Já havia se passado um ano desde que Beca se apaixonou pelo garoto descabelado e de aparelho ortodôntico. Quando ela finalmente conseguiu dar seu primeiro beijo foi em outro menino. Entre uma paixão e outra, Beca teve diversas ameaçadas de amor juvenil, mas nenhum contato físico expressivo. Desta vez, ela seguiu adiante com seu plano de beijar na boca pela primeira vez na vida. Agora era para valer!
Diferente do que se espera para uma garota de doze anos, Beca aprendeu a compartilhar com a mãe as intenções desse primeiro beijo. A mãe de Beca não externou nenhuma reação, ainda que todos os seus sinos de alerta estivessem ressoando compulsivamente. Elas já haviam passado por isso uma vez, quando a menina era mais nova e o impulso se tratava de um afeto quase infantil. Agora era diferente, a mãe percebeu que não havia mais nada a fazer senão orientar a filha.
Naquele momento, mesmo que seu pensamento traçasse todos os caminhos possíveis entre o amor verdadeiro e a total desilusão amorosa, mesmo assim, ela agiu com tranquilidade. Julgando a aparência da mãe, Beca poderia até pensar que não havia nada de extraordinário naquele momento que elas partilhavam.
O djinn sabia que por detrás da tranquilidade aparente, tudo se passava ao contrário. A menina não o proibiu de ouvir a conversa com a mãe, e ele também não pediu autorização, portanto, tecnicamente falando, ele não fazia nada de errado ficando invisível junto delas na cozinha enquanto conversavam.
Ele podia ler os sentimentos da mãe. Apesar de alguma comicidade – e uma boa dose de curiosidade –, o sentimento que se sobrepunha sobre todos os outros eram diversos matizes de dúvida.
O resumo daquela conversa dizia que Beca estava se tornando uma mulher. Num mundo feito pelos homens, ser mulher é uma tarefa complexa, e a mãe sabia disso. Ela sabia que no sistema patriarcal, sobre o qual as relações sociais indevidamente se estruturavam, Beca se sentiria culpada para sempre. A culpa de ser mulher. Uma culpa sem fundamentos lógicos ou palpáveis, e mesmo que absurda, antiquada e imprópria, era incutida em cada menina – consciente ou inconscientemente – por pais, mães, professores e professoras, colegas de escola, meios de comunicação.
Beca seria mulher num mundo organizado por homens. Quantas vezes teria que reiterar seu valor, dia após dia em seu futuro trabalho, apenas porque seus cromossomos se juntaram de um modo e não de outro? Quantas vezes ela teria que responder às mesmas perguntas que são feitas para as mulheres há centenas de anos, mas que jamais foram feitas aos homens? Quantas ruas teria que atravessar simplesmente para se sentir segura sem cruzar com um estranho, ou quantas vezes trocaria de roupa antes de sair de casa para não se sentir muito sexy?
Beca teria que lutar contra a natureza tratando exaustivamente da aparência da pele. Fazer exercícios para manter os padrões inalcançáveis de um corpo perfeito exibido nas capas de revista como o corpo ideal, mas artificialmente produzido por softwares gráficos. Aprender a se maquiar, pintar as unhas, virar os cílios para cima, esconder as inevitáveis rugas surgidas com a idade usando centenas de diferentes cremes faciais ao longo dos anos, deformar os pés em saltos altos, furar as orelhas. Tudo porque era isso que esse mundo comandado por homens esperava dela.
E se ao invés de dois cromossomos X, ela tivesse um cromossomo X e um Y? "Bem, então as coisas seriam diferentes" – pensou a mãe. Beca poderia se preocupar somente em trabalhar e fazer o seu melhor, porque jamais seria avaliada pelo gênero; nunca precisaria responder a perguntas constrangedoras, não precisaria atravessar nenhuma rua para evitar um encontro casual indesejado. Em hipótese alguma, mudaria de roupa para não se sentir sensual em demasia. No mundo dos homens, onde Beca estava prestes a ingressar na condição de mulher, a sensualidade era responsabilidade das mulheres, para o bem ou para o mal.
O djinn podia ouvir os pensamentos da mãe, eles voavam e se espalhavam pela sala numa velocidade impressionante. Ela se perguntava se um dia Beca viveria num mundo onde fosse respeitada – não de forma protocolar por ser mulher –, mas como ser humano que era, como qualquer pessoa deveria ser respeitada. Cogitava se, no futuro, seu salário seria igual ao de um homem quando exercessem a mesma função, se viveria o suficiente para ver mulheres dividindo as cadeiras da política em igualdade de proporção com os homens, ou pelo menos um mundo onde houvesse espaço para que as simples obrigações domésticas fossem compartilhadas. Um mundo em que pais e mães dividissem a responsabilidade sobre os filhos e filhas.
Por outro lado, o djinn conhecia os sentimentos contraditórios de Beca. Na hora de dormir, enquanto trocava mensagens picantes se divertindo com as amigas, cuidadosamente arrumava as bonecas lado a lado. Ele ouvia seu coração em Cabo de Guerra: a segurança da infância e a expectativa do futuro puxando intensamente para lados opostos. Nesse confronto, o futuro não podia ser derrotado. O futuro sempre tinha o Tempo como seu aliado, e o passar do tempo invariavelmente trazia consigo as decisões.
E agora, Beca decidiu que queria beijar! O djinn sorria, esforçando-se para não deixar que suas flautas tocassem. Chegou a hora! Minha garota vai beijar! Beca queria conjugar o mais transitivo de todos os verbos, aquele que só pode ser conjugado na companhia de outra pessoa. Ela perguntava para a mãe como seria isso, como devia fazer, o que podia esperar. A mãe sentia o turbilhão da maternidade se espalhando em cada célula. Via Beca recém-nascida, com um, dois, dez anos. E via a mulher emergindo daquele corpo frágil e desengonçado de adolescente, braços compridos, cabelo longo. A visão do fim da infância era triste, mas adoravelmente linda, porque revelava o florescer de tantas novas possibilidades.
Quando as duas acharam que tinham dito tudo o que precisava ser dito, simplesmente se abraçaram. A mãe estava feliz, mas preocupada. A filha estava prestes a ingressar naquele mundo injustamente dominado pelos homens, e teria de se esforçar muito mais, injustamente. Mas o tempo sempre determina qual a direção a seguir, e não havia nada que pudesse ser feito de maneira diferente do que aceitar os anseios da nova idade. Por mais esforço que a mãe de Beca tivesse feito, ela jamais poderia ouvir o que o coração da menina dizia naquele momento. O djinn sentiu uma pontada de decepção. Imaginou o quão cruel era para os pais e mães essa eterna incerteza acerca do futuro da prole. "Uma pessoa é tão feliz quanto o mais infeliz de seus filhos".
Por mais que qualquer pai ou mãe fizessem, um filho sempre teria suas próprias escolhas. Cabia àqueles dar o que eram, e ao filho, usar o que lhe fora dado com sabedoria. Mas entre um e outro estava o mundo, e nem sempre o mundo responde de forma racional aos desejos e vontades. O mundo é vivo, e o futuro se redesenha em cada nova pegada deixada para trás. Nesse momento, tocado pela incerteza que abundantemente habita o coração humano, o djinn se sentiu compelido a dar sua parcela de futuro para Beca. Naquela noite, ele contou para sua doce menina uma história de amor.
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A menina e o djinn
General FictionEsta é a história de Beca, uma menina comum, mas que tem um Djinn todo seu, uma criatura mágica capaz de realizar qualquer desejo. A trama acompanha a vida de Beca mesmo antes de seu nascimento até a idade adulta. A menina recorre ao seu Djinn para...