Os especialistas dizem que a diferença entre uma criança de três anos e um terrorista é que você pode negociar com o terrorista. Beca não fugia à regra. O pai tomou a precaução de proteger todas as tomadas da casa. Os enfeites da sala e os objetos de decoração foram erguidos para alturas superiores a um metro, onde estavam seguros das curiosas mãos da menina. Todas as portas de armário também tinham travas de segurança compradas em lojas de artigos domésticos. Sacos e sacolas plásticas eram imediatamente perfurados e colocados no cesto de lixo reciclável. Produtos de limpeza ficavam fora do alcance, e um portão de grade fixado à porta da cozinha impedia a saída desacompanhada para o pátio, onde uma piscina de três por quatro metros havia feito a felicidade de Beca no verão anterior.
Do alto de sua imortalidade, o djinn achava tudo muito novo e divertido. Os djinn eram criados na forma adulta e eram imortais, tais preocupações com a integridade física passavam longe de sua realidade. Assim, sua maior distração era acompanhar o desenvolvimento da menina. Beca já dizia inúmeras frases em seu idioma natal e em árabe, afinal, era o modo como ela e o djinn se comunicavam quando ela insistia em conversar.
Nos dias de semana pela manhã, Beca ia para a pré-escola onde convivia com outras crianças, pintava quadros abstratos e fazia bonecos de massa. À tarde, voltava para casa para reencontrar a família. Ela e o djinn tomavam um chá fictício todos os dias depois que ela acordava do cochilo vespertino, quando o djinn materializava convidados especiais para alegria da menina.
Mesmo provendo todos os cuidados necessários, os pais consideravam ter muita sorte, porque a filha não demandava atenção permanente. Afora a curiosidade infantil natural da idade, Beca passava horas se distraindo sozinha em qualquer lugar que estivesse. Crianças que brincam sozinhas se tornam adultos criativos – dissera o pediatra. Beca quase nunca tinha crises de choro, birra ou mau humor e sempre parecia feliz e disposta, ter o amigo mágico sempre ao seu lado era fundamental para isso.
Era sábado à tarde, dia de descanso dos pais. A menina tirava uma sesta no quarto, eles assistiam a um filme na sala. Ela havia adormecido cercada de suas almofadas, e os pais decidiram deixá-la ali mesmo, aproveitando a folga para se aninharem em frente à televisão. Mas Beca acordou em silêncio, estava descansada e cheia de energia. O djinn havia acompanhado o sono da menina e não havia interferido nos sonhos. Ela sonhara com a piscina, com o verão e com os mergulhos desengonçados que dava com o pai. Despertou com uma enorme vontade de tomar banho de piscina.
O dia não estava quente, mas também não era frio o suficiente para desanimar uma criança de se divertir dentro d'água. O djinn percebeu que aquela vontade era quase um desejo em sua forma bruta.
– Acho que não é uma boa ideia – ele disse.
Mas Beca não estava interessada nas opiniões do djinn, pelo menos não agora. Levantou cambaleando de sono, ficou catatônica em pé entre as almofadas por uns instantes e depois, quando pareceu realmente desperta, o djinn pode sentir o tamanho da determinação: Beca queria mesmo a piscina.
– Quem sabe fazemos um chá? – ele sugeriu, mas a menina não mudou de ideia.
O desejo crescia dentro dela, o que alertou o djinn. Os pais estavam na sala entretidos com a televisão. O djinn sabia que as tragédias nascem das coincidências. Num impulso, voou até a porta da cozinha e constatou que o portão que separava a casa e o pátio estava aberto. Ficou apreensivo. Voltou para o quarto, e Beca já caminhava em direção à cozinha.
– Vamos chamar papai? – o djinn arriscou.
Talvez a menina concordasse, e isso chamaria a atenção dos pais para o perigo iminente. Mas Beca fez que não com a cabeça e colocou o dedo sobre a boca fazendo sinal para que o djinn não fizesse barulho. Deu um sorriso maroto. As coincidências estavam em curso.
O djinn se colocou entre a menina e a porta do corredor que levava até a cozinha. Pela primeira vez fez uma cara de mau, como se desaprovasse a atitude de Beca. A menina não ligou. De alguma forma sabia que a relação deles estava baseada nos desejos dela e, atravessando o corpo imaterial do djinn, seguiu em direção ao pátio.
