CAPÍTULO TRÊS

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PARTE TRÊS

Seis horas haviam se passado desde o momento em que senti que o chão tinha se aberto sob meus pés. Fui "depositada" diretamente no centro de Nova York, era início de noite e, como previsto, dezenas e dezenas de Mundanos passavam por mim sem perceber minha presença. Em minha pele as variadas Runas aplicadas ainda ardiam, mas era uma sensação tão familiar, tão antiga, que era quase bem recebida.
Nos primeiros quinze minutos naquele lugar estranho, repleto de coisas que eu conhecia apenas por meio da leitura ou dos próprios Anjos, cruzei com um demônio Oni. Meia hora depois, encontrei um Shax. No quarteirão seguinte, dois Raveners. E eu sabia, obviamente, que aquilo aconteceria. Miguel havia me prevenido sobre absolutamente tudo o que eu precisava saber. Lugares aonde ir, pessoas as quais procurar, espécies a quem me aliar. Não era à toa que Nova York tinha sido escolhida como ponto inicial de minha missão, tudo estava nos planos de quem havia me enviado.
E, ao contrário do que eu sempre achei que sentiria, eu estava nervosa. Durante toda a minha vida eu jamais descera à terra. Se eu não estivesse no Céu, então com certeza estaria em algum Reino Demoníaco lutando ao lado dos guerreiros de Deus. Foi para isso que fui treinada, para isso que eu vivia. Matar demônios. Não que um Oni, um Shax e dois Raveners pudessem ser considerados um grande desafio. Não, eles eram apenas insetos na hierarquia do Inferno. Mais viriam, mais seriam mortos. E eles acabariam entendendo que não seria assim tão fácil me parar.
Era madrugada quando, com a mudança repentina do vento, senti o odor apodrecido de um demônio. Esse, pelo visto, era dos grandes. E estava próximo. Sorri pela primeira vez naquela noite, então. Porque eu sabia, eu tinha certeza, que esse teria uma sensação ainda mais forte do que os outros que haviam tido o desprazer de ir atrás de mim nas últimas horas. Este farejaria antes de se aproximar, porque sem dúvida eles não cometeriam o mesmo erro tantas vezes. E eu estava certa.
Ouvi os passos pesados, sem sutileza alguma, se afastando de mim. Sim, ele estava fugindo. E eu tinha que admitir que não teria me dado o trabalho de ir atrás dele se não soubesse que os Mundanos acabariam sofrendo com aquela presença demoníaca. Era meu dever, enfim.
Eu o segui até o metrô, deserto àquela hora, sem me preocupar sequer em correr. Ele morreria, não havia outra forma de acabar com aquilo. Cheguei em uma área ampla que acabava em uma bifurcação. Por não mais do que alguns instantes eu me permiti ajoelhar para tocar o chão, as marcas das garras que tinham cavado sulcos no concreto bem visíveis. E foi quando escutei. O som do ar se abrindo para dar passagem a um objeto em lançamento, algo vindo em minha direção, minhas costas desprotegidas certamente marcadas como alvo. Uma flecha.
Agi antes mesmo de ter que pensar na situação. Puxei duas espadas do cinto de armas enquanto girava, ainda agachada, e ergui as lâminas no exato momento em que a flecha me acertaria. Com um movimento treinado centenas de vezes eu parti a haste da flecha ao meio, impedindo que ela prosseguisse. Quando me ergui, o capuz caindo sobre meus ombros, me deparei com cinco pessoas. Nephilim. Armados até os dentes. E eles estavam correndo diretamente para mim.

🗡️ 🗡️ 🗡️

Eram três rapazes e duas garotas. E eu os conhecia, mesmo que jamais os tivesse visto antes. O garoto loiro chegou, sua espada se chocando com uma das minhas instantes antes que meu pé se chocasse com seu peito. Primeiro adversário; caído. Os outros dois rapazes me atacaram ao mesmo tempo e eu dei combate, mais evitando-os do que realmente atacando. Eu não queria machucá-los, muito pelo contrário. Desarmei o mais alto e me lancei ao chão, aplicando uma rasteira no outro. Quando as duas garotas fizeram menção de atacar, no entanto, me pus de pé e virei as costas para a parede mais próxima. Minhas duas lâminas estavam apontadas para a frente, prontas para voltar à ação.
Mas eles haviam parado. Formando um meio círculo ao meu redor, todos os cinco me encaravam com certo assombro.
- Quem é você afinal? - um deles perguntou então.
