CAPÍTULO NOVE

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    Estávamos todos sentados à mesa da cozinha saboreando as pizzas que tinham acabado de ser entregues. E, uau, eram realmente boas. Não que eu nunca tivesse provado antes, mas não era a mesma coisa. No Céu eu possuía uma dieta muito bem definida. Nos primeiros cinquenta anos de minha vida, me era permitido apenas comer frutas, verduras e alguns outros alimentos selecionados para me fortalecer. Carne, obviamente, jamais entraria no Reino de Deus. No século seguinte, pude ter uma flexibilidade maior e escolher o cardápio de uma refeição por dia, desde que tivesse a responsabilidade de não extrapolar os limites. Depois disso, duas vezes a cada semana humana, eu passei a poder degustar os doces e salgados que bem entendesse, sendo que escolhia meus horários de alimentação. Talvez isso parecesse infantil para alguém de mil e trezentos anos, mas os Anjos eram meus professores e eu sempre tinha sido uma aluna além de exemplar. Jamais reclamei de absolutamente nada, até porque eram raríssimos os motivos para reclamar.
    Naquele dia, por sorte, Alexander havia pedido pizzas que não levavam carne alguma na receita, o que me permitiu desfrutar discretamente do pequeno prazer que uma boa comida me causava. E eu não sabia o motivo exatamente, mas acabei estranhando a escolha de sabores que o rapaz tinha feito.
    — Nós precisamos pensar em como faremos isso — Jonathan ponderou entre uma mordida e outra.
    De fato. No entanto, algo naquela frase me incomodou um pouco. O jeito como ele falava evidenciava que estava​ acostumado a ficar no comando, a bolar planos, a coordenar ataques. Eu reconheceria um porte de comando em qualquer lugar, fosse entre um grupo de humanos ou em meio a uma horda de demônios preparados para o confronto. A aura de alguém habituado a tomar a frente em suas missões me saltava aos olhos sem dificuldade alguma.
    Evidentemente, a fama de Jonathan Herondale o precedia. O que só confirmava meu pensamento anterior.
    — Sim — concordei com cautela. Imaginava que meu olhar talvez entregasse meu desconforto.
    — Acho que deveríamos falar com a líder do bando, Maia, individualmente — Jonathan continuou — É mais provável que ela dê alguma atenção para toda essa história. Aliás, é melhor que a gente conte apenas o essencial, sem entrar em detalhes.
    Ele permaneceu falando e falando, mas eu já não prestava tanta atenção.
    Em que momento aquele rapaz se considerou no direito de assumir as rédeas da situação?
    — Jonathan! — chamei mais alto do que pretendia.
    Ele se calou. Seus olhos perscrutaram meu rosto, onde obviamente acabou percebendo uma certa indignação. Era quase assim que eu me sentia. Indignada.
    — Meu nome é Jace — ele falou. Ficou evidente para mim que não se abalaria por um simples olhar de contradição.
    — Como quiser — concordei, muito embora não tenha pronunciado de fato o seu apelido — Mas quero que entenda que não, não contarei apenas meias verdades a ninguém. Não sou a Clave, não usarei mentiras para conseguir nada.
   — Não é a isso que a Clave se resume. Você chegou agora, não sabe...
    — Você ficaria surpreso — interrompi — com a quantidade de coisas que sei sobre esse mundo. E você também sabe muito, viu muito, então não finja que tem alguma fé na Clave. Acredite, Jonathan, eu tenho um modo infalível de saber quando mentem para mim. E você está mentindo para si mesmo, também.
    Um silêncio pesado se seguiu. Nem mesmo Simon, que eu começava a perceber que sempre tinha um comentário espertinho para fazer, se manifestou. Jonathan e eu nos encarávamos quase em uma batalha silenciosa pelo poder. Nossos olhos pareciam ter a fúria de dois lobos Alfa em combate. E, por mais imaturo que parecesse, eu não desviei o olhar. Eu precisava que Jonathan entendesse que aquilo não se tratava de uma de suas muitas caçadas, não era algo que eles fossem resolver com uma espada e uma Lâmina Serafim. Era necessário experiência, conhecimento e estratégia. E, por mais que eles fossem alguns dos melhores Nephilim que existiam, não saberiam lidar com o que estava por vir. Ninguém saberia, a menos que tivesse a liderança apropriada.
    — Jace — a voz de Alexander penetrou a tensão que se espalhava pelo ar. Muito contrariado, o outro quebrou enfim nosso contato visual e olhou de esguelha para o irmão.
    — Que é? — perguntou.
    — Talita tem razão. Você não acha que já ouvimos e contamos mentiras demais por uma vida inteira? Os Submundanos merecem a verdade, por mais dura que seja.
    — Está do lado dela agora?
    Eu me perguntava a mesma coisa, muito embora o tom de Jonathan fosse severo e, em minha mente, fosse a surpresa que prevalecia. Não achei que qualquer um deles fosse apoiar meu argumento, por mais que eu estivesse certa.
    — Estou do lado do que é correto — Alexander respondeu. Achei que seus olhos evitavam focar em mim — Se os demônios pretendem se voltar contra nós — continuou — todos têm o direito de, pelo menos, tentar se proteger.
    "Tentativa" resumia bem a situação. Era evidente que minha missão consistia em salvar todos, dos Nephilim aos Mundanos e Submundanos. Mas era uma guerra o que nos espreitava... E batalhas não aconteciam sem causar baixas. Eu sabia que os demônios agiriam aos poucos, sem arriscar erros significativos. As bestas que eu tinha matado no dia anterior? Eles haviam errado ao mandá-las, mas a perda delas não representaria nada para os Maiores. Ou para a guerra como um todo. Demônios não eram capazes de se importar com seus próprios soldados caídos. Eu, por outro lado, era. Assim como os Caçadores de Sombras. E o Inferno tinha conhecimento disso, dessa desvantagem sentimental que tínhamos.
    Os ataques, portanto, seriam estratégicos. Os elos fracos de nossas correntes seriam caçados e destruídos. Eu não poderia salvar todos, por mais que esse pensamento fosse contra tudo o que eu era.
    "Pense no todo, não em si mesma."
    — Apavorar o Mundo das Sombras não vai ajudar — Jonathan argumentou com irritação — Nós já vimos isso antes. O pavor não une as pessoas, pelo contrário.
     Respirei fundo.
     "Paciência"
     — Você acha que já viram isso antes, Jonathan? — perguntei, colocando uma ênfase desnecessária em seu nome — Não poderia estar mais enganado, nesse caso. Nunca, em toda a história do mundo, foi visto algo semelhante, garoto. Isso não se compara com essas invasões ridículas que vêem todos os dias. O barco de fuga de Valentin? Os demônios que invadiram Idris quando as Torres Demoníacas foram desativadas? Aquilo era apenas festa do pijama perto do que pode acontecer agora.
    Todos se calaram.
    Eu não queria soar tão sombria, tão rude. Mas minha cabeça começava a latejar com a tensão e o estresse, sem contar o fato de que o tempo estava passando. Por mais que o Instituto de Nova York fosse impenetrável, os demônios me rastreariam. Não que eu temesse isso, só tinha outros planos. Eu mesma iria atrás deles... No tempo certo.
    — Olhem — continuei — Eu preciso que acreditem em mim mais uma vez. Nenhum Nephilim é capaz de lidar com isso da forma como foram treinados. Vocês acham que criaturas como Asmodeus ou Azazel vão hesitar? Eles não são como Sebastian Morgenstern, não precisam torturá-los ou ironizar em uma batalha. Não vão pairar a espada sobre suas cabeças enquanto cantam vitória. Não, eles simplesmente irão decapitá-los.
    Encarei Jonathan, esperando que ele enxergasse em meus olhos a certeza que eu tinha em minhas próprias palavras.
    — É preciso experiência para vencê-los — asseverei.
    Isso pareceu deixá-lo ainda mais irritado.
    — O que você sugere, Menina Anjo? — ironizou — Usar a verdade em todos os aspectos?
    Não respondi. Apenas estreitei os olhos enquanto analisava o semblante do rapaz.
    — Vamos fazer isso, então — ele continuou — Vamos até Idris agora discursar em plena Praça do Anjo. Que tal?
    Minha paciência chegou ao limite no momento em que ele concluiu a pergunta.
    Saltei da cadeira e joguei meu corpo por cima da mesa. Nenhum deles teve sequer tempo de entender o que acontecia quando, chocando-me contra Jonathan, o arranquei de seu assento e o lancei ao chão. Antes que ele conseguisse reagir, seu rosto já estava colado contra o piso e todo o meu corpo o mantinha imóvel. Meu punhal estava estrategicamente perto de sua nuca.
    — Diga, Jonathan Herondale — grunhi — Você acha que a Clave vai acreditar que sou filha de Raziel? Diga, o que vai acontecer se eu chegar em Alicante agora revelando que o mundo pode acabar?
    No segundo seguinte eu estava cercada. Isabelle, Simon, Clary e Alexander me olhavam com dúvida, seus músculos tensos. Mas ninguém ousou se aproximar, visto que o menor movimento meu mataria Jonathan.
    — Se não vai responder, eu respondo — falei — Não, a Clave não vai acreditar em mim. E o que vai acontecer se eu disser a verdade nesse exato minuto, sem ter provas ou o apoio do Submundo? Eles vão me odiar, me considerar uma ameaça e tentarão me deter. Porque eles, assim como você, irão me subestimar.
    "Agora pense, Jonathan, no desastre que será se os Nephilim se colocarem contra mim. Acha que isso me afetará? Ou que os Caçadores de Sombras têm alguma chance de me derrotar? Se você, o melhor guerreiro que esse mundo já viu, cai como um trapo velho diante da força que Raziel me deu, o que vai acontecer se eu precisar me defender de Nephilim normais? E, acima disso, o que a Clave será capaz de fazer contra os Demônios Maiores sem mim? Pense, Jonathan. Eu disse que preciso de vocês, o que é verdade. Mas são vocês que não conseguirão sobreviver sem a minha ajuda.
     "Eu estou no comando. Aceite isso."
    Fiquei de pé novamente e me afastei, permitindo que ele se levantasse. O círculo ao nosso redor se desfez quando Clarissa foi até o namorado e o ajudou.
    Jonathan parecia um vulcão prestes a entrar em erupção, seus olhos dourados praticamente faiscavam ao me medir. Eu podia ver que ele queria lutar, tentar mostrar que era melhor, que sua fama de maior Caçador de Sombras não era em vão.
    — Não faça isso, Jonathan — aconselhei — Você não pode me vencer.
    E ele sabia disso, apesar de visivelmente estar disposto a tentar. No entanto, talvez percebendo as expressões quase implorativas de seus amigos, desistiu. Lançando um último olhar enraivecido para mim, ele pegou a mão de Clarissa e se voltou em direção à porta. Eu os assisti se afastarem, meu coração até então acelerado se acalmou e meus punhos fechados relaxaram.
    No entanto, alguma coisa em meu peito fazia crescer uma sensação estranha, desconhecida. Remorso. A sensação de que eu havia sido desnecessariamente sincera, que as palavras que para mim eram apenas uma expressão da verdade talvez tivessem a capacidade de ferir Jonathan. Ferir seu ego, sem dúvida. Mas e se fosse mais do que isso? Eu não entendia de sentimentos, mas com certeza não queria ferir os dele. Ou de qualquer um ali.
    Naquele momento eu me peguei pensando no passado. Não no meu, mas no de Jonathan. Lembrei de sua infância conturbada, das torturas em forma de ensinamento, do pai falso, da família nova. Pensei no garoto Jonathan Wayland, no rapaz que se tornou um Lightwood, no homem que precisou se colocar contra o próprio pai e que se apaixonou por sua suposta irmã. Pensei em tudo o que ele havia passado antes mesmo de chegar à vida adulta. As mentiras, a dor, o sofrimento, a culpa, as provações diárias. Jonathan, mais do que qualquer Nephilim, tinha sido testado desde muito jovem, sua força e coragem sendo necessárias quando tudo o que ele deveria fazer era ser criança.
    Então, pela primeira vez em um milênio, eu me perguntei se minha criação no Céu não tinha me tirado ainda mais do que eu julgava. Eu havia me tornado insensível daquela forma em que ponto de minha vida? Talvez eu tivesse sido sempre assim. Eu era mais Anjo do que qualquer outra coisa, afinal. Prática, não sensível.
    Mas eu estava na terra agora. Ali, eu seria tão humana quanto pudesse ser.
    — Jace! — chamei de repente.
     Acho que a surpresa em me ouvir finalmente usando seu apelido fez com que ele parasse de andar e se voltasse para mim.
    Eu nem sequer sabia o que exatamente estava fazendo. Só tinha certeza que queria concertar a ruptura causada naquela parceria de poucas horas. Mesmo que para isso eu tivesse que me expor.
