Esse texto foi escrito para um concurso. Infelizmente, não consegui escrever as dez páginas que o regulamento exigia. Mas gostei do que fiz. Ficam aqui três páginas confusas, mas importantes.
A corrida até a rodoviária com menos da metade do meu mundo nas costas e um mundo inteiro de braços dados comigo. Foi assim que tudo começou. Com meu irmão segurando uma sacola com um mamão maduro enquanto eu comprava as passagens. Duas das dezoito horas, por favor. Naquela época, que faz pouco tempo e uma vida inteira, quase ninguém usava máscaras e o universo parecia quase normal. Meu irmão, mais novo e mais alto que eu, ainda tinha aquele cabelo cacheado caindo sobre a testa e eu acreditava que voltaríamos em uma semana no máximo e, por isso, não tinha pegado as laranjas.
Umas três horas de viagem com um homem tossindo e dizendo, ao telefone, que estava muito mal e com febre. As janelas abertas e o início de um medo que tomaria a todos nós. Nunca achei que sentiria falta dos ônibus cheios e sem ar condicionado. Chegamos. Nosso pai nos esperava no ponto com seus olhos, que são tão carinhosos quanto azuis, sorrindo de longe e dizendo que sentia saudades.
Saudades. Gosto que essa palavra só exista no português e que não tenha tradução. Ela expressa bem o mundo inteiro agora e, a maior parte do mundo não tem noção da sua existência. Saudades da vida pulsando pelas avenidas. Saudades dos amigos e da rotina. Dos que se foram e dos que estão à beira do precipício. Saudades de reclamar das aulas cansativas e de ter problemas normais. Saudades de acordar sem ter que atualizar a contagem de mortos. Saudades do futuro.
Mas voltemos à minha vidinha. Em casa, no condomínio fechado, afastado e quase seguro, eu me instalei com minha família para o isolamento social. “Isolamento social”. Porque “em cidade pequena não tem dessas coisas”. Porque “aqui no condomínio ninguém tem”. Porque “filha, preciso estar na empresa”. Porque “não podemos dar férias para a diarista se ela não quer”. Porque vários porquês colocaram aspas no isolamento e tornaram-no pouco eficiente. Piada. E as pessoas-números aumentando.
Achei que seria bom passar um tempo com meus pais depois de um tempo morando fora. Aquela coisa de “todos juntos” e de “como nos velhos tempos”. Mas a convivência é uma coisa engraçada. Família é uma coisa complicada. Não sei, talvez, depois que você tem certa idade seus pais simplesmente desistem de esconder que têm grandes problemas no casamento e, de repente (para mim, não para eles), o que sempre achei que era feliz e lindo é, na verdade bastante sombrio. É o fim de um mundo dentro do fim do mundo. E eu tentando fingir que “é só uma fase”.
Meu irmão sai todos os dias depois do almoço para andar com vizinhos amigos dentro do condomínio. Ele volta perto das onze da noite. Às vezes depois disso. E eu me perguntei por várias semanas porque ele fazia isso. Sem resposta, perguntei a ele. E então entendi.
“Não tenho vontade de ficar em casa quando ninguém se trata bem”.
Faz sentido. Muito sentido, infelizmente. Desde que o menininho engraçado e carinhoso se tornou um adolescente inteligente, com bom gosto para filmes e terrivelmente cético, a vida mudou um pouco. Porque se tem uma coisa que pais amorosos, mas conservadores não aceitam é o questionamento. E se tem algo que meu irmão mais novo não aceita é a imposição de regras sem explicação ou, no mínimo, uma retórica convincente. E isso faz dele um pensador incrível, um jovem com senso crítico desenvolvido, um aluno questionador, um irmão razoavelmente irritante e um filho grosseiro e respondão (de acordo com princípios judaico-cristãos seguidos pela minha família).
Eu e ele nem sempre fomos parceiros. Volte alguns anos no tabuleiro e nos verá brigando por qualquer coisa ou embolados em uma luta no chão. O nariz dele sempre sangra no calor e eu achava que era culpa minha, até que descobri que o garoto era o melhor amigo que eu poderia ter e que dias quentes podem provocar vasodilatação nas extremidades corporais. E aí, eu saí de casa para estudar e senti falta do meu companheiro de incursões pelo quintal. Então, três anos depois, ele foi morar comigo e foi difícil, porque ele nunca se lembra de colocar a roupa suja para lavar ou de tirar os sapatos antes de pisar no chão que acabei de limpar. Isso sem falar na mania dele de sair sem avisar e de chegar tarde sem explicar o motivo.
Nós nos ajeitamos, resolvemo-nos e ele parou de molhar o chão do banheiro. Mas aconteceu o que pouca gente esperava, acredite, meu irmão era uma dessas poucas pessoas, e uma pandemia tomou o planeta. Todas as pessoas recebendo as mesmas notícias. Aqueles “vamos continuar com as aulas” da escola dele e o “vamos manter as matrículas” da minha faculdade tornaram-se “suspensão das atividades por tempo indeterminado”. Voltamos para a casa dos nossos pais. Ele, sem aulas, eu, sem matrícula, e o mamão, sem noção alguma do que estava acontecendo.
O mamão. Preciso explicar sobre ele. Eu odeio essa fruta, só o cheiro me causa ânsia de vômito. Meu irmão, cujo nome eu ainda não disse, mas é Luiz, não odeia, tampouco gosta. Meu pai foi nos visitar e levou várias coisas para nós. Entre elas, o mamão. Ele ficou na cesta de frutas, isolado. Bem longe das que efetivamente gostávamos. Pesquisei receitas e vitaminas para fazer com o dito cujo, mas nada me pareceu atrativo. Quando o mundo começou a desmoronar, vi, na visita aos meus pais, que duraria bem mais que o planejado, a oportunidade de me desfazer da fruta, já que minha mãe é uma grande apreciadora desta.
Na correria da fuga para o interior, eu e Luiz esquecemos uma quantidade significativa de coisas, entretanto o mamão foi conosco em nossa jornada para “longe” da Covid-19. No maleiro do ônibus, ele rolou e revirou dentro da sacola. Amassou e ganhou um belo de um arranhão. Apesar de tudo, não foi esquecido. Saímos do veículo com ele em mãos e , chegando em casa, nossa mãe avaliou os estragos. Uma cirurgia foi necessária para retirar o que foi danificado pelo arranhão. Uma limpeza vigorosa, com direito a vinagre e tudo. No fim das contas mamãe o comeu com muita granola. E é só isso. O mamão passou por essa viagem toda, enfrentou os desafios do maleiro e suportou as curvas abruptas da estrada tudo para ser picado e misturado com granola. Por mim tudo bem, como disse, não gosto da fruta. Mas sei lá, talvez no fundo, dentro de cada uma de suas sementes, ele sabia o que o aguardava, sabia seu destino e só estava tentando fugir, assim como a maioria de nós.
E depois desses meses eu percebi que estou cansada de ser mamão e de rolar por aí. De não gostar de mim e de fugir de quem sou. Porque é isto que o isolamento tem feito: mostrado-me quem eu sou e quem não sou.
Acordo cedo todos os dias, não porque quero, mas porque sempre há barulho. Fico enrolando no meu privilégio, na minha cama quente cheia de cobertores. E levando. Faço xixi, um longo e demorado xixi. Troco de roupa e, de novo, abuso do meu privilégio: não vou trabalhar ou arrumar a casa, vou fazer yoga. Quarenta e cinco minutos de Hatha ou de Vinyasa. Depois café da manhã. Depois algum curso gratuito que achei na internet. Depois almoço. Depois um filme ou uma série. Depois um livro novo ou velho. Depois caminhada com os cães. Depois algum exercício físico. Um banho. Mais livros. Jantar. Rezar. Dormir.
No meio dessa rotina eu encaixo fotografia, desenho, poesia, música, amor, à distância e do lado, carnal. Caminhadas e caminhadas de amor. Mas é isso. Eu não sou uma pessoa despreocupada e leve como gosto de fingir ser. Preciso de rotina. Mesmo que fútil e superficial. Preciso de objetivos e de ideais. Preciso de projetos vazios ou cheios de significado. Preciso, sobretudo, de abraços.
Descobri que, naquela curva do condomínio, uma série de pássaros se aglomera em torno de um punhado de fubá e de milho que alguém jogou por ali. Quando me aproximo, eles partem em revoada. Sempre erro no timing ou na velocidade da câmera e não consigo fotografá-los. Na casa de não sei quem, existe uma trepadeira na cerca repleta de ninhos de passarinhos e passar por lá é ouvir a coisa mais bonita que se pode durante esse momento.
Ouvir. Não sei se estou fazendo isso bem. As informações me entram por um ouvido e saem pelo outro. Ficam os números e o medo. Medo esse que estou tentando passar por cima. Deixar pra lá. Esquecer. Fingir que não existe. Superar?
Esses dias a gente levou a gata para castrar. Mimi o nome dela. Aquela coisinha bonita passou uma semana presa até tirar os pontos. Agora, livre, ela não parece querer ir a lugar algum. Logo ela que pode. E a gente? Será que ainda se pode sonhar? Colocar “quando isso tudo acabar” antes de cada plano é sonhar? Eu não sei. Talvez devesse ter saído mais, mas a timidez, você sabe. Covardia, talvez. Medo, tudo bem. Aí está ele de novo. Não sei porque uso tanto essa palavra. Esse sentimento. No fim das contas, o que eu temo já aconteceu. A frequência cardíaca do vovô parando, as minhas sinapses desconexas, esbarrar com 23 de outubro na esquina, me tornar uma estranha no ninho, me sentir sozinha, fracassar, afundar, não dormir, acordar, falar demais sobre tudo, ficar sem resposta, me sentir incapaz, ficar sem rumo, incomodar, assustar, não ser boa o bastante, perder quem amo… Isso tudo já aconteceu ou vai acontecer em algum momento e, se é assim, porque tanto temor? Não dá para evitar o inevitável (e não estou falando de Thanos).
Estou me perdendo em devaneios. Era para estar contando como está sendo o isolamento aqui no meu enclave fortificado.
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Avidez
PoesíaApenas uma vontade sôfrega de escrever. Capa e ilustrações da mesma por Cassy Frost | Niffler Covers