Eu sabia quem ele era, claro. Alexander Lightwood, o primogênito, o arqueiro, o quebrador de tradições. Depois de tudo o que ouvi a seu respeito, podia dizer que aquele Caçador de Sombras não tinha nada menos que minha admiração. Exceto pelo fato de que acabara de atirar uma flecha em mim. Em todos os casos, ali estava ele, se pondo diante dos demais mesmo não sendo o mais forte ou​ capaz. Ele sem dúvida era talentoso, mas sabia que não havia necessidade de tentar proteger Jonathan Herondale ou Clarissa Farchild. Não, se havia um potencial risco naquela equipe, ele vinha dos filhos de Valentin Morgenstern. E o garoto loiro de semblante arrogante e a baixinha ruiva eram eles, eu tinha certeza quanto a isso. Eu sentia o cheiro do sangue que pulsava nas veias de ambos.
- Sou uma Nephilim - respondi - assim como vocês.
Cautelosamente, baixei minhas armas e as guardei no cinto de armas. Eu não queria que pensassem que tinha a intenção de lutar. O que, na verdade, eu faria se fosse necessário.
- Suas Marcas são prateadas - a garota morena, a quem eu reconheci como Isabelle Lightwood, destacou - Nenhum Nephilim produz Runas que não sejam pretas.
A olhei demoradamente.
Talvez eu estivesse enganada, no final das contas. Aquela garota certamente era uma oponente a ser considerada. Ela parecia disposta a qualquer coisa, legal ou ilegal, para conseguir o que queria. E ela provavelmente estava mesmo, segundo o que eu tinha ouvido.
- Não sou uma Nephilim comum - declarei. E aí vinha, a declaração que mudaria tudo o que aqueles humanos acreditavam, uma simples frase que carregava o poder de alterar a história e trazer confusão em massa. Com o queixo erguido, concluí: - Minhas Marcas são diferentes porque sou filha do Anjo.
Uma risada alta preencheu o ambiente. Ao olhar para o lado, vi a expressão debochada no rosto de um dos rapazes. Jonathan.
- Lamento decepcionar​ você, mas somos todos filhos do Anjo, garota estranha.
Devo confessar que, apesar de ter sido criada por seres que possuíam um autocontrole absurdo, eu tinha meus momentos de irritação suprema. E não havia como negar que uma provocação de Jonathan Herondale era algo digno de testar até mesmo uma paciência divina. Aquele jeito sarcástico não era algo com que eu estivesse acostumada. E tempo não era algo que eu tivesse de sobra para gastar com mesquinharias.
- Você não entendeu - falei, demonstrando uma paciência que não tinha no momento - Os Nephilim nasceram a partir do ponto em que Jonathan Caçador de Sombras bebeu o sangue do Anjo no Cálice Mortal. Vocês são descendentes de Jonathan; eu, descendo do próprio Anjo. Sou filha biológica de Raziel.
Minhas palavras causaram um silêncio pesado, um assombro que tomou conta de todos. Era evidente que nenhum deles estava preparado para ouvir algo tão... Absurdo. Era para isso que os humanos estavam programados, fossem eles humanos ou Nephilim. Ver para crer. Conhecer para aceitar. Amar ou odiar. Não havia meio termo para a maioria deles, não havia abertura para aceitar verdades desconhecidas.
Mas esse era o fato aqui. Eu era filha de Raziel, o Anjo Justiceiro, o portador dos segredos. Eu era a criança que jamais deveria ter sido concebida, a prova definitiva da humanidade que não deveria existir em um Anjo, o resquício de um erro carnal cometido por um dos maiores seguidores de Deus. A filha de Raziel. O sangue do criador dos Nephilim corria em minhas veias de uma forma que jamais havia corrido nas de outro humano. Meus cabelos, minhas Runas, minha força, minhas habilidades... Tudo o que eu tinha e era provinha de meu pai, aquele que se dispôs a perder tudo o que possuía ao invés de ver seu bebê sendo morto em forma de punição divina; aquele que passou à sua filha conhecimentos que a humanidade jamais sequer pensou em ter; aquele que aprendeu e ensinou a amar, mesmo isso indo contra sua natureza angelical. Meu pai. Raziel.
- Isso é impossível - o terceiro rapaz murmurou, incerto.
"Eles não acreditarão", Miguel disse a mim antes que eu descesse. "Nem mesmo aqueles que quebraram tabus e acabaram com guerras estarão dispostos a aceitar que um de nós, um Anjo, foi capaz de conceber um filho. Mas, acima de tudo, eles se negarão a aceitar que uma nova guerra os espreita. Eles estão feridos, todos os Nephilim morreram um pouco nos tempos sombrios que se passaram. Você terá que provar, minha criança."
Você terá que provar.
- Tão impossível quanto um vampiro andar à luz do sol? - perguntei enfim - Ou, quem sabe, tão impossível quanto um morto-vivo sentir seu coração voltar a bater, Diurno?
O rosto de Simon Lewis ficou pálido.
Isabelle, pronta para defender o namorado, se pôs na frente dele de modo ameaçador. Não me senti ameaçada, mas a respeitei pelo gesto.
- Como você sabe sobre isso? - ela perguntou.
Suspirei.
- Meu pai fez questão que eu soubesse tudo sobre a Clave, sobre os Acordos, sobre os Mundanos e Submundanos - contei - especialmente sobre vocês cinco. Sei de tudo o que fizeram, sei quem são e quem já foram um dia. Eu os conheço.
Jonathan deu alguns passos à frente.
- Isso é ridículo - ele contestou seriamente - Raziel é um Anjo, ele não​ pode...
Permiti a mim mesma soltar uma risada. Miguel jamais errava.
- Ter filhos? - adivinhei - Vou ter que corrigir você, Jonathan. Ele não deve, por causa de sua condição celestial, mas é fisicamente capaz. Todos eles são.
- Sabe o que isso me parece? - Clarissa finalmente se manifestou - Uma armadilha. Sinceramente, olhem o cabelo dela! É exatamente como...
"Eles terão medo de você, medo do que é capaz de fazer. Tentarão achar formas de convencer a si mesmos de que você não é quem diz ser. Um poder como o seu está acima do que os Nephilim julgam humanamente possível."
- Deixe-me adivinhar - interrompi mais uma vez - Meus cabelos são exatamente como os de Valentin e Sebastian? Sejamos sensatos, Clarissa. Isso é apenas uma coincidência. Até onde eu sei você foi muito julgada por ser coincidentemente filha do monstro Morgenstern. O que não a tornou igual a ele, tornou?
- Então vamos parar de enrolação e ir direto ao ponto - Jonathan retrucou - Como você explica os cabelos brancos e as Marcas prateadas?
"Você terá que ser paciente".
A voz de Miguel ressoava em meus ouvidos como se eu estivesse escutando mais uma vez os seus conselhos.
Ao que parecia, eu teria que ter uma paciência perfeita.
- Eu já disse - falei - Sou descendente do Anjo. Raziel não desceu à terra porque Jonathan o chamou, como o Mundo das Sombras sempre acreditou. Atender ao chamado daquele homem foi possível apenas porque Raziel já havia sido enviado em uma missão que nada tinha a ver com a criação dos Nephilim.
- Não me diga - Isabelle ironizou - Então obviamente Raziel, um Anjo, veio em uma missão e se apaixonou perdidamente por uma mortal. E fez o que os homens tanto apreciam.
Ah... Exatamente?
- Não sei quanto à parte de "perdidamente" - eu disse - Mas sim, Raziel se apaixonou por uma Mundana no mesmo dia em que deu seu sangue a Jonathan. E quando eu nasci, o Criador permitiu que meu pai me levasse ao Céu e cuidasse de mim.
- Você está dizendo que tem a idade do primeiro Nephilim? - Isabelle perguntou, seu tom mergulhado em ceticismo.
- Sim - concordei.
- Está meio conservada para alguém que tem mil anos, não está?
- Mil trezentos e vinte e quatro, para ser mais precisa - eu disse - A história que vocês vêm ouvindo tem algumas falhas significativas.
- Por acaso está se desviando da pergunta?
- Não - franzi o cenho. Paciência, eu disse a mim mesma. Eles precisam acreditar. Faça com que acreditem - Meu envelhecimento - continuei - foi interrompido quando completei dezenove anos. Os Anjos se afeiçoaram a mim e não quiseram me perder para a velhice. Isso, é claro, acabou assim que pisei na terra. Aqui envelheço como qualquer Nephilim.
Era estranho pensar nisso, agora que eu tinha pronunciado as palavras. Eu envelheceria. Era evidente que eu não pretendia ficar naquela dimensão por tempo suficiente para de fato ficar velha, mas depois de centenas de anos paralisada em minha aparência praticamente adolescente eu não podia deixar de questionar como seria mudar. Mudar fisicamente, uma vez que mentalmente eu já havia alcançado patamares muito elevados para qualquer ser humano.
- Tudo bem - Alexander se manifestou - Então por que decidiu descer justo agora?
- Eu já teria descido antes - contei - mas eu sirvo aos Anjos. E eles não permitiram que eu viesse. Quando Valentin ergueu seu reinado de terror eu implorei ao próprio Criador para que pudesse descer, mas Raziel era responsável por mim e o Senhor determinou que apenas meu pai decidiria o momento de me enviar aos homens. Eu posso garantir a vocês que nada teria protegido Morgenstern de mim se eu tivesse recebido a permissão para lutar.
E essa era a pura verdade. Eu não sabia o que era sentir um ódio tão profundo por alguém até ouvir, até ver através dos olhos de meu pai, o que Valentin fez a Ithuriel. Anjos não odiavam, era contra sua natureza, e eu havia sido criada para ver o mundo da mesma forma. E eu de fato tinha visto, até Valentin chegar e torturar alguém que eu amava, ou pelo menos o mais próximo que eu poderia chegar de amar.
Ódio era um sentimento humano, não angelical. E foi o homem que tanto se orgulhava de representar a Estrela da Manhã que fez brotar em mim uma chama de humanidade. Ah, e eu teria dado tudo para queimá-lo até os ossos com esta chama.
- Nem mesmo Jace e Clary puderam derrotar Valentin - Simon lembrou desnecessariamente - O que a faz pensar que você poderia?
- Jonathan e Clarissa - resmunguei - As crianças geradas com o sangue de Ithuriel. É visível que os dois possuem uma concentração maior de genes angelicais. A cor dourada e ruiva de seus cabelos é uma reação a isso, sabiam?
- Não - Clarissa contrariou - Meus cabelos são ruivos por causa de minha mãe.
Sorri. Era interessante saber coisas sobre a vida de outras pessoas, coisas que nem mesmo elas sabiam. Vantagens de crescer junto a quem tudo sabia.
- Na verdade - falei - sua genética teria se inclinado para o lado Morgenstern da família. Se seu pai não tivesse feito a experiência involuntária com você, seus cabelos seriam como os de seu irmão. O vermelho e o dourado foram a forma que seus organismos acharam de externizar... Os excessos. Não sei exatamente o porquê de eu saber isso, mas eu sei.
- E os seus cabelos? - Clarissa questionou - Branco... A cor que representa a dor, a perda.
- Apesar de ser a cor do luto para os Caçadores de Sombras, o branco é também a cor que usamos para enviar paz àqueles que amamos e que nos deixaram. A cor da paz, a cor dos Anjos. Meus cabelos são brancos porque sou diferente de vocês. Nephilim comuns são metade Anjo e metade humanos; Valentin providenciou para que vocês, Clarissa e Jonathan, possuíssem 60% de sangue angelical; eu, no entanto, estou além disso. Sou 85% Anjo e apenas 15% humana.
"O Fogo Celestial que vocês conhecem tão bem - falei depois de uma pausa - é o que me constitui".
- Está dizendo que há Fogo Celestial em suas veias? - Simon perguntou.
- Não. Estou dizendo que minhas veias são feitas do próprio Fogo.
O que, mais uma vez, era a verdade.
- Ainda acho isso tudo ridículo - Isabelle desdenhou - Imagino que realmente haja algo diferente em você, mas Sebastian também era diferente e isso só ferrou com as nossas vidas.
A simples ideia de comparação entre Sebastian Morgenstern e eu... Controlei todos os instintos que me mandavam partir Isabelle Lightwood ao meio e foquei minha mente nas palavras de Miguel.
"Você terá que provar, minha criança."
- Se querem uma prova - falei entredentes - Deixem que eu toque Heosphoros.
- O que minha espada tem a ver com tudo isso? - Clarissa franziu o cenho.
- A lâmina "que traz a manhã" abrigou o Fogo Celestial, ela irá me reconhecer.
- O Fogo se extinguiu.
- Algo poderoso como a Chama do Céu não desaparece sem deixar uma marca, Clarissa. Sua espada, assim como Jonathan, possui resquícios do Fogo​. Deixe que eu mostre.
Visivelmente desconfiada, a garota puxou Heosphoros do cinto e a ofereceu, o punho voltado em minha direção.
Enlacei os dedos ao redor do couro e senti o peso e o equilíbrio da arma. Mais do que isso, senti minha pele latejar levemente, uma corrente de eletricidade se movimentando pelo meu braço e se expandindo para além. E, para provar minhas palavras, a lâmina se acendeu com uma repentina faísca dourada que se espalhou de ponta à ponta como uma brasa ardente. Depois, se apagou.
- Fogo Celestial - Jonathan sussurrou - Eu o sinto.
Ignorei a sensação ardente que permanecia correndo pelos meus dedos e devolvi Heosphoros à Clarissa.
Todos me encaravam com expressões quase indefiníveis.
"Eles terão medo de você".
Por algum motivo eu não queria que tivessem.
- Por quê? - Alexander perguntou de repente - Por que está aqui?
Havíamos chegado ao ponto chave, enfim.
- Seu mundo - falei - está à beira de sofrer um Apocalipse. Será como se Sebastian e Valentin tivessem retornado. Não. Será cem vezes pior.
Silêncio.
Era óbvio que ninguém queria acreditar que poderia haver algo pior do que o pai e irmão de Clarissa. O que seria mais perigoso do que um homem meio-demônio que era praticamente indestrutível? Bem, havia coisas muito mais perigosas do que isso. Havia seres tão poderosos que sequer eram retratados na história da humanidade, seres que haviam sido esquecidos ou até mesmo bloqueados da memória dos homens por serem aterrorizantes demais para a sanidade mental de pobres mortais. Seres que foram subestimados pelos humanos. Mas jamais pelos Anjos. E eram eles que se reergueriam para ver o mundo como era conhecido queimar. E eu estava ali para impedir que isso acontecesse.
Enquanto todos assimilavam minha revelação, ainda mudos de surpresa, meus instintos entraram em alerta. Um leve arrastar de pés, passos humanos se aproximando pelo corredor escuro à minha direita.
Agi sem que minha mente tivesse formulado a decisão. A Lâmina Serafim brilhou em minha mão e parou no ar apenas a dois centímetros do pescoço do recém-chegado. Ele arfou.
- Alexander! - o homem dos estranhos olhos de gato gritou - Avise a essa garotinha que esse pescoço aqui é meu. E eu gosto muito dele. Eu preciso dele para muitas coisas.
Magnus Bane.
- Ah, é... - Alexander praticamente gaguejou - Seja lá qual for seu nome, tire essa lâmina daí. Esse é meu...
- Eu sei quem ele é - falei. Não hesitei em guardar a Lâmina Serafim novamente, não quando o famoso Alto Feiticeiro do Brooklin tinha chegado para completar a bagunça. Ótimo.
Magnus deu dois passos em direção ao namorado, parou e me encarou, quase como se estivesse me avaliando.
- Você não é mortal - ele disse - Mas também não é imortal.
Ele parecia levemente assombrado. Se é que era possível que alguém ficasse levemente assombrado.
- Você não é um Anjo - ele constatou - No entanto, se parece com um. O que...?
- Eu sou? - presumi. Se havia algo que eu não queria fazer naquele momento, esse algo era explicar mais uma vez a anormalidade que eu era. Mas eu também tinha a impressão de que Bane não precisaria de grandes explicações para entender, talvez pelo fato de que ele tinha alguns séculos a mais de experiência do que os Nephilim à minha frente. Sendo assim, resumi: - Para abreviar a situação, senhor Bane, basta que saiba que os Anjos são fisicamente capazes de ter filhos.
Tudo bem, aquilo foi péssimo. Não, foi mais do que péssimo. Aquela explicação deveria ser considerada uma blasfêmia.
Curiosamente, o feiticeiro pareceu entender. Primeiro, seus olhos passaram pelas poucas Marcas que estavam aparecendo em minhas mãos e pescoço; depois, ele analisou meus cabelos; e, por fim, meus olhos. E então balançou a cabeça afirmativamente.
Foi a minha vez de ficar surpresa.
- Sim - Bane murmurou, mais para si mesmo do que para os outros - Sonhei com algo muito semelhante nas primeiras décadas de descoberta. E que fique claro que me refiro às minhas descobertas como feiticeiro.
Eu não fazia ideia do que ele estava falando. E eu não gostava nada de não saber de algo, era como se o jogo tivesse virado.
- Um Anjo Vingador - ele continuou - vindo do Céu e iluminando a terra com o branco que os Nephilim tanto evitam. O curioso é que meus sonhos às vezes tendem a ser reais, mas jamais pensei... Sempre acreditei que era uma visão do passado, um vislumbre de Raziel no dia em que criou os Caçadores de Sombras. Talvez eu tenha me enganado.
Epa. Quando as coisas tinham ficado tão confusas? Era eu quem deveria surpreender, não tinha planejado ser surpreendida. Tudo bem, ninguém planeja ser pego de surpresa, mas era para eu estar no comando aqui. Eu não admitiria nunca, mas ... A ideia de ter dado uma passada pelos sonhos premonitórios de Magnus Bane há centenas de anos não me era muito atraente.
- Eu não sou um Anjo Vingador - contrariei - Sou uma Nephilim. Estou aqui porque essa dimensão foi criada pelo Deus a quem sirvo, O Único, e está sob a proteção dos Caçadores de Sombras, então está sob a minha também.
- Então por que você não estava aqui quando Sebastian destruiu nossas vidas? - Isabelle, que estava se mantendo anormalmente quieta, acusou - Por que não saiu de seu casulo quando os Nephilim quase foram dizimados? Onde você estava quando perdemos nossas famílias? Quando meu...
Sua frase se perdeu em um pequeno soluço, quase inaudível. Eu a respeitei um pouco mais ao ver como estava lutando para não demonstrar fraqueza. Porque eu sabia do que ela estava falando. Eu sabia de quem ela estava falando.
- Max - murmurei.
Então ela gritou. Foi um som torturado demais até mesmo para meu psicológico, um som dolorido, saudoso.
- Não ouse tocar no nome dele! - Isabelle grunhiu.
Senti o que aconteceria instantes antes que de fato acontecesse. Um chicote se desenrolou do braço da garota, pendendo solto ao seu lado, e foi lançado contra meu rosto. Em uma fração de segundos eu ergui a mão protetoramente e recebi o impacto do chicote diretamente no pulso, onde o fio de Electrum se enrolou. Girei o pulso, agarrei o chicote e o puxei para mim, arrancando-o da mão de Isabelle.
Vi o queixo da garota cair quando o cabo do chicote pousou em minha mão aberta.
E eu estava muito, muito irritada.
- As armas feitas em nome do Anjo - disparei com rispidez - servem ao Anjo, Isabelle Lightwood. Electrum e Adamas não me ferem. Agora, se você parar de tentar entrar em um confronto que não tem a menor chance de vencer, talvez possa ouvir o que aconteceu ao seu irmão caçula após a morte.
Eu me arrependi daquelas palavras no instante em que as pronunciei. Não cabia a mim - aliás, não cabia a ninguém - contar a eles a verdade.
Vi Magnus arregalar os olhos, Jonathan fechar os punhos, Alexander puxar o arco das costas, Simon segurar o cabo de um punhal e Clarissa puxar Heosphoros da bainha. Mas Isabelle apenas me olhava.
Respirei fundo.
Eu estava diante de uma família, um grupo de guerreiros que eu sabia que tinham sofrido a pior das dores ao perder Max Lightwood. Eu havia agido com a melhor das intenções, mas será que eles aprovariam o que eu tinha feito? Ou será que depois de tudo eles me odiariam?
Dei em mim mesma um tapa mental. Não fazia diferença alguma se eles gostariam ou não de mim, eu precisava apenas de uma ligação com a Clave, uma forma de chegar até os líderes do Mundo das Sombras. Era apenas isso que aquelas pessoas diante de mim representavam: Uma forma de concluir minha missão. Eu não precisava de sentimentalismo algum, só era necessário que eles acreditassem na inevitável verdade.
- Sempre que uma criança morre de uma forma brutal - comecei - os Anjos se reúnem. Não todos, mas os principais. A morte de um inocente causa ira no Céu. Quando o irmão de vocês morreu, eu pedi a Raziel e a Rafael que o pequeno fosse recompensado, então Max foi transformado em um Querubim Guardião, designado a acompanhar um mortal. A mente dele não é mais a de antes, mas a alma sim. Ele pôde escolher seu protegido antes de ser Ascendido e esquecer de tudo o que viveu. Eu não estou apenas usando um clichê aqui, mas o irmão de vocês virou um Anjo. Max nasceu para servir a Raziel, agora ele serve ao próprio Criador.
O arco de Alexander retumbou no chão de concreto ao escapar de suas mãos, em seguida o Nephilim caiu de joelhos. Vi as lágrimas que corriam por seu rosto no instante em que Magnus se jogou ao seu lado e o abraçou.
Observei em silêncio, me perguntando se o que eu via ali era o que os humanos chamavam de amor. Eu não saberia dizer​. Era fato que eu havia recebido todo o afeto que os Anjos poderiam ter dispensado a alguém, mas eles não eram seres feitos para amar. Eles eram práticos​, justos, leais. Mas eu não sabia se eram capazes de amar da forma como os humanos amavam. E eu, tendo sido criada por eles, desconhecia esse sentimento naquela forma física, aberta, demonstrada.
Mas, enquanto olhava aqueles três casais se consolando mutuamente, senti algo estranho, algo tão desconhecido para mim que precisei desviar o olhar. Não era inveja, não no sentido de desejar o que eles tinham. Eu apenas percebi o que jamais teria percebido estando no Céu: Eu havia recebido muito, aprendido muito, vivido muito, mas havia uma experiência, um conhecimento, que os Anjos não poderiam me proporcionar nem que eu vivesse mais mil anos. A experiência de viver uma vida humana.
- Diga que não é mentira - Isabelle sussurrou contra o peito de Simon - Diga que não está inventando isso para se aproximar de nós.
Permiti que o chicote escorregasse por entre meus dedos.
- Eu não sou um monstro, Isabelle - respondi - Posso não ser igual a vocês, posso ter vindo de um mundo completamente diferente do seu, mas sou uma Nephilim. Lamentei as mortes de Max Lightwood, de Imogen Herondale, de Amatis Greymarck, de Andrew Blackthorn, de Jordan Kyle, de Rafael Santiago. Lamentei por cada gota de sangue que foi derramada. Seu irmão realmente...
Parei de falar. Um arrepio me percorreu a espinha no mesmo segundo em que um rugido estrondoso se fez ouvir. Perfeito. Eu havia esquecido do demônio a quem estava perseguindo.
A criatura provavelmente havia farejado os outros Nephilim, o que explicaria o fato de estar voltando. Mas ele acabaria percebendo o próprio erro quando chegasse mais perto. No caso, "mais perto" para o demônio significaria "praticamente morto".
- Esse é grande - Isabelle comentou - Vamos, preciso matar alguma coisa.
Ela se afastou de Simon e começou a andar. Quando passou por mim, no entanto, segurei seu braço para contê-la. Havia algo errado, uma sensação inquietante que percorria meu sistema nervoso. Um alerta de perigo.
Fechei os olhos por alguns instantes e exalei, separando o cheiro de mofo e umidade próprios do lugar de outro diferente, um odor forte, marcante. Enxofre. Morte. E algo além...
- O metrô foi tomado - falei abrindo os olhos - Isso aqui está cheio de demônios. Vocês não​ estão armados o suficiente para lutar essa noite.
- Como você sabe que há mais de um? - Clarissa perguntou.
- O cheiro - eu disse - Criem um portal. Saiam daqui.
- Não precisa nem repetir - Magnus se pôs de pé, suas mãos já acendendo com um brilho fantasmagórico. Ouvi quando ele murmurou alguma palavras, um encantamento. Em seguida, suas mãos se apagaram - Por que diabos não consigo criar um portal? - ele perguntou.
Três pessoas ali xingaram. Minha surpresa foi grande ao perceber que eu havia sido uma delas.
Novo tapa mental.
- A culpa é minha - falei - O sangue de Raziel enfraquece o sangue de Asmodeus. Sua magia falha perto de mim.
Todos me encararam.
- Eu não estava brincando quando disse que sei tudo sobre vocês - justifiquei.
E então a parede explodiu atrás de mim. Joguei meu corpo ao chão instintivamente e me livrei dos escombros que voaram para todos os lados, mas os outros não tiveram a mesma sorte.
Não parei para verificar se estavam bem, não havia tempo para isso. Levantei, já girando, e me deparei com o causador da explosão. Eu sequer sabia o nome daquela coisa, ou até se tinha um nome. Mas eu sabia que era uma espécie antiga, um demônio que não podia ser facilmente enviado a essa dimensão. E ele estava olhando diretamente para mim.
- E aí, feioso - provoquei - Qual deles mandou você?
Puxei duas Lâminas Serafim da parte de trás do cinto de armas, ambas se acendendo ao meu toque. Quando me preparei para atacar, o nome do Anjo Cassiel foi murmurado às minhas costas e uma terceira Lâmina faiscou.
- Não - falei em voz alta. Eu não precisava olhar para saber que era Jonathan - Ajude os outros, eu cuido disso.
- Não seja tão prepotente - ele resmungou.
Prepotência. Não, eu não era prepotente, apenas tinha consciência de minhas próprias capacidades. Não era a mesma coisa.
O demônio parecia nos avaliar. Pela minha experiência, eu sabia que ele procurava o alvo mais vulnerável, mais fácil. Suas órbitas nebulosas vagavam entre nós dois. A cada vez que focavam em mim, no entanto, o demônio retrocedia minimamente, quase como se não percebesse.
Arrisquei uma olhada para trás.
- Clarissa se feriu - falei - Ajude-a. Precisamos que ela crie um portal e nos tire daqui.
Provavelmente aquele era o único argumento que teria feito Jonathan Herondale se afastar de uma luta. Alguém de sua família ferido. Enquanto ele corria de volta para os outros eu comecei a andar lentamente em direção ao demônio.
- Está sentindo o cheiro do meu sangue, não está? - sussurrei - Eles deveriam ter mandado um dos Grandes, se realmente queriam minha cabeça em uma bandeja.
Observei os olhos do demônio se arregalarem e, como previ que aconteceria, ele virou e começou a correr pesadamente.
Ah, mas não vai mesmo.
Corri atrás dele e saltei sobre suas costas gosmentas. Ele ergueu as garras na tentativa de se proteger, mas minhas duas Lâminas já estavam a caminho de seu pescoço. Com uma explosão de faíscas e pó, o demônio sumiu.
Simples.
Voltei correndo para onde os outros estavam e me deparei com uma quantidade quase alarmante de sangue, considerando que todo ele pertencia à Clarissa. A garota estava caída, os amigos a rodeando, e respirava com esforço. Sua perna estava devastada, o pé torcido em um ângulo muito errado, e seu rosto empalidecia cada vez mais.
- Espere - pedi ao ver Jonathan tirando uma Estela do bolso - Deixe que eu faça isso. Minhas Runas são como as de Clarissa.
Não foi preciso mais explicações. A preocupação de Jonathan certamente era maior do que a cautela.
Peguei minha própria Estela e me aproximei de Clarissa.
- As Runas que eu desenho são mais dolorosas - falei como que pedindo desculpas antecipadamente - Mas farão mais efeito.
Toquei sua perna com a ponta da Estela, procurando um ponto que não estivesse tão ferido, e comecei a desenhar. Extraí o melhor do Fogo que corria por meu corpo em cada linha da Iratze e, antes de finalizar o último traço, forcei a Estela contra a carne da perna de Clarissa.
- Por Raziel - sussurrei enquanto a garota gritava de dor.
Fiquei de pé novamente e observei enquanto os ossos da perna dela estalavam e voltavam ao lugar, seus ferimentos se fechando momentaneamente e sua pele se restaurando.
- Pelo Anjo - Alexander murmurou, pasmo.
Tive que sorrir um pouco.
- Precisamente - concordei - Desculpe, Clarissa, minhas Runas são fortes demais. A dor é inevitável no processo.
Ela me olhou com firmeza, seu rosto recém-curado demonstrando curiosidade.
- Pode me chamar de Clary - ela disse por fim.
Inevitavelmente, tornei a sorrir. E mais uma vez me repreendi internamente.
"Não crie laços com nenhum deles, isso apenas atrapalhará sua missão. Pense no todo, minha menina, não em si."
- Você consegue criar um portal, Clarissa? - perguntei, ignorando o último comentário da garota.
- Acho que sim - ela respondeu - Jace, me ajude a levantar.
Enquanto Jonathan a erguia do chão, me afastei deles e fiquei a postos. Mais demônios estavam por perto, eu podia sentir.
Demorou vários minutos até que Clarissa conseguisse abrir um portal. Tempo o bastante para que um novo estrondo se fizesse ouvir. E para que um demônio de dois metros de altura aparecesse no final do corredor.
- Passem - falei, as Lâminas já acesas mais uma vez em minhas mãos - Eu os encontro quando amanhecer.
Mas eles não pareciam dispostos a isso. Alexander se colocou ao meu lado direito, o arco em prontidão, e Jonathan se posicionou à minha esquerda. Simon e Isabelle, esta última já tendo recuperado seu chicote, pararam um em cada flanco da formação.
- Clarissa não vai segurar o portal por muito tempo - asseverei - Passem logo.
- A questão, Menina Anjo - Jonathan falou enquanto avançava - é que não deixamos ninguém para trás.
Uma saraivada de flechas voou para o peito do demônio. Em seguida, os quatro Nephilim correram e se lançaram à luta. E eu estava meio sem reação. O que obviamente durou apenas um segundo. Os alcancei antes mesmo que chegassem ao demônio. E quando eles atacaram, cercando a criatura, eu agi. Saltei no ar e lancei meu ombro contra o peito do demônio, jogando-o ao chão. Quando me viu, ele urrou.
Pisei em cima dele e, com um arroubo repentino de força, impedi que se levantasse.
- Você pode fugir de mim - falei com uma risada - Mas não pode fugir do meu sangue.
Cravei as duas Lâminas Serafim em seu crânio e o explodi de volta para qualquer que fosse a dimensão demoníaca de onde tinha vindo.
- Qual o seu nome, afinal? - Alexander perguntou com uma expressão de assombro.
- Meu nome - falei - é Talita.

Os Instrumentos Mortais - Cidade dos Anjos Renascidos (concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora