CRIAÇÃO

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Todos os seres vivos da Terra fazem silêncio quando ouvem o brandir do martelo do Criador, exceto os humanos. O som do martelo é inconfundível. Ressoa pelos cantos mais remotos do mundo e enche o coração de todas as criaturas. Traz a lembrança de que um dia elas também foram talhadas e tocadas com o dom da vida pela mão do Criador. Com o passar dos séculos, as criaturas humanas perderam a habilidade de discernir entre o som da criação e os sons do cotidiano.

Não se trata de um descaso dos humanos, trata-se de uma incapacidade. Parte disso se atribui ao próprio Criador, que decidiu fazê-los assim, com alguma ignorância, para que pudessem desempenhar melhor o seu papel entre as demais criaturas do mundo.

Quando cria humanos, o Criador precisa somente de um punhado de barro e os molda fisicamente à sua imagem e semelhança. São simples de serem feitos, exigem pouca determinação e são criados em grandes quantidades. As criaturas originadas na argila são os operadores do mundo, aqueles que travam as mais difíceis batalhas para responder às questões que o universo impõe. Precisam ser orientadas, e depois que o sopro da vida os preenche, não podem mais ser abandonados sozinhos. São dotados de livre arbítrio, por isso, muitos não são capazes de aceitar o fato de sua infinita pequenez diante de todas as obras do Criador. Em contrapartida, de natureza rebelde e inventiva, são criaturas frágeis, carentes e egoístas. Também são curiosas, divertidas, incansáveis e determinadas. Indiscutivelmente, são os preferidos do Criador. Todas as demais criações giram ao redor deles, cumprindo cada um seu papel no teatro natural. A vida cotidiana se eterniza por meio de suas mãos pequenas e ágeis. Produzem manufaturas, máquinas, plantações, construções; trabalhadores, são foice e martelo. Para que possam travar essa luta e dominar o mundo natural distantes dos difíceis problemas da divindade, o Criador fez os anjos.

Os anjos são muito mais complexos que os humanos. Assim, a dificuldade de sua criação é proporcional à complexidade. Um anjo é criado da luz, moldado em um facho divino que dá forma ao corpo. Depois, as asas vão surgindo à medida que se purificam, quanto mais puros, maiores as asas. Os anjos são leves e voláteis, transitam entre a dimensão divina e o mundo terreno com habilidade e dissimulação, invisíveis ao olho humano. Cada grande grupo de anjos é responsável por um enorme grupo de humanos, e todo esforço que os anjos realizam é sempre no sentido de preservar a vida humana. Eles corrigem os desvios das criaturas de barro ou complementam seus destinos, conforme decidido pelo Criador. Reportam-se diretamente a Ele, elevam queixas e pedidos, fornecem amparo para conflitos, dores e derrotas. Carregam alegrias e compartilham conquistas diariamente no mundo terreno. Como seres feitos de luz, estão a serviço dos humanos por determinação de seu Criador e respondem por esse trabalho constantemente.

E há os djinn.

Para cada milhões de seres humanos, o Criador cria centenas de anjos, mas somente um djinn. A criação de um djinn requer um esforço tremendo, uma dedicação ímpar sobre qualquer outra criação. Até mesmo o Todo Poderoso precisa repousar ao final do processo.

Os djinn foram criados milhares de anos antes dos humanos. No princípio, o Criador martelou por cento e quarenta e quatro dias até criar setenta e dois djinn. Foram eles que auxiliaram na tarefa de construir o mundo: abriram os leitos dos rios, empilharam as pedras das montanhas e espalharam as sementes das árvores nas florestas, orientados pelo Criador. Eram tarefas braçais que demandavam grande força e resistência. Depois de tudo erguido, os djinn ficaram ociosos e começaram a entrar em conflito uns com os outros. Por isso, depois da criação dos homens e para acabar com as discórdias, o Criador decidiu designar um djinn para cada um dos setenta e dois reis que fez reinar sobre Sua terra. Ele acreditava que os reis que empossou mereciam uma chance de realizar os desejos de seus súditos, por isso os djinn desceram ao plano físico para desempenhar um papel importante na condução da história.

Mas o Criador viu que sua ideia não vingou da forma esperada. Os reis eram gananciosos e usaram o poder dos djinn em seu próprio benefício. Não tiraram proveito das criaturas mágicas para espalhar a bondade ou ajudar seus súditos. Insatisfeito, o Criador ceifou muitos desses reis e decidiu redistribuir seus djinn outra vez. Desde esse dia, cada djinn passou a ser criado para um único humano, porque foi assim que Ele decidiu.

A criação de um djinn é um processo de força. O Criador precisa martelar com seu martelo divino sobre a bigorna da vida, até que a bigorna se transforme em aço derretido e depois em fogo. Mas não se trata de um fogo comum, possível de se obter com lenha ou outro material. Trata-se de um fogo perfeito, cujas chamas se levantam sem qualquer sinal de fumaça. Um fogo divino que somente uma criatura de grande poder é capaz de produzir. O braço forte do Criador golpeia hora após hora, dia após dia, e o ribombar da bigorna pode ser sentido por todas as criaturas vivas, da mais simples à mais complexa. Todas as criaturas terrenas relembram o poder do Criador quando ouvem esse som. Cada um agradece seu sopro de vida à sua maneira, e até os medos e anseios ficam suspensos enquanto o último golpe não é ouvido. Quanto mais tempo for necessário para a criação, mais poderoso será o djinn. O Criador se dedica arduamente no fogo que molda um djinn, pois sabe que o resultado disso dará vida a criaturas que usarão o poder recebido com determinação e parcimônia. Precisam ser criados na pureza do fogo perfeito para emitirem seus juízos corretos.

Ao final do processo, o Criador junta o fogo sagrado nascido na bigorna e sopra duas vezes. O primeiro sopro é o Sopro da Vida, que concede ao djinn a vida eterna. Exceto se descumprir as regras do Livro Sagrado dos Djinn, todo djinn será imortal por toda a eternidade. O segundo sopro é o Sopro dos Desejos, que permite ao djinn ser preenchido pela soma de todos os desejos da humanidade em um único instante. É uma torrente de desejos cotidianos, desejos impossíveis, pequenas vontades e necessidades imediatas. O djinn ainda recebe o conhecimento dos segredos mortais, da decepção, dos mistérios da existência e de tudo que possa ser sentido ou desejado no vasto esconderijo da alma humana.

Este é o dom de um djinn, mas também seu calvário. Para sempre, um djinn ouvirá os desejos dos homens, mesmo àqueles que não tenha autorização para realizar. Poderá saber dos anseios sem qualquer palavra pronunciada. Deverá usar da sabedoria para diferenciar uma vontade de um desejo, um desejo momentâneo de um desejo permanente, um capricho de uma necessidade, um desconforto de um sofrimento. Assim é a existência de um djinn.

* * *

Naquele instante, o Criador arrancou da bigorna o Fogo da Vida. Depois, moldou cuidadosamente o djinn e ordenou que labaredas enormes se erguessem na planície no meio do deserto. Houve fogo, não havia nenhuma fumaça. O céu do final da noite se pintou de escarlate com rajadas em púrpura, e nuvens de areia se elevaram no chão formando colunas que lembravam o Templo de Salomão. O corpo inerte do djinn foi alçado da areia e recebeu o primeiro sopro. Amanhecia. Seu coração incendiou, e milhões de faíscas cobriram o deserto numa extasiante chuva de fogo. Então, o djinn arfou e gemeu. Soube que estava vivo e reconheceu a dádiva de viver na benevolência do Criador.

Após isso, o Criador deu seu segundo sopro. Todos os desejos do mundo iniciaram uma corrente que sufocavam o djinn. Ele se sentia vivo e ao mesmo tempo confuso. Depois do segundo sopro, compreendeu todas as angústias do mundo. Sentiu todas as dores não físicas que podem ser sentidas, ouviu todos os lamentos e conheceu todos os desejos. Recebeu o conhecimento sobre todas as coisas. Quando estava repleto do entendimento da alma humana e do conhecimento do universo, ouviu a voz forte.

– Viva de teu arbítrio e por ele responda, pois ele te libertará.

Após as palavras ditas pelo Criador, toda a vida passou pelos olhos do djinn. Ele foi tomado de um amor profundo e eterno, sentiu-se abençoado e agradecido. Em uma dimensão desconhecida pelos humanos, um desafio fora lançado pelo Criador: era a vez do djinn assumir seu papel no teatro divino.

A menina e o djinnOnde histórias criam vida. Descubra agora