SETE ANOS

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Sete dias da semana, sete pecados capitais, sete círculos do inferno, sete vidas de um gato, sete maravilhas do mundo, sete selos do apocalipse. Para os humanos, o número sete é portador de magia. Beca tinha sete mágicos anos quando foi tocada pela magia salgada do mar pela primeira vez.

Foi uma viagem com os pais que culminou no inesquecível encontro com o oceano. O local do encontro foi uma praia com larga faixa de areia, que aparecia e sumia de acordo com a vontade das marés. Cada vez que o mar ia embora, deixava a orla bordada de pedras que desenhavam o chão como uma imensa toalha rendada. Na maré baixa, pequenos barcos de pescadores pontuavam o horizonte, encalhados – temporariamente – aqui e ali. Era como se fossem parte de um bucólico quadro de naturalismo ou uma multicolorida tela pontilhada à escola impressionista.

Quando o mar voltava a engolir a praia, os barcos se alegravam. Era a vez de eles dançarem se balançando ao sabor das ondas, como se o mar fosse uma orquestra, suas ondas uma música e os barquinhos seguissem no vai e vem de uma melodia preguiçosa. Dois para lá, dois para cá, cantava o mar. Dois para lá, dois para cá, dançavam os barcos.

Beca descobriu que o mar não era de uma cor só, diferente do que sempre imaginou. O mar era azul. O mar era verde. E azul novamente. E verde outra vez. Ela ficou encantada com as tantas tonalidades de azuis e verdes contrastando com a espuma muito branca, boiando sobre as ondas tranquilas, que estouravam a poucos metros da praia. Quanto à areia, era branca, mas não totalmente. Beca definiu a cor da areia como uma mistura de branco, bege e creme. Uma cor que não podia ser descrita ou reproduzida com facilidade, mas que podia ser bem representada pela expressão à que dava nome: cor de areia. A areia também era quente – muito quente – e voltava a ser fria alguns centímetros abaixo de uma fina camada sob a superfície. Quando se aventurou a correr até a água, a menina aprendeu a cavar pequenos buracos com os pés procurando o solo mais frio para não queimar a delicada pele de seus pés de sete anos.

Beca também ficou muito impressionada com as montanhas de areia, que o pai lhe ensinou serem dunas. Havia grandes montanhas dessas na extremidade oeste da praia. Eram altas e perfeitas, lisas, e dependendo da hora do dia, parecia que as dunas tinham sido desenhadas para criar uma moldura ondulada para o forte azul do céu. A menina escalou as dunas junto com o pai e adorou as pegadas que deixava marcadas na areia, mas ficou realmente encantada ao perceber que suas pegadas desapareciam depois de algum tempo. O pai lhe disse que a duna era feliz, pois era capaz de curar suas próprias feridas.

Foi das dunas que o djinn mais gostou. De alguma forma, aquela imensa quantidade de areia lhe lembrava do mundo dos djinn, no oriente extremo, cercado pelas paredes do universo, onde nenhum humano era capaz de chegar.

Desde que a ideia de conhecer o mar começou a tomar forma nas conversas da família, o djinn sentiu certa apreensão. As criaturas criadas de fogo são prudentes quanto a grandes quantidades de água. No momento da criação, o djinn recebera o conhecimento a respeito do mar e de todos os seus segredos. Mas uma coisa era esse saber teórico, outra era vivenciar tamanha força da natureza pessoalmente.

– Você não precisa ter medo – disse Beca ao djinn quando a viagem estava decidida. – Basta não chegar perto da água.

O djinn apenas sorriu, mas dentro dele pairou uma sombra de dúvida sobre o tipo de mal que o mar poderia lhe causar. Aparentemente, não havia nenhuma resposta para isso. Ou o Criador jamais havia imaginado a possibilidade do encontro – o que era pouco provável em se tratando do Criador –, ou esse receio não era relevante. De qualquer modo, o djinn decidiu responder fingindo precaução para tranquilizar a menina.

– Então vou me manter distante da água, doce menina.

Mas quando ele avistou o mar pela primeira vez, foi como se todo seu conhecimento sobre aquilo não passasse de uma simples especulação. Quando deu ao djinn o sopro do conhecimento, o Criador o fez de maneira genérica. O que cada criatura sente relacionado ao vivenciar um evento não estava incluído no pacote dos sopros, por assim dizer. Apesar de tudo o que sabia e de sua imortalidade, era essa espécie de livre arbítrio emocional que fazia a existência do djinn – e de todas as criaturas mágicas – ser suportável. Nenhuma criatura seria capaz de viver acumulando todas as sensações do universo em si, exceto o próprio Criador.

No encontro com o mar, o djinn foi invadido por duas torrentes: a sua própria, e a torrente de emoções da menina. A dose de euforia que emanou de Beca, misturada com encanto, alegria, medo, deslumbramento e curiosidade era tão avassaladora, que o djinn não conseguiu ficar impassível. Pareceu que alguma coisa se soltou dele, e sentiu as emoções da menina de uma maneira intensa como jamais havia experimentado. Isso desencadeou no djinn uma onda inexplicável de comoção que o fez se sentir completo. O mar era realmente extraordinário. Uma das criações mais espetaculares do Criador detinha tantos segredos que os humanos sequer eram capazes de entendê-lo, mesmo que parcialmente. Humanos foram capazes de chegar até planetas distantes percorrendo milhões de milhas através do éter, mas em se tratando de seu próprio planeta, não haviam conseguido avançar mais do que onze míseros quilômetros afundando nas águas oceânicas.

Mas não foi o tamanho ou os segredos o que mais impressionou o djinn. De todas as coisas no mar que o encantaram, o que mais o tocou foi o som. O mar tinha um som contínuo, ritmado. Era como uma música primordial, rústica. Ele se esforçou para imaginar o que sentiram os primeiros humanos criados do barro quando entraram em contato com tamanha imensidão. Perdeu-se no balançar das ondas e na ausência de padrão dos desenhos da espuma. Viu os reflexos do sol brilharem como milhares de espelhos boiando sobre o verde transparente. Num arroubo de curiosidade, se aproximou da linha d'água. Era realmente maravilhoso. Com olhos turvos de felicidade viu a alegria da menina fugindo das pequenas vagas que rugiam ao quebrar na areia. Beca dava gritinhos simulando medo enquanto fugia da água, mas depois, se deixava lavar. Era a alvura da espuma lavando a brancura da alma inocente de sua doce menina esperta.

Quando foram às dunas, o djinn se sentiu em casa. Longe dos olhos do pai, explicou para a menina que em sua terra natal tudo era feito de areia e cristal. Beca se entusiasmou e teve desejos de conhecer o lugar, mas o djinn percebeu o desejo se formando e explicou que era impossível aos humanos chegarem até lá. Ela não se decepcionou, as dunas eram tão maravilhosas quanto qualquer castelo de cristal perdido em algum lugar onde ela não podia chegar. Diante de tanto pragmatismo, o djinn teve de concordar que as dunas eram fascinantes.

E quando o sol começou a se pôr, o djinn se afastou da família e subiu o mais alto que pode para observar o horizonte. Atrás das grandes dunas se estendia uma longa faixa de areia branca. Ele sentiu como se voltasse para casa, e então, pela primeira vez, o djinn chorou. Chorou porque o dia em que voltasse para sua terra seria o dia em que não teria mais sua menina. Só poderia conhecer seu lugar depois que um dia a menina morresse e fosse libertado de seu desígnio ao lado dela. Pensou nisso como uma injustiça, e mesmo dotado de tantos poderes, sentiu receio em relação ao futuro. O djinn percebeu que Beca se tornara mais do que uma simples humana para ele, que nutria por ela um amor fraterno, materno e paterno simultaneamente, e sentia que seu mundo só seria completo enquanto estivesse ao lado dela. Um medo repentino de perder a menina o arrebatou.

Nessa hora, como sealguém zelasse por ele tentando acalmar seu coração de djinn, o sol fez do marsua cama e espalhou pelo horizonte diversos tons de vermelho. Depois,riscou sobre a terra longas sombras e tingiu o céu de múltiplas cores quecomeçavam em violeta e se espalhavam por todo espectro do arco-íris. Sob o solflamejante, que se tornara não mais do que uma esfera vermelha incendiando ohorizonte, pareceu ao djinn que o Criador havia pintado o mundo e limpado seuspincéis no céu daquele instante.    

A menina e o djinnOnde histórias criam vida. Descubra agora