    — Desculpe por isso — comecei cautelosamente — Eu sei que você está acostumado a liderar. Foi treinado para comandar, o que faz muito bem. Você é o melhor Caçador de Sombras que a Clave possui. Mas eu preciso que você entenda que o que está vindo é maior do que qualquer coisa que tenha enfrentado ou até mesmo conhecido. E isso não quer dizer que seja tolo ou imaturo, apenas jovem. Eu tenho mil e trezentos anos, Jace. Lutei contra alguns desses demônios durante toda a minha vida. Abbadon me derrotou quando eu tinha mais ou menos a idade de vocês. Eu era jovem e perdi, porque não tinha o conhecimento necessário na época.
    Mais uma vez, todos me olhavam. Percebi que Alexander tinha se deslocado um pouco, ficando mais próximo a mim. Não como se estivesse na defensiva, mas como se quisesse me apoiar e não soubesse uma forma de fazer isso.
    — Jace — repeti — eu os entendo de um jeito que nenhum outro humano entende, exatamente por isso que eu preciso ficar à frente agora. Não quero liderar para mostrar superioridade ou para rebaixar você de algum modo. Eu preciso de sua ajuda, Jace, mas você vai ter que entender que sou eu que tomo as decisões aqui. Não é vontade minha, é dos Anjos. Talvez você e eu não saibamos o que é melhor para o mundo, no final das contas, mas eles sabem.
    Era isso, então. Por aqueles breves instantes eu tinha buscado encontrar dentro de mim mesma uma porção de humanidade que ficava tão bem escondida que eu tendia a esquecer que ela existia. Em alguma escala, no decorrer dos anos, eu tinha sido capaz de sentir. Senti medo quando vi pela primeira vez um demônio, senti triunfo quando venci minha primeira batalha, senti uma dor quase física quando Ithuriel, Adriel e Uriel foram mortos. Mas, com exceção de raros momentos, eu mantinha meu​ lado sentimental enterrado nas profundezas de minha mente. Sentia, mas era tudo superficial.
    Ao falar aquelas palavras a Jonathan, quando várias pessoas me ouviam, dei um passo impreciso em uma direção desconhecida: Permiti que alguém tivesse a chance de enxergar não apenas meus pensamentos, mas também as emoções que eu escondia por trás de cada frase. Ninguém conseguiria imaginar o quanto me custava deixar algo transparecer, deixar sequer o menor tipo de vulnerabilidade se apresentar. Todo o meu ser gritava em protesto, ordenando que eu trancasse novamente qualquer pensamento que não fosse indispensável e mantivesse a fachada impenetrável de guerreira.
    Só me restava esperar que nenhum deles fosse perceptivo o bastante para entender nada.
    — Escute aqui, Menina Anjo — Jonathan falou, seu tom ainda intenso — Eu não gosto de seguir ordens.
    Suspirei.
    Jogo perdido, então.
    — Mas vou abrir uma exceção — ele concluiu — contanto que você deixe que eu mate alguns demônios.
    Minhas sobrancelhas se arquearam, um pequeno sorriso já abrindo passagem entre meus lábios.
    Jonathan veio até mim com os olhos semicerrados e uma expressão de desafio, seu braço se erguendo para um aperto de mãos.
    — Vou confiar em seu julgamento — falou — Mas não garanto que vou passar por isso sem comentários sarcásticos.
    Apertei sua mão colocando força suficiente para que ele entendesse que o desafio estava aceito. Meu momento de sentimentalismo tinha acabado.
    — Sobrevivi a guerras, Herondale — eu disse — Acho que aguento o seu sarcasmo.
    — Eu posso até tentar ser razoável, caso você comece a usar meu apelido. Do contrário, talvez sua estada aqui seja semelhante a um passeio no Inferno. Eu consigo ser realmente irritante, sabe.
    Jura?
    Sorri.
    — Inferno? — perguntei — Bem, eu já estive lá, não seria propriamente uma novidade. Vai ter que se esforçar mais.
    — Eu sou o melhor da terra, lembra? Vai ser fácil.
    — Sim, você é. O que não significa que seja o melhor do mundo.
    Ainda apertávamos a mão um do outro, ambos com uma atitude intimidadora. Ainda éramos dois lobos Alfa; e provavelmente continuaríamos sendo.
    Com uma risada estrondosa, Alexander evaporou a tensão do ar e finalmente fez com que o sorriso tímido em meu rosto se tornasse um riso aberto.

Os Instrumentos Mortais - Cidade dos Anjos Renascidos (concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora