CAPÍTULO VINTE E OITO

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     No instante em que pisei no solo sagrado do Instituto, ouvi as vozes exaltadas que conversavam. Não havia tempo naquele mundo para refletir sobre um confronto antes de ter que entrar em outro, pelo visto.
     Não me apressei em meus passos enquanto seguia o som da discussão, não quando era possível entender um pouco do que acontecia mesmo ouvindo à distância.
     — ...E descubro que meus filhos estão abrigando e acobertando uma estranha potencialmente perigosa. É assim que pretendem demonstrar o quanto amadureceram?
     Robert Lightwood havia chegado e já descarregava sobre todos sua frustração.
     — Nenhum de nós pretende demonstrar nada, pai — Isabelle disse — Não precisamos provar coisa alguma.
     — Ótimo — a resposta foi ríspida — Então, por favor, minha filha, diga onde está a mulher de quem Arthur Blackthorn me falou.
     — Ela não está — Alec disse — O senhor terá que esperar se quiser conhecê-la.
     O grunhido de Robert foi um alerta de perigo.
     — Não esperarei nem mais um segundo para avaliar uma possível ameaça.
     — Ela não é uma ameaça, pai — Alec asseverou.
     — Diga-me onde ela está, Alexander.
     Não era difícil perceber o rumo que as coisas tomariam dali em diante. Robert estava alterado, o que deixava evidente que as informações imprecisas que haviam chegado até ele eram bem desagradáveis. Claro, eu não tinha esperança de que Arthur tivesse descrito as boas coisas que eu havia feito. Em seu apavoramento, era óbvio que o homem teria me feito parecer a vilã de uma história infantil.
     Desde aquele momento, quando ouvi pela primeira vez a voz de Robert Lightwood, eu soube que tudo iria por água abaixo. Não havia pressentimento algum, apenas uma certeza: Minha vida, depois daquele encontro, iria perambular entre o Céu e o Inferno. Porque eu soube, sem entender como, que o pai de Alec e Isabelle me odiaria. E a partir dele a Clave inteira também.
     Com uma parte de meu destino bem fixada diante de meus olhos, eu dei os últimos passos em direção à sala onde encontrava-se o homem que tinha tudo para ser um excelente aliado... Mas que escolheria ser um oponente.
     — Eu estou aqui — falei em alto e bom som — Você é Robert Lightwood, eu presumo.
     Ele estava de costas para mim, seus punhos fechados e seus ombros tensos. Havia outros dois Nephilim o acompanhando, um rapaz ainda jovem e uma mulher de meia idade. Em frente a eles, Alec, Isabelle e Jace encontravam-se. Clary, Zacariah e Simon observavam do fundo da sala, vigiando.
     Todos voltaram-se para mim.
     Robert era um homem alto, de cabelos escuros e olhos de um azul muito mais escurecido que os de Alec. Tinha em média quarenta e sete anos, mas seu rosto demonstrava um cansaço que o fazia parecer muito mais velho. Eu imaginava se aquela máscara de exaustão havia surgido após a perda de um filho. Achava que sim.
     — E você é a menina de quem Arthur nos falou.
     Parei junto à parede e nela me recostei de braços cruzados. Se meu destino estava traçado, nada me impedia de brincar um pouco com ele.
     — Meu nome é Talita — falei vagarosamente — E há muito deixei de ser uma menina, Robert.
     Um sorriso debochado formou-se em seus lábios. Um sorriso idêntico ao de sua filha.
     — Você não tem mais do que dezoito anos, garota. Não acha precoce dizer isso?
     — Na verdade eu tenho, tecnicamente, dezenove.
     Um vislumbre de confusão se fez presente em seu rosto.
     — E o que você quer dizer com "tecnicamente"? — perguntou.
     Não me passou despercebido que os outros dois Nephilim estavam movendo-se de forma pouco sutil, cada um para um lado. Como se já planejassem me cercar e encurralar antes mesmo de conhecer-me. Seria cômico vê-los tentar.
     — Exatamente o que parece — eu disse, fingindo estar totalmente alheia ao cerco que se fechava ao meu redor — Mas imagino que você tenha muitas coisas a falar antes de permitir ​que eu explique algo. Então, por favor, vamos ouvi-lo.
     Às costas dos três Caçadores de Sombras hostis, a mão de Jace pendia próxima à espada. Ao longe, Zacariah brincava com um Chakram entre os dedos como se nem percebesse o que fazia enquanto seus olhos estavam cravados na cena que se desenrolava.
     — Não considera seu tom inadequado, menina? Eu sou o Inquisidor, trate-me como tal.
     Robert estava falando de modo tão formal que eu teria achado graça caso as coisas não estivessem prestes a ficar complicadas.
     — Eu tenho total consciência de que você é o atual Inquisidor da Clave, assim como posso citar nome e sobrenome de cada homem e mulher que o antecedeu. Mas não gosto de preâmbulos, Robert, prefiro ir direto ao ponto. E, claro, presumo que você já tenha vindo até mim com opiniões fortemente formadas a meu respeito e que prefere pôr suas cartas na mesa antes que eu ponha as minhas.
     Ambos os Nephilim, o homem jovem e a mulher, pararam seu nada discreto avanço e olharam para Robert para avaliar sua reação às minhas palavras.
     Ele, por sua vez, apenas bufou.
     — Isso não é um jogo — retrucou.
     — Não — concordei — Mas ambos somos jogadores. Arthur Blackthorn lhe disse que uma mulher desconhecida, de aparência estranha e com habilidades impossíveis chegou e atraiu não só as crianças dele como também seus filhos e os respectivos namorados, Robert. Ele relatou que acontecimentos confusos vêm ocorrendo com cada vez mais frequência. Ele lhe contou do ataque ao Instituto de Los Angeles, disse que eu enfrentei um Demônio Maior e saí sem grandes sequelas. Contou que me recusei a compartilhar com ele a verdade e que tenho me reunido com diversos integrantes do Submundo. Ele disse que sente algo anormal em mim, que minha presença é intimidadora e que nunca conheceu uma pessoa com tamanha estranheza quanto eu. Disse que sobrevivi após uma queda absurda onde ninguém humano, nem mesmo um Nephilim, teria sobrevivido. Estou correta?
     O semblante de Robert fechou-se por completo. Eu estava certa até nos mínimos detalhes.
     — Quer dizer que Arthur revelou que viríamos — rosnou — Quando acabarmos aqui, ele será severamente repreendido por isso.
     — Não, não será — contrariei — Arthur não disse nada significativo, mas não é necessário ser um gênio para concluir o que o homem colocou na carta que enviou à Idris. E posso afirmar que de fato ocorreu tudo isso. E talvez até mais.
     — Você afirma então que é uma criatura perigosa?
     — Para os demônios, certamente.
     — E para os humanos?
     Um lado de minha boca inclinou-se para cima em um meio sorriso.
     — Somente para aqueles​ que me tomarem como inimiga.
     — Isso é uma ameaça? — Robert questionou.
     Sim.
     — Por quê? Você me toma como uma inimiga?
     Os olhos dele estreitaram-se enquanto me avaliavam.
     — Isso dependerá das informações que estiver disposta a nos fornecer — respondeu.
     — É claro — concordei — Eu me disponho a dar as respostas que você necessita, Robert. Mas eu gostaria que tudo o que for dito aqui chegue aos ouvidos de Jia Penhallow.
     — A Consulesa tomará conhecimento de tudo o que for preciso.
     Meu quase sorriso tornou-se sarcástico.
     Olhei para além do semblante irritado do Inquisidor, ainda ignorando os dois Nephilim que lentamente me cercavam, e busquei rostos mais familiares. Jace e Isabelle vigiavam o avanço dos Caçadores de Sombras ao meu redor sem desviar a atenção por um segundo que fosse. Zacariah havia aproximado-se alguns passos. Alec parecia prestes a saltar para colocar-se entre seu pai e eu.
     — A Consulesa deverá tomar conhecimento de tudo o que for dito aqui — falei — Do contrário nada direi.
     Robert riu e foi acompanhado pela mulher à minha direita.
     — Você não está em posição de exigir nada, menina.
     — Para tornar as coisas entre nós um pouco mais claras eu irei fornecer uma informação gratuita, Robert. Eu sou mil e trezentos anos mais velha do que você. Meu rosto de dezenove aninhos pode enganá-lo e fazer com que me considere uma criança, mas estou bem longe de ser uma. E, em breve, você descobrirá que estou em posição de fazer qualquer coisa que eu quiser.
     Com movimentos velozes, os dois Caçadores de Sombras saltaram, cada um vindo de um lado, e tentaram segurar-me. Deslizei para trás, apenas meus pés movendo-se para desviar do ataque. Com um forte som de pancada eles chegaram ao lugar onde eu estava segundos antes e chocaram-se um contra o outro. E, em um piscar de olhos, havia uma lâmina sendo segurada por Jace na garganta da mulher e a espada de Zacariah apontava para o peito do rapaz.
      — Devo entender, com isso, que você decidiu me ver como inimiga antes de conhecer minha história, Robert? — perguntei.
     Mas ele não olhava para mim.
     — O que pensam que estão fazendo? — esbravejou — Não interfiram no trabalho da Clave!
     Jace e Zacariah não moveram um músculo sequer para indicar que tinham ouvido a repreensão.
     Clary, Simon, Alec e Isabelle já me flanqueavam a essa altura.
     — Abaixem suas armas — o Inquisidor ordenou — Agora!
     Jace e Zacariah não fariam isso, claro. Então esperei, deixando que o silêncio pesasse ao nosso redor, até ver o rosto de Robert tornar-se vermelho pela fúria.
     — Rapazes — chamei — Soltem os dois, por favor.
     E eles soltaram, o que fez com que Robert tivesse sua ira multiplicada. Nada como perceber que suas ordens eram ignoradas enquanto as de outro alguém eram cumpridas.
     — Já chega — ele decretou — Prendam-na​.
     Fui rodeada por meus companheiros tão logo ele pronunciou esse comando.
     Mas eu não queria fazer aquilo. Colocar os filhos contra o próprio pai era algo que eu abominava.
     — Está tudo bem — falei a eles — Afastem-se e permitam que eu resolva isso, sim?
     Alec necessitou de um olhar muito mais severo para enfim fazer o que eu dizia. Eu sabia que ele não hesitaria em confrontar Robert se fosse preciso. Principalmente se o pai continuasse com aquela ideia patética de me prender.
     — Diga, caro Inquisidor — comecei — Por qual motivo exatamente você se considera no direito de mandar que eu seja presa? Quais foram os crimes cometidos por mim para justificar tal ação?
     Os olhos de Robert faiscaram.
     — Isso é o que ainda iremos descobrir — falou.
     — OK, então você já parte do pressuposto de que sou uma criminosa. Eu poderia saber quais são seus argumentos para tanto?
     Um sorriso afiado.
     — Você é, ao que parece, uma Nephilim — ele disse — E tenho certeza absoluta de que não é leal à Clave e, portanto, ao Anjo. Ou nega tudo isso?
     Exatamente como Ty disse.
     E, exatamente como eu tinha previsto, lidar com tais acusações despertava em mim uma pitada de perigosa irracionalidade.
     — Não, não sou leal à Clave dos homens — concordei — Mas se engana ao dizer que minha lealdade não pertence totalmente a Raziel.
     — Qualquer Caçador de Sombras que se nega a fazer o juramento à Clave, está negando também a missão do Anjo. Você deve, portanto, prestar contas à Idris.
     Travei a mandíbula firmemente antes de controlar aquele impulso homicida que se manifestava em mim.
     — Você acha que suas leis valem alguma coisa, Robert? — falei calmamente — Acha que você vale alguma coisa simplesmente por ser leal à Clave? Entre nós dois, Inquisidor, o único a ter um passado sombrio é você. Eu sirvo aos propósitos do Céu há mais de mil anos. E você, que um dia foi tolo o bastante para participar do Ciclo de Valentin? Quem de nós possui em seu caminho a mancha de já ter sido um criminoso?
     Eu estava pegando pesado, porque já não fazia diferença. Robert Lightwood era do tipo inconstante de homem que ataca primeiro e pergunta depois.
     E naquele instante estava furioso ao extremo.
     — Você era jovem e cometeu erros terríveis, Robert — continuei — Com a mesma idade eu caía diante de minha própria imaturidade e era obrigada a encarar as consequências de cabeça erguida. A diferença, então, está nas cicatrizes. Há uma em meu braço que delimita a maior estupidez que já cometi. Já as suas se estendem para além de seu corpo. As marcas de seus erros são longas, profundas. E, ainda assim, não estou aqui julgando-o por isso. Não cabe a mim fazer esse julgamento. E não cabe a você decidir por toda Idris se sou ou não uma criminosa. Isso está muito além de você.
     — Sua petulância ultrapassa todos os limites, menina — rosnou em resposta — Eu exijo que diga-me tudo o que quero saber. E que coloque-se sob a lei da Clave.
     — A Clave não me governa, apesar de também ser pela segurança dela que estou aqui. E eu fiz um juramento sim, mas minha lealdade não está com os homens e sim com aqueles que estão muito acima dessa terra corrompida. Eu jurei lealdade ao próprio Deus, criança. A marca do Céu está em cada gota de meu sangue. Não importa o quanto considere a Clave digna de respeito, porque nunca, em toda a vida que ainda lhe resta, você verá eu me curvando diante de homens.
     Havíamos chegado a um ponto onde não havia mais retorno. Os dois acompanhantes de Robert apontavam suas lâminas para mim, como se fossem capazes de me ferir sozinhos, e aguardavam um comando. Um que logo seria proferido, se os sinais nos olhos do Inquisidor estivessem certos.
     Se eu tivesse que lutar naquele dia, então que fosse por algum propósito.
     — Façamos um trato — propus — Lute comigo, Robert. Só você e eu.
     Um grunhido escapou de sua boca.
     — Eu não vejo propósito nisso — respondeu.
     Ah, mas eu com certeza via.
     — Tire minha espada ou o meu sangue em dez minutos de combate mano a mano e terá uma prisioneira silenciosa e cooperativa. Mas, se falhar, você e seus homens irão abaixar as armas e ouvir minha história e meu alerta sem fazer interrupções. E, mais do que isso, você irá jurar em nome de Raziel que passará cada pequena informação para a Consulesa.
     Um leve toque de humor lhe atingiu as feições.
     — Eu sou o Inquisidor, menina — disse — Não preciso jurar nada para satisfazer suas vontades.
     — Então apenas lute, Robert — desdenhei — A não ser, é claro, que a carta de Arthur tenha o deixado temeroso.
     O rubor que se pronunciou em suas faces dessa vez foi de constrangimento.
     Ele desembainhou sua espada.
     — Vou ensinar bons modos a você — declarou — Algo que seus pais evidentemente não fizeram.
     Eu sorri, muito embora não visse graça alguma em tudo aquilo.
     — Meu pai ensinou-me muitas coisas, Robert. Inclusive como derrotar um oponente de cem formas diferentes usando apenas uma lâmina sem fio.
     Então o homem lançou-se sobre mim, certo de que venceria. É claro, como todo Caçador de Sombras ele era excelente. Seus movimentos eram ágeis, seus ataques vinham com precisão e força e sua determinação era óbvia. Mas ele ainda era apenas humano.
     Cinco vezes eu o desarmei, não permitindo que chegasse mais do que 60cm próximo a mim. A cada vez que sua espada tocava o chão, eu ordenava que ele a recuperasse. E assim prosseguimos, comigo agindo de modo displicente e Robert perdendo aos poucos a paciência. E também a confiança de que me ensinaria bons modos.
     Quando Simon pigarreou para indicar o fim dos dez minutos combinados, desarmei o Inquisidor pela última vez e levei a espada ao alto em um ângulo ideal para raspar a ponta afiada em seu rosto. O mais leve dos toques, um mínimo roçar de metal contra pele, e três gotas de sangue escorreram por sua bochecha deixando um fino rastro rubro que determinava sua derrota. Não deixaria cicatriz, apenas, talvez, em seu ego.
     — Agora — falei — creio que seja a hora de explicar porque estou aqui.

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