eu não possuía uma mãe, diferentemente das crianças humanas que o Anjo Ithuriel havia mostrado-me. Eu lhe disse que não sentia necessidade de ter uma, tinha somente curiosidade. Raziel colocou-me em seu colo, trançou meus cabelos e contou-me a verdade. Falou-me sobre uma paixão proibida, sobre um nascimento prematuro, sobre parto, morte e túmulo. Disse-me qual era a cor dos olhos de minha mãe e como, mesmo ainda tão pequena, eu tinha traços semelhantes aos dela. Descreveu um pecado, uma sentença divina que não foi levada adiante, um sacrifício que um Anjo jamais havia se proposto a fazer. Preveniu-me de que o mundo não era, nem nunca seria, perfeito, que havia dor e perda e solidão. E, sobretudo, garantiu-me que, mesmo que eu não pudesse ter conhecido a mulher mundana que me deu a vida, eu jamais estaria só, porque eu o tinha. E quando perguntei se ele arrependia-se de seu delito, se voltaria atrás caso recebesse a chance, Raziel sorriu. E disse que sentia remorso, sim, por ter desrespeitado a palavra do Pai Criador, mas que não alteraria nada em sua história, não quando seu maior pecado havia resultado em sua maior benção. Eu.
    Ouvir Isabelle Lightwood menosprezando o amor de Raziel, diminuindo-o enquanto pai, entristecia-me. Porque o mundo nunca viria a conhecê-lo como eu o conhecia. Só o que viam era a frieza celestial, o poder divino. Ninguém o havia visto beijar o joelho ralado de sua filha de seis anos; ninguém pôde observar o sorriso de orgulho que estampou-se em sua face quando acompanhou os primeiros passos vacilantes de seu bebê; ninguém viu a emoção em seu rosto quando pegou dos braços de Uriel aquela criança recém nascida que era sua, sangue de seu sangue, sua herdeira, sua filha. Cada uma dessas memórias estava em mim. Cada uma causava-me uma pontada de dor enquanto a raiva e o deboche de Isabelle assentavam-se em minha mente.
    Inclinei o rosto para a frente, exausta, e inspirei.
    — Eu não aconselho que continuem. Se derem mais um passo, será por sua conta e risco.
    O som dos dois pares de botas não cessou. Eu permanecia calada enquanto eles postavam-se um de cada lado. Fiéis escudeiros.
    — É verdade? — Alec sussurrou.
    — O quê? — perguntei bruscamente.
    — Que você seria morta como punição divina.
    Não achei necessário me manifestar, porque aquela era uma pergunta tola. Não era um assunto com o qual eu brincaria.
    Meu silêncio, portanto, disse tudo.
    — Por quê? — ele questionou — Você era só um bebê.
    — Um bebê que não deveria existir. Como acham que o Céu reagiu quando nasceu o fruto de um dos maiores pecados já cometidos por um Anjo? Meu simples nascimento foi um delito imperdoável. Um delito que teria sido erradicado.
    — Mas então Raziel ofereceu as asas em troca de sua vida — Zacariah disse baixinho.
    Mais uma vez eu optei por não responder.
    Falar sobre as consequências de meu nascimento não era agradável, ou bom, mas eu estava disposta a fazê-lo. Não porque quisesse desabafar, mas pelo desejo de que ao menos eles entendessem. Entre tantos, eram Zacariah e Alec aqueles cuja compreensão eu precisava. Eu queria que eles olhassem para o Céu e compreendessem que pai esplêndido era Raziel e que criaturas maravilhosas eram os Anjos. Mesmo com a rabugisse de Gabriel, ou a severidade de Miguel, ou a praticidade irritante de Rafael. Mesmo com as manias de organização de Israfiel, ou com a dose de arrogância de Jahoel, ou com a superproteção de Serafim. Eles eram muito mais do que servos cruéis e destemidos que serviam a Deus. Eles eram bons e justos e honestos. E eles eram meus, minha família eterna, meus irmãos de armas. Meus pais, todos eles.
