CAPÍTULO VINTE E TRÊS

2.9K 206 10
                                    

    O portal para fora de Faerie nos depositou no Central Park. Estávamos invisíveis aos olhos mundanos, mas eu sentia como se centenas de pessoas me analisassem ao mesmo tempo.
    Unseelie havia estudado meu nascimento, mesmo sem saber do que se tratava. Ela havia descoberto segredos sobre mim mesma que nem eu, nem Uriel e nem Raziel sabíamos. Eu, que no auge de meus 1.324 anos acreditava saber absolutamente tudo sobre minha própria história. Eu, que tinha conhecimentos que nem mesmo um ser tão antigo quanto Unseelie poderia ter; que tinha visto o universo inteiro através dos olhos sábios do Anjo Gabriel; que tinha voado entre o véu dos mundos em companhia do Anjo Miguel; que tinha desvendado segredos e mistérios da vida e da morte sob a supervisão do Anjo Rafael. Eu havia estudado cada centímetro de meu corpo, cada curva de minha mente, cada nuance de minha alma.
    E agora eu descobria a existência de uma profecia que previa para mim feitos grandiosos. O que isso representava na tapeçaria de acontecimentos que eu vinha traçando em meio àquela guerra?
    — Eu sei que estou me tornando repetitiva — Clarissa disse baixinho — Mas o que foi que aconteceu lá, Talita?
    Não havia centenas de olhos me analisando, afinal. Mas os seis pares que o faziam causavam o mesmo efeito.
    — Quando nasci — falei — os Anjos se reuniram e conseguiram a permissão do Criador para me salvar e me levar aos Céus. O responsável por fazer isso foi Uriel, o Anjo das Profecias, a primeira aura de luz que entrou em contato com a minha. Mas estou tão surpresa com as palavras de Unseelie quanto vocês.
    — Sua mãe… — Alec começou, ao que logo o interrompi:
    — Não. Lamento pela morte dela do mesmo modo como lamento por qualquer mulher que perde a vida em trabalho de parto.
    Alec assentiu. E ninguém mais se manifestou. Apenas olharam-me. Com pena.
    — Tirem os olhares piedosos de seus rostos — alertei — Apesar das surpresas, o dia de hoje foi uma grande conquista. Agora vamos para casa.
    Casa.
    A minha estava longe, muito longe. A quilômetros, Eras, universos de distância. De repente os colares de Ithuriel e Rafael pesavam toneladas de encontro ao meu peito, arrastando-me, conduzindo-me a um abismo que parecia se abrir sob meus pés, lembrando-me de coisas, seres, que talvez eu nunca mais tivesse a oportunidade de reencontrar. Eu não temia a morte, mas temia não rever minha família uma última vez. Porque falar sobre o trágico fim de minha mãe, permitir que as imagens daquele dia vistas através de Uriel retornassem à minha mente, fez com que eu me sentisse saudosa. Não pela humana que eu jamais conheci, mas pelo Anjo cujo coração foi amolecido pelo bebê que um dia eu fora. O Anjo que, agora, tão displicentemente ignorava minha existência.
    O silêncio de Raziel não deveria atingir a mim da forma como atingia. Mas naquele dia em especial eu sentia-me órfã pela primeira vez.
    Quando todos ultrapassavam o portal de Clarissa, rumo ao Instituto, senti uma mão grande, calejada porém gentil, segurar a minha. Virei-me, meio assustada, meio aproveitando a repentina onda de calor que percorreu meu braço. Olhei para minha mão, totalmente envolta por dedos firmes, e fui subindo o olhar até encontrar o rosto de Zacariah. As Runas em suas faces pareciam reluzir um pouco à luz do sol da manhã, seu queixo exibia um indício de barba por fazer e seus olhos, escuros e adoravelmente repuxados nos cantos, exalavam compreensão.
    — Eu sinto muito — ele sussurrou.
    Não pela morte de minha mãe; não por uma profecia recém-descoberta e potencialmente perturbadora. Não. De algum modo, por algum motivo e em algum momento, Zacariah havia aprendido a me decifrar tão bem quanto Alexander.
