Um par de coturnos pretos. Era isso o que Júlia calçava quando a mãe escondia o par de All Star vermelhos de cano alto.
Apesar de serem sua segunda opção, ela amava aqueles coturnos. Na verdade, ela amava a ideia de andar com a sua versão de botas de combate; a ideia de enfrentar as batalhas do dia de cabeça erguida. Batalhas essas que somente ela conhecia.
Júlia escondia alguns segredos. O maior deles estava entalado em sua garganta fazia um tempo e ela havia prometido deixá-lo no passado. O problema é que o passado tem essa mania estranha de entrar sem bater à porta.
Lá estava ele. Impregnado em tudo. Na camisola favorita (que ela nunca mais usou), na cidade, no diminutivo, nas fotos com os amigos da antiga escola, no nome do professor de física favorito e também no de geografia (por que diabos aquele desgraçado tinha que ter um nome tão comum?), no coração descompassado quando o tema surgia na sala de aula e a professora dizia "Talvez tenha acontecido com uma pessoa próxima a você". Ela não gostava de ser essa pessoa próxima.
Muita coisa havia mudado desde o ocorrido. Ela conhecera um cara legal que a fazia esquecer de tudo com abraços de urso e sorrisos. Ele se mostrou muito bom em fazê-la feliz e, por mais que ela repetisse que é impossível conhecer uma pessoa de verdade, no fundo, ela sabia que ele a conhecia bem. Ela então se determinou a deixar aquele pesadelo no passado e não pensar mais nisso.
Ela, infelizmente, pensa demais.
E agora, Júlia, que na verdade tem o meu nome, está pateticamente abraçada a um enorme moletom do Teatro Mágico e vestindo suas meias azuis listradas. Ela nem tem coturnos de verdade e, sem eles, ela não se sente pronta para a batalha.
Passado no passado. Passado no passado. Passado no passado.
Mas o que fazer com os atemporais pesadelos?
Conversar, isso ajuda de verdade. Mas é difícil falar.
E é por isso que ela escreve.
É por isso que eu escrevo.
Porque descobri, nas palavras, meus coturnos pretos, minhas botas de combate.
Não, eu não estou pronta para enfrentar qualquer batalha de cabeça erguida, mas posso tentar.
Ademais, recentemente, descobri que não preciso fazer isso sozinha e, por mais difícil que me pareça, eu posso e devo pedir ajuda....................
Obrigada, moço bonito, por estar, o tempo todo, devendo-me um abraço apertado.
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Avidez
PoetryApenas uma vontade sôfrega de escrever. Capa e ilustrações da mesma por Cassy Frost | Niffler Covers