    — Acho que, como pai, é natural que ele tenha…
    — Ah, cale-se, Alexander! — repreendi — Vocês humanos são tão cegos. Tem ideia do que significa para um Anjo perder as asas?
    O rosto de Alec contorceu-se em uma careta.
    — Bem, eu imagino…
    — Não, você não imagina. Você não tem a menor noção. As asas são o que os classifica como Anjos, é o que os aproxima do Céu quando estão longe dele. Para um Anjo, perder as asas é o equivalente a tornar-se um renegado para um humano, mas em proporções infinitamente maiores. Perdê-las é terrível, abrir mão delas é blasfêmia. Um Anjo sem asas deixa de ser um abençoado, ele perde a si mesmo, perde seu lugar junto ao Céu, perde o sentido da existência. Por que acha que nenhum Demônio Maior possui asas? O maior castigo que receberam ao cair é jamais poder chegar perto do Paraíso novamente. Um Anjo sem asas é um impuro. Impuros caem. E um Anjo caído torna-se um demônio.
    — Talita… — Zacariah começou a falar, mas o interrompi:
    — Foi isso o que Raziel se dispôs a fazer por mim. Ele teria preferido virar um decaído ao invés de ver-me morrer. Não é exatamente uma atitude de um ser sádico, cruel e sem coração, é?
    Não, não era . E nenhum deles precisava verbalizar sua concordância.
    — Por favor, Talita, tente compreender minha irmã — Alec pediu — Ela é…
    — Uma criança? — cortei-o — Inocente, talvez? Ambos sabemos que Isabelle não é nada disso. Eu seria capaz de compreender aquelas palavras caso ela as tivesse dito pelo calor do momento. Mas não foi isso o que aconteceu. Ela quis dizer tudo aquilo, Alec. Ela quis me ferir.
    Vi meu amigo engolir em seco e cobrir o rosto com dedos trêmulos.
    — Ela está sofrendo — cochichou — A morte de todas essas pessoas, especialmente daquelas crianças… É demais para ela.
    Quando eu ri, minha risada foi tão sombria, tão carregada de mágoa e ira e sarcasmo, que fez com que Alec se encolhesse.
    — O sofrimento não se restringe a ela, Alexander — rosnei — Todos morremos um pouco, todos estamos em luto — e, agarrando seu pulso, continuei: — Olhe para mim, Alec. Minhas roupas mancharam-se com o sangue daquelas crianças quando segurei seus corpos destruídos e chorei por suas mortes. Fui eu quem viu o padre decapitado, as famílias assassinadas e os Nephilim destroçados. Fui eu quem observou de longe, impotente, enquanto Asmodeus arrancava o coração de um Anjo, para início de conversa. É de perda que Isabelle deseja falar? Perdi três membros de minha família apenas nos últimos anos. E ainda assim não estou tentando descarregar meu pesar sobre ninguém.
    “Talvez vocês não tenham entendido que ainda sou humana também, então permitam que eu esclareça uma coisa: Eu. Também. Sinto. Dor.”
    A mão de Zacariah procurou pela minha, mas eu o afastei.
    Andei para longe deles, seguindo a beirada do telhado.
    — Mantenha sua irmã longe de mim, Alec — aconselhei — Eu não me responsabilizo por meus atos se tiver que ouvir a voz dela tão cedo. Eu não quero machucá-la. Nunca faria isso em sã consciência… Então não permita que Isabelle me tire de meu juízo perfeito.
    Inclinei-me ainda mais, abaixada sobre os calcanhares.
    — Por favor — pedi — Não me façam perder o controle. Às vezes o Fogo é mais forte que eu.
    Saltei para o ar noturno, ouvindo o arquejo alarmado de Alec, e caí de pé. E lancei-me em uma nova caçada, de repente não ligando se retornaria dela ou não.

Os Instrumentos Mortais - Cidade dos Anjos Renascidos (concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora