CAPÍTULO VINTE E UM

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     Subi ao andar dos quartos e me joguei de encontro a uma parede, tentando controlar a ira que ainda percorria meu corpo. Respirei profunda e longamente, conjurando meu autocontrole, e em questão de minutos estava totalmente livre de qualquer sentimento de raiva.
     Só então senti de fato a dor em meu braço ferido. Não era nada de mais, nem sequer poderia ser considerado um ferimento se comparado àqueles que eu já tinha sofrido. Era doloroso, claro; nem mesmo eu tinha conseguido me tornar imune à dor. Minha resistência a ela era alta, muito alta, mas o fato de eu lidar bem com a dor não significava que eu não a sentia.
     E aquela, particularmente, eu sentia em meu orgulho. A petulância de Theresa em pedir para me estudar tinha ultrapassado o senso do ridículo. Eu estava ali, naquela dimensão bagunçada e corrompida, para proteger a vida como um todo; e faria tudo o que estivesse ao meu alcance para isso... Mas ninguém, jamais, me utilizaria como objeto de estudos. Eu nunca me rebaixaria desse modo, nem mesmo se disso dependesse minha própria vida. E com certeza não o faria para satisfazer os caprichos científicos de Theresa Gray.
     Analisei mais detidamente a queimadura, tocando os pontos mais sensíveis com as pontas dos dedos. Apesar de tudo, era preciso admitir que a mira da feiticeira era realmente boa. Se não fosse eu a pessoa tida como alvo, a Marca atingida teria ficado em frangalhos. E se tornado, obviamente, inútil.
     — Você está bem?
     Olhei para cima e me deparei com Zacariah a poucos metros de distância.
     Minha distração era tanta que nem me dei conta de sua aproximação. Fantástico.
     — Estou bem — garanti — É melhor que você volte e verifique como Theresa está. Eu posso ter exagerado um pouco.
     — Nós dois sabemos que Tessa está bem. Você se assegurou de que fosse assim.
     Ergui as sobrancelhas.
     — Perdão? — perguntei.
     — Você não permitiu que ela se machucasse. Eu vi. Quando a derrubou pela primeira vez, você pôs sua mão sob a cabeça dela para impedir uma concussão; quando a chutou, depositou força apenas para derrubá-la, mesmo sendo obviamente capaz de quebrar vários ossos com aquele único chute; e quando a desarmou, aquele giro fez com que ela não caísse com o rosto contra o chão.
     Sim, eu realmente havia feito aquilo. Não exatamente consciente disso, mas também não propriamente inconsciente. Apesar de tudo, eu não queria que Theresa se ferisse.
     — Seria hipocrisia de minha parte machucá-la depois de dar uma lição de moral sobre a forma correta de participar de um treinamento — falei.
     O rosto de Zacariah se contorceu em uma careta involuntária.
     — Eu sinto muito, Talita. Tenho certeza que ela não quis...
     — Sim — cortei — Eu também tenho certeza.
     Sua careta se intensificou.
     — Tessa não é assim, verdadeiramente. Não sei o que houve lá, Talita. Ela...
     — Zacariah — tornei a interromper — Eu não fui sarcástica quando disse que tenho certeza que a intenção dela não era me machucar. Conheço a índole de Theresa. É por isso que estou dizendo que deve retornar para ela agora.
     Uma nova pontada de dor se espalhou por meu braço. Foi a minha vez de fazer uma careta.
     — Você sabe — Zacariah murmurou.
     Inclinei o corpo para alcançar a Estela em minha bota, mas parei quando um espasmo me indicou que os músculos de meu braço também tinham sido atingidos, afinal.
     — Sei o quê? — perguntei quando comecei a me abaixar novamente.
     — Aqui — disse Zacariah, encurtando a distância entre nós e me entregando sua própria Estela.
     Aceitei a oferta e a peguei, ativando minha Iratze. Cerrei ambos os punhos quando a cura percorreu meu corpo, levando consigo a sensação de que centenas de agulhas aquecidas em brasa estavam se arrastando sobre minha pele. Meus olhos se fecharam nos poucos segundos necessários para a cura se completar.
     — O que é que eu sei? — tornei a perguntar, ainda de olhos fechados.
     Zacariah pareceu hesitar.
     — Sabe que Tessa e eu fomos noivos — falou enfim.
     Sim, eu tinha conhecimento sobre tudo o que dizia respeito ao início da vida da Feiticeira Nephilim.
     Olhei para Zacariah, então. Mas ele não mirava meu rosto e sim meu braço.
     — Não há cicatriz — comentou.
     — O quê? — perguntei.
     — A queimadura não deixou nenhuma marca em você.
     — A Iratze Permanente apaga as cicatrizes quando o ferimento é pequeno, do contrário, a essa altura, meu corpo seria uma colcha de retalhos.
     Zacariah riu discretamente.
     — Metade de seu braço ficou coberta por uma queimadura que dilacerou sua pele — argumentou ele — e você considera isso um ferimento pequeno?
     — Com certeza você já curou pessoas cujos ferimentos eram bem piores do que uma simples queimadura. Isso não é nada — eu disse — Sua Tessa terá que se esforçar mais se quiser causar danos verdadeiros em mim.
     — Tessa não... — Zacariah pigarreou e calou-se. Quando abriu a boca para tornar a falar, pareceu não encontrar palavras para continuar.
     Balancei a cabeça. Uma onda de frustração sem sentido me dominou frente a insistência do homem em defender Theresa.
     — Obrigada, Zacariah — falei com um aceno, entregando-lhe sua Estela e me afastando para deixá-lo sozinho no corredor.

Os Instrumentos Mortais - Cidade dos Anjos Renascidos (concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora