Capítulo XXVI - Maven

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Abro os olhos, mas não enxergo.

Está escuro, um breu. Meus braços estão amarrados à cama em que me encontro. Pesados.

O ar é frio e úmido. O quarto é pequeno, e me engloba com suas quatro paredes finas. Meus instintos me dizem para desamarrar-me desta, levantar e tocar fogo em tudo, mas meu desgaste refuta. Sinto-me preso em meu corpo, e o cansasso é as algemas.

Um ruído vem da porta. A maçaneta forma um novo ângulo. Alguém entra.

- Olha quem acordou! - Diz, surpreso. E tenta iniciar uma conversa descontraída, ignorando o fato de meus tornozelos estarem amarrados à uma cama. - Tu és mais forte do que imaginamos. Não devia estar acordado já.

- Quem é você? - Questiono. Tento subir mais, mas não consigo nem ao menos endireitar a postura como de um verdadeiro príncipe. Minha mãe me deserdaria apenas pelos péssimos modos.

- Sou Bran Parker. E nem tente me reconhecer. Minha irmã e eu cuidamos de vocês após o Ataque Repentino.

- Espera... Vocês? Por que vocês e não você?

- Lane tinha razão, você não se lembra de nada. - Rebate. - Pois saiba que não está sozinho, alteza. Se recomponha que sua princesa precisa de você.

Franzo a sombrancelha com a menção. Quem é essa garota? Querem me empurrar para alguém que não conheço, não me lembro.

- Vocês estavam na ponte de Samambaia quando o Ataque Repentino à mesma começou. Cuidamos de você e Mareena. Ambos estavam gravemente feridos e perderam a memória. Mas com você foi pior. Seu crânio havia sido deformado por destroços. Tentei, por cinco dias, deixá-lo normal novamente. Enquanto isso, Lane cuidou de Mareena, pelo menos até você acordar. Digo-lhe, tristemente, seu caso é sério. Não sou um curandeiro muito bom, nem sequer tenho tanta prática, nem Lane, mas fiz meu máximo para curá-lo, e quando chegar ao palácio novamente, será cuidado pelos melhores.

- Palácio? Por que eu iria para lá?

- Porque você mora lá! Não me ouviu te chamando de alteza não? É a casa de vocês.

- Não gosto desse vocês. Não posso gostar de alguém que não conheço...

- Que não se lembra. - Interrompe.

- Que seja. Como viemos parar aqui?

- Eu e Lane trabalhávamos na ponte. Resgatamos várias pessoas. E quando fomos resgatar vocês, uma mulher, de aparência forte e perigosa, acelerou o passo para resgatar vocês primeiro, mas não parecia estar com boas intenções. Então, pegamos vocês e saímos dali. Eles nos perseguiram até certo ponto, e conseguimos despistá-los. E trouxemos vocês para essa cabana já conhecida. Aqui é seguro.

- Onde fica?

- A cabana? Oh, certo. Fica na barreira de proteção natural que os verdes criaram para proteger seu casarão de poluição e fedor. Foi o máximo que conseguimos chegar.

- Estamos dentro de um... Muro?

- A barreira é penetrável. Além do mais, é mato! - Ele zomba. Franzo o cenho e ele para. Tenho muita influência aqui.

- Cadê ela? - Pergunto. Bran pisca rapidamente, em um minuto não soube do que eu estava falando.

- Ah, sim! Mareena Titanos. Sua outra metade da laranja, claro que sim. Ela está em outro quarto, com Lane. Em recuperação. Vou chamá-la.

Ele sai apressadamente. Olho ao meu redor. Não tem muita coisa interessante, a não ser por um fato. Tem sangue nas paredes, prateado e vermelho. Mare. Numa espécie de mesa improvisada no canto, pende seringas, algumas vazias e outras prontas para a aplicação. Dois processos: retiraram sangue, e aplicaram algo nele, ou, quem se atreve a imaginar, que poderiam ter posto algo no lugar desse sangue.

Por algum motivo - me atrevendo a dizer - instinto, não confio neles.

- Vou deixar vocês a sós. - Diz Bran, já nos deixando. A encaro, confuso. Não me lembro muito bem dela. Sendo sincero, não me lembro absolutamente nada sobre ela.

- Maven! - Diz, vindo me abraçar. Não retribuo, e ela percebe. Então ela me conhece bem. - O que houve?

- "O que houve?", estamos dentro de um...muro, numa cabana sinistra, com gente doida nos rodeando, e sem lembrar, sequer do que eu comi ontem. - Cuspo as palavras.

- Essas "gente doida" que você diz nos ajudou. Resgatou-nos, cuidou-nos, e ainda estão a fazer. Finja agradecimento, pelo menos. Coloque sua máscara de príncipe novamente!

- Eu não quero. Não quero ser quem pensaram que eu sou.

- O que? O que você está dizendo, Maven?

- Estou dizendo que eu quase matei meu irmão a um tempo atrás! Devido a quem eu pensei que fosse minha mãe e agora é só um cadáver. Eu não quero mais usar máscara, participar dessa novela que é a corte. Isso me entendia.

- O que quer então? - Ela grita, algumas lágrimas ameaçam cair. - O que você quer, Maven, o que você quer?

Fico em silêncio por um instante. Confuso.

- Eu quero você. E eu, numa vida nova.

Agora as lágrimas caem. Ela está mais confusa do que eu. Confesso que minhas última palavras não foram pensadas, foram instinto, impulso, mas certo.

Ela não tem palavras, como o esperado. Fica tão abalada quanto eu.

Para aliviar a tensão do momento, ela analisa o cômodo, tentando espairecer e pensar em uma resposta. Porém, algo a faz parar.

As seringas.

- Mare... - Choramingo. Ela me dispensa com um gesto rápido. Concentrada demais.

- O que é isso? - Ela murmura. Olhando pra mim. Eu apenas nego com a cabeça.

- Eu acabei de acordar, Mare. Percebi isso um pouco antes de você entrar. - Tento.

Ela analisa as seringas ainda. Sua face está completa de emoções. Algumas sequer consigo decifrar. Indecisão, raiva, ódio, tristeza, amargura e muito mais. Nem ela deve saber o que sente.

Rapidamente, Mare saca uma das seringas vazias, e usa a ponta como uma lâmina para lhe auto perfurar. Seguro o ar no momento em que ela aproxima a seringa de si. A ponta faz uma linha reta, não muito profunda por seu braço, com cerca de cinco centímetros. Sangue prateado jorra vívido e com um cheiro metálico e enjoativo. Um sangue novo.

Até ela mesmo fica surpresa diante de tal ação.

- Mas o que? - Penso em voz alta.

- Descobri hoje... quer dizer... argh. - Se revolta. - Faz dias que meu sangue está clareando, e manchas diferentes surgem em meu corpo com a mesma rapidez que somem. Mas agora...

- Mare, você é prateada agora.

Minhas palavras a atingem com tanta intensidade quanto pensei que teria. Lágrimas jorram de seus olhos vívidos. Sua pele está mais pálida que com a maquiagem. As próximas palavras são ditas a base do choro e soluço, como uma súplica. Porém, sei que o que vem depois será bastante sangue no chão.

- Maven...

Faíscas dançam pelos braços de Mare, que mostra seus dentes, sedenta. Por sangue. Seus olhos estão vazios, opacos. Ela agora se tornou fria.

- Ah Mare... - Sibilo tristemente. Ela parece recuar, mas logo assente em determinação.

- Sangue.

Príncipe EsquecidoOnde histórias criam vida. Descubra agora