Ele sentia a determinação na menina crescer e se espantou. Dentro de Beca havia uma força que ele não conhecera até então, uma determinação diferente, um desejo convertido numa bela dose de teimosia. O djinn suspeitou que talvez não fosse capaz de conter o avanço.
A menina atravessou a cozinha com pequenos passos atabalhoados e chegou ao quintal. Logo que avistou a piscina deu um gritinho de felicidade e disparou em direção da água. O djinn tentou mais uma vez deter a menina colocando-se em sua frente e disse com firmeza.
– Rebecca, não!
Mas Beca somente o olhou com um olhar lânguido e contornou o corpo desmaterializado. Os sentimentos do djinn mudaram de apreensão para terror. A menina correu para a piscina, mas não sabia nadar.
Assim que se jogou na água, Beca percebeu que não foi uma boa ideia. A água estava fria, e ela não conseguia se manter na superfície nem chegar na borda. Seus bracinhos cansaram rapidamente, engoliu água e começou a chorar, mas ninguém vinha em seu auxílio. Ela podia ver o djinn, mas ele não fazia nada. Chamou pela mãe, mas ela não apareceu. Beca estava aterrorizada, gritando e chorando, a ajuda não vinha. Numa questão de milésimos de segundo, o djinn desapareceu.
Ele invadiu a casa como um flash, viu os pais assistindo televisão, eles não sabiam que sua filha estava em perigo. Primeiro, ele se transformou num vento forte e bateu algumas portas, mas eles não deram importância. Apenas comentaram e cogitaram que o barulho poderia acordar Beca. Como não ouviram nenhum choro, voltaram para o filme. O djinn tinha de ser mais contundente. Num rompante de determinação, se transformou invadindo o aparelho de TV. Em seguida, libertou sua energia entre os componentes eletrônicos gerando uma corrente elétrica intensa, fazendo com que o aparelho faiscasse e emitisse um forte ruído.
Os pais de Beca foram surpreendidos pela explosão repentina da TV e pularam do sofá assustados. Parecia um curto-circuito! Passados alguns segundos do susto, e percebendo um silêncio incomum na casa, o pai gritou:
– Beca!
A mãe correu para o quarto, mas Beca não estava lá. Movida pelo instinto maternal, imediatamente imaginou o que podia estar acontecendo e alertou o pai:
– No pátio! Beca está no pátio!
O pai correu pela cozinha e, mesmo sem avistar a menina, ouviu os gritos desesperados que vinham da piscina. Jogou-se na água vestido e levantou Beca pelos braços entregando-a para a mãe, que já estava do lado de fora. A mãe chorava desesperadamente quando abraçou a menina, sentia uma culpa maior do que o tamanho do mundo.
– Desculpe minha filha, desculpe! – repetia sem parar.
Beca chorava também, e o djinn não conseguia sequer encará-la agachado ao lado dos pais e da menina.
O choro foi diminuindo aos poucos, e todos entraram na casa. A menina foi aquecida e enrolada nos braços dos pais. O djinn observava tudo de longe, mas projetava em Beca um olhar que o acusava. Seu melhor amigo não havia feito nada para salvá-la, ele sabia que precisaria deixá-la crescer para explicar o porquê. O djinn não tinha um coração humano, mas descobriu o que deveria ser um coração despedaçado. Neste momento, ele era quase um mortal, sentindo a frustração de alguém que não pode proteger a quem ama. Pela primeira vez em sua vida, o djinn havia se sentido pequeno e impotente, não havia nada que ele pudesse fazer para salvar a vida de sua pequena menina. Os djinn não tinham permissão para intervir entre a vida e a morte, e se Beca tivesse se afogado, ele não poderia alterar seu destino.
"Ao djinn que amorte evitar, a eternidade será ceifada", essa era a Segunda Regra do LivroSagrado dos Djinn.
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A menina e o djinn
General FictionEsta é a história de Beca, uma menina comum, mas que tem um Djinn todo seu, uma criatura mágica capaz de realizar qualquer desejo. A trama acompanha a vida de Beca mesmo antes de seu nascimento até a idade adulta. A menina recorre ao seu Djinn para...