    — Eu também — respondi, soltando sua mão e deixando-o para trás.
    E eu já não sabia mais o que realmente estava lamentando… Sabia apenas que, com o toque do Nephilim, um pouco daquele abismo havia desaparecido.

                  🗡️   🗡️   🗡️

    Concordamos em nos espalharmos pelas ruas de Nova York nas noites seguintes para garantir que nossa visita à Corte Unseelie não teria repercussões indesejadas. Maia, Bat e outros três licantropes se responsabilizaram por vigiar o Instituto enquanto saíamos, garantindo que nada acontecesse às crianças.
    Isabelle, Simon e Zacariah formavam um grupo; Jonathan, Clarissa e Theresa Gray, outro; e Alec, Magnus e eu, o último. O feiticeiro não ficou, evidentemente, feliz com isso, mas não reclamou, tampouco.
    Aquelas investigações não resultaram em absolutamente nada, a não ser no mau humor de Jonathan e em um momento extremamente desconfortável entre Theresa e eu. Ela não fez menção alguma de desculpar-se, o que não me passou despercebido.
    Nos reunimos na Biblioteca certa manhã a fim de conversar, trocar informações e, novamente, planejar. Magnus recusou-se a participar da reunião, alegando ter problemas particulares para resolver, e saiu, mas não sem antes lançar-me um olhar incomodado. A perturbação de Alec ao ver isso foi óbvia para mim.
    Livrei-me de toda e qualquer companhia assim que pude fazer isso de forma delicada, por fim. Perambulei sem destino pelo Instituto, minha mente fervilhando com pensamentos, recordações, planejamentos. Até que virei em um corredor e me deparei com uma figura encolhida, sentada ao chão. Ty. Ele estava com as costas apoiadas contra a parede e abraçava os joelhos junto ao peito, seus olhos mirando o teto.
    — Olá, Ty — cumprimentei.
    Ele nem ergueu o rosto enquanto eu me aproximava e sentava contra a parede à sua frente. Estiquei as pernas, cruzando-as na altura dos tornozelos, e o olhei.
    — Eu não quero conversar — Ty resmungou.
    — Tudo bem — concordei.
    Ele me encarou.
    — E também não quero companhia.
    Sorri e assenti.
    — Estou apenas descansando um pouco — falei — Finja que não estou aqui.
    Ty sustentou meu olhar e continuou me encarando. Estava bravo, agora. Mas sua irritação era muito mais fácil de observar do que o constante estado de desolação em que o menino encontrava-se. Talvez ninguém mais conseguisse enxergar o significado do que escondia-se por trás dos olhos dele, mas eu com certeza conseguia. Eu via o receio, a ansiedade, o medo. Medo, provavelmente, de reviver os horrores que tinha visto ainda tão jovem. Eu conhecia a história da família Blackthorn, sabia sobre as perdas que havia sofrido. Mas eu não estava lá antes, não pudera observar como a guerra de Sebastian havia atingido cada uma daquelas crianças.
    Algo, porém, era certo: Todas tinham sofrido, todas ainda sofriam. Mas era Ty, com seu jeito durão e sua recusa em se abrir, quem ainda estava perdido em meio à dor. Ele me preocupava, por mais que eu me esforçasse para ser indiferente. Jovens demais, inocentes demais. O sofrimento, quando em proporções tão grandes, podia causar danos irreversíveis em corações e mentes inexperientes.
    Poucos dias. Eu conhecia os Blackthorn e a menina Carstairs havia pouquíssimos dias, mas me pegava os observando sempre que estavam por perto. E sentia que os conhecia, os compreendia, cada vez mais. Ty, Livvy, Dru, Julian, Tavvy e Emma apresentavam um mundo totalmente novo, um que eu ainda não conhecia. E meu instinto de procurar por conhecimento após conhecimento me impelia a observá-los, a tentar entendê-los, mesmo involuntariamente. E foi Ty, particularmente, quem mais chamou minha atenção.
    Naquele momento ele soltava um suspiro de rendição, parava de me encarar e apoiava o queixo nos joelhos.
    — Eu sinto saudade dos meus irmãos — cochichou.
    Inclinei o rosto, esperando que ele continuasse.
    — Helen e Mark, meus irmãos mais velhos — falou — Eles foram embora.
    — Não, Ty. Eles não foram embora. Nenhum deles escolheu isso.
    O rosto de Ty se contorceu e suas mãos se fecharam em punhos.
    — Eu vi meu irmão sendo levado pela Caçada Selvagem, vi minha irmã sendo mandada para longe de nós. Eu vi Jules matando nosso pai e…
    — Não — interrompi gentilmente — Não, pequeno. Você e eu sabemos que Julian jamais machucaria o pai de vocês. Sei que isso dói, mas é preciso que entenda que aquele não era Andrew, não mais. Seu irmão os protegeu, Ty. Não o culpe por isso.
    — Ele o matou — o menino grunhiu — E, além do mais, o que você sabe sobre isso? Você não pode saber como isso dói.
    Coloquei-me de joelhos e engatinhei até seu lado, sentando novamente a centímetros de distância.
    — Além de meu pai — comecei — outros dois homens foram muito importantes em minha criação e em todo o decorrer de minha vida. Eles eram como um segundo e um terceiro pai para mim. E eu assisti, de certo modo, a morte de ambos. Acredite em mim, Ty, eu sei o quanto dói. E também sei que é possível superar a dor.
    Permanecemos em silêncio por algum tempo, apenas o som de nossas respirações se fazendo ouvir. Eu quase podia imaginar as imagens, as lembranças​, passando rapidamente pela mente de Ty, o confundindo, o perturbando.
    O que eu não poderia imaginar era que o menino iria esticar-se, deitar-se de lado e pousar a cabeça em meu colo.
    Paralisei, incerta do que se esperaria que eu fizesse naquela situação. Uma criança estava deitada em minhas pernas, procurando por conforto, pedindo sem palavras por um carinho que eu nem sabia se conseguiria lhe oferecer. Por fim, passei os dedos por seus cabelos no que eu esperava que fosse, no mínimo, uma imitação decente do que os humanos chamavam de “cafuné”.
    — Eu não sinto raiva de verdade do Jules — ele sussurrou — Ele cuida de todos nós desde que perdemos nosso pai. Só que eu não sei o que fazer. Sabe, eu me sinto…
    — Sozinho — completei — Eu sei, pequeno. Mas você não está sozinho. Você tem seus irmãos e seu tio. E tem Theresa e Zacariah também, que sei que cuidam de vocês.
    — Tessa não gosta de você.
    Ri baixinho.
    — Eu sei — concordei.
    — E você também não gosta dela.
    Perspicácia Blackthorn. Era quase assustadora.
    — Você ficaria muito chateado se eu dissesse que é coisa de adulto? — perguntei.
    — Sim.
    É claro que sim.
    Balancei a cabeça com divertimento enquanto contemplava o absurdo daquela cena. Eu, uma mulher que viveu toda a sua vida em um lugar onde não havia um único humano sequer além dela – sendo que ela mesma não era exatamente humana – dando colo a uma criança cuja curta existência havia sido afetada por uma experiência traumática.
    Eu jamais tinha conhecido uma criança. E agora acariciava os cabelos de uma e buscava por palavras de consolo para lhe dizer.
    Aquela dimensão proporcionava tantas reviravoltas no rumo dos acontecimentos que deveria ter sido criada com um manual de instruções.
    — Sabe, Ty — falei — Eu realmente acredito que Helen e Mark voltarão para a vida de vocês. Talvez não hoje, ou em um mês. Mas eles são sua família… E a família sempre acaba retornando ao lar.
    — Eles não vão voltar. Eles não podem voltar.
    Suspirei.
    — Você ainda é tão pequeno, Ty. Há muitas coisas que aprenderá no decorrer do caminho. E uma delas é que nada nunca é definitivo, principalmente a dor.
    — Então você acha mesmo que vou rever meus irmãos? Até Mark?
    — Tenho um pressentimento bastante concreto quanto a isso.
    Ty resmungou.
    — Você está inventando isso.
    Ri novamente.
    — Quando eu tinha a idade de Tavvy, pintei com giz de cera todas as armas de meu pai — contei — e depois tentei fingir que eu não havia sido a responsável. Mas acontece que eu era a única criança que vivia por lá, então a mentira não surtiu muito efeito. Depois daquilo eu nunca mais inventei coisa alguma.
    Foi a vez de Ty rir.
    E então, antes que eu me desse conta, ele estava dormindo em meu colo.
    Ficamos daquele jeito por muito tempo. Ty roncando baixinho, eu permitindo que meus pensamentos vagassem despreocupadamente, como não acontecia havia dias. Eu sentia-me confortável ali, mesmo que minha coluna implorasse por uma superfície mais macia em que se apoiar.
    Quando tentava me decidir entre acordar Ty ou carregá-lo para seu quarto, o som de passos apressados chegou até mim. Livvy veio correndo e parou, derrapando, quando nos encontrou.
    — Ele está bem? — perguntou de imediato.
    Assenti.
    — Só está cansado, eu creio.
    A menina fechou os olhos por um instante e beliscou a ponte do nariz entre o indicador e o polegar. Estava tensa, preocupada.
    Ela voltou a andar e ajoelhou-se ao meu lado, observando o irmão com um misto de afeto e receio.
    — Eu estou tentando — ela cochichou — Estou tentando ajudar Ty, mas ele não deixa. Desde o ataque ao nosso Instituto, em Londres, ele se fechou. E piorou depois da guerra.
    — Ty se sente perdido — falei — Mostre que ele não está sozinho nessa, Livvy. Fique ao lado dele, ajude-o a encontrar outras formas de enxergar a vida. Formas positivas.
    Ela não respondeu, apenas sentou-se e abraçou os joelhos exatamente do mesmo modo como o irmão fizera.
    Livvy era uma menina encantadora. Seus olhos claros e seus cabelos escuros faziam um belo contraste com a pele de porcelana; as maçãs de seu rosto eram delicadas, suaves; e ela possuía duas covinhas fofíssimas que apareciam sempre que sorria.
    Mas naquele momento ela não estava sorrindo. Muito pelo contrário. Ostentava uma seriedade tão absoluta, tão adulta, que por um instante pareceu ser vários anos mais velha.
    — Nós estamos em guerra, não estamos? — perguntou ela, uma ruguinha de preocupação entre as sobrancelhas
    Sem sombra de dúvidas, nós estávamos em guerra. Eu não deveria, entretanto, me permitir entrar no assunto com as crianças. Era cedo demais para permitir que se envolvessem naquilo.
    Se fosse possível, eu jamais as envolveria.
    Mas eu estava cansada de mentiras.
    — Sim, Livvy — respondi então — Nós estamos em guerra.
    Livvy respirou fundo.
    — E estamos vencendo? — sussurrou.
    — É difícil dizer.
    O silêncio mais uma vez recaiu. Não havia muito o que pudesse ser dito depois de uma declaração como aquela.
    — Talita?
    — Hum? — murmurei.
    — Você vai nos proteger?
    O medo por trás de sua pergunta fez com que algo amolecesse dentro de mim.
    — Sim, Livvy — garanti — Com minha própria vida, se for preciso.
    Um leve sorriso se manifestou em seu rosto, quase de modo hesitante.
    — Então eu não vou sentir medo.
    Ela apoiou a cabeça em meu ombro e se aconchegou junto e mim.
    — Você é uma boa pessoa, Talita.
    No segundo seguinte, Livvy estava dormindo profundamente.
    E ali, com a bochecha apoiada no topo da cabeça se Lívia e a mão acariciando os cabelos de Tyberius, acabei eu mesma perdendo-me no mundo dos sonhos.

Os Instrumentos Mortais - Cidade dos Anjos Renascidos (concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora