FAMÍLIA

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O primeiro dia de Beca numa escola foi muito diferente das demais crianças. Enquanto quase todas se encolhiam ou agarravam aos pais e mães com medo do desconhecido, a menina permanecia sentada tranquila em sua carteira... ao seu lado estava o djinn. Ele preferiu ficar invisível para as demais crianças, e quando percebia que uma aqui, outra ali, estava em desespero total e sentia o medo crescente em seus pobres corações infantis, fazia uma gracinha. Em geral, animava algum personagem mágico somente para os olhos daquela criança, o que causava um silêncio profundo e um acalmar de ânimos que fazia bem para toda a sala. O choro de uma criança é contagioso.

Depois de alguns dias, já eram uma turma normal. Beca trocava de biscoitos com alguém, levava empurrões, roubava um lápis de cera, esquecia um casaco, tinha um lápis de cera roubado, dava cutucões, distribuía abraços de reconciliação e a vida seguia. Engels ficaria orgulhoso se visse uma sala de aula da pré-escola, ela é puro socialismo. Primeiro, porque a propriedade privada não existe. Tudo é de todos, dos lápis de cera, passando pelos brinquedos até os lanches, indiscriminadamente. Segundo, porque numa sala de aula de pré-escola não existe classe social. Todos são a mesma casta, pelo menos aos olhos uns dos outros, são crianças. Um semelhante humano pequeno com o qual se pode interagir sem medo ou risco. Os preconceitos só serão incutidos pelos pais um pouco mais para a frente. Finalmente, porque não há religião. Bem, alguma religião pode haver, mas crianças nessa idade tem pouca condição de entender muitas das coisas físicas que as cercam, o que dirá um ser superpoderoso que nunca viram e que é capaz de fazer coisas que elas nem sequer sabem o significado. Livre da propriedade privada, das diferenças de classe e da religião, uma sala de aula pré-escolar é um notável exemplo de socialismo aplicado.

Pois se a sala de aula era um universo socialista, Beca era Karl Marx. Sempre à frente das outras crianças, era ela quem comandava a turma. Dividia os grupos, alcançava as folhas do topo da prateleira para os mais baixos, quebrava o giz para a professora para evitar o ruído que fazia quando escrevia no quadro. Grande parte disso era responsabilidade do excelente trabalho educacional que o djinn fazia com ela. Ele era naturalmente provocativo. Se o conhecimento se constrói na problematização, então seria justo dizer que ele era um djinn problematizador. A menina aprendia mais e mais. Ela caminhou, falou e cantou 'Parabéns' antes da média das crianças, bem, em árabe, é verdade, mas cantou. O djinn se divertia muito com sua pequena menina, criando enigmas e brincadeiras que ela também adorava.

Passadas as primeiras semanas de aulas, Beca teve um trabalho de sala que deveria ser entregue aos pais. Era uma espécie de boas vindas da escola querendo demonstrar como as crianças já estavam adaptadas e aprendendo alguma coisa. Depois de orientadas, deveriam desenhar suas famílias. Beca pôs mãos à obra.

Pegou seus lápis de cera e um papel de fundo branco aplicando nele suas garatujas que representavam a mãe o pai e ela mesma. Colocou também um sol muito feliz e uma belíssima representação de uma árvore, que o djinn pensou se tratar de um pirulito.

- É uma árvore - Beca explicou, quando percebeu que ele ficou em dúvida se devia ou não opinar sobre o pirulito verde.

- Eu sei, menina - ele consertou -, acontece que fiquei sem voz de tão lindo que é seu desenho.

Ela abriu um grande sorriso e saiu rodopiando pela sala com o desenho na mão.

À noite, Beca apresentou sua obra de arte para os pais. Eles adoraram. Iam apontando um por um dos bonecos palito dizendo que todos eram lindos.

- Acho que esse sou eu - disse o pai, apontando para a árvore, só para provocar a menina.

- Nããããão! - ela ria.

-Então sou esse! Claro! Como não vi isso antes? - agora indicando o boneco de calça azul e camisa vermelha.

Porém, alguma coisa estava sobrando no desenho. Ali havia um pai, uma mãe e uma Beca, todos devidamente caracterizados de cores primárias. Uma árvore bem verde - que parecia um pirulito - e um amarelo sol sorridente. Mas havia também uma quarta criatura, um enorme boneco colorido de vermelho e laranja que surgia por detrás de Beca e parecia flutuar, com cabelos esvoaçantes presos no alto da cabeça.

- E este? - perguntou o pai. - Quem é?

Beca não se fez de rogada.

- Este é meu djinn.

- Ah... - o pai confuso. - seu djinn? Um amiguinho da escola...

- Não - a menina balançou cabeça negativamente como se aquilo fosse muito entediante. - Meu djinn, meu amigo que faz tudo o que eu mando.

O pai e a mãe se entreolharam querendo rir. Pelo jeito, sua menina tinha um amigo imaginário.

- E seu amigo djinn é bonzinho ou faz traquinagens? - perguntou a mãe querendo incentivar a conversa e ver até onde ia a imaginação da filha.

- Muuuuito bonzinho - respondeu a menina.

Os pais acharam aquilo pitoresco, como quase tudo que vinha de Beca, o que explicava em parte as longas conversas que ela articulava sozinha enquanto brincava no quarto. "É algo da fase", disse o pediatra quando eles perguntaram, "vai passar com o tempo".

Na hora de dormir, depois que a menina estava em sua cama, o djinn explicou para Beca que talvez fosse melhor que a amizade entre eles fosse um pequeno segredo e seus pais não precisassem saber. Ela não quis saber o porquê, mas, aparentemente, adorou a ideia de ter seu próprio djinn secreto. No dia seguinte pela manhã, quando os pais voltaram à carga e distraidamente perguntaram sobre o djinn, Beca desconversou.

- Foi embora para a casinha dele - ela disse.

- Mesmo? - a mãe fingiu surpresa. - E ele mora longe?

- Muuuuito longe - disse Beca, abrindo os braços como se estivesse abraçando o mundo para ilustrar a distância.

- E será que ele vai voltar?

- Não.

- Não vai voltar? Por que? - a mãe quis saber.

- Ele está comsaudade da mamãezinha dele - a menina respondeu marota e sorriu traquina para ocanto vazio da sala, onde havia um djinn que ria alto fazendo suas flautastocarem.

A menina e o djinnOnde histórias criam vida. Descubra agora