PAIXÃO

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Ele era pelo menos dez centímetros mais baixo do que ela. Sorriso emoldurado por um aparelho ortodôntico, algumas espinhas no rosto, cabelos sempre desalinhados. Os braços longos demais para o tamanho do corpo, um jeito de andar cheio de gingados propositais, muitas gírias e olhares enigmáticos. Era assim que o djinn via o menino pelo qual Beca se apaixonou pela primeira vez aos onze anos. Seu amor agora não pertencia mais à boneca gigante, pertencia a um garoto.

O djinn percebeu os primeiros sinais desse amor quando retornavam da escola. Beca estava diferente. Era uma mistura tão grande de sensações, que até o djinn se sentia confuso para interpretá-las. Algo escondido entre muitas camadas. Ele quase não podia perceber, mas o sentimento era forte demais para não ser notado. Tinha um aspecto dissimulado e trazia uma sensação de urgência que o djinn jamais havia sentido em Beca. No caminho de volta para casa, ele puxou conversa.

– Quem é aquele menino?

Beca parou e voltou-se instantaneamente para o djiin. Recompondo-se, respondeu:

– Que menino?

– Aquele menino que estava conversando com você quando saímos da escola.

– Não me lembro de menino nenhum, e não vejo mal nenhum em conversar com um menino. Deve ser da minha classe, um menino qualquer. Não sei por que tanta curiosidade por causa de um menino.

O djinn encerrou a conversa e fingiu não perceber os olhares desconfiados da menina até chegarem a casa.

Essa não era a primeira vez que Beca se sentia atraída por um garoto, mas era a primeira vez que a atração ia além da curiosidade. O djinn entendeu que estava chegando o momento, era hora de Beca crescer. Mesmo com todos os seus poderes, não conseguia imaginar como seria o dia em que isso acontecesse. Pensou no pai e na mãe de Beca, e como deveria ser difícil essa sensação de entregar uma filha ao mundo. Pensou na angústia que eles sentiriam quando surgissem os primeiros problemas que ela precisasse resolver por conta própria. Nas inúmeras vezes em que eles questionariam se fizeram a coisa certa ao educá-la, e em toda insegurança que teriam enquanto vivessem. Refletindo sobre a ansiedade dos pais, o djinn compreendeu melhor a frustração humana. Por mais que o trabalho fosse feito com amor e carinho, com cuidado e atenção, reservando espaço para cultivar os valores essenciais da humanidade, da igualdade e da tolerância, sempre os desafios do mundo seriam maiores do que as lições. Restava uma fé quase cega, e uma confiança baseada em um profundo otimismo, de que os valores adquiridos durante a criação viriam à tona quando chegasse a hora.

Beca passou aquele e outros dias suspirando recostada pelos cantos da casa, ora num sofá, ora em sua cama, ora no tapete do quarto. O djinn a convidou, mais de uma vez, para brincarem de alguma coisa, saírem para o pátio, andar de bicicleta, mas a menina respondia que não estava com vontade. Ele podia sentir os opostos em conflito dentro dela. De um lado, a infância agarrada aos últimos resquícios da felicidade ingênua, enquanto, do outro, estava o mundo a puxar com todo o encantamento que o futuro pode proporcionar. O djinn sentiu uma melancolia que só experimentava quando via o sol nascer pela manhã, aquela sensação de trocar algo que muito se estima por algo que não se sabe como será, mas que é inevitável.

Ele sabia que no mundo dos humanos nem tudo que é verdadeiro é real. Tentou explicar isso para Beca quando viu o menino de aparelho ortodôntico e cabelo desalinhado andando de mãos dadas com outra menina na escola. Naquele dia, Beca ficou insuportável. Havia uma amargura tão grande dentro dela, que o próprio djinn se sentiu acuado. Começou fazendo as perguntas comuns de todos os dias, mas Beca – já há algum tempo – respondia com monossílabos. Cada vez mais, evitava a presença dele, e, cada vez menos, queria conversar. Neste dia não foi diferente e Beca estava mais agressiva. Chegou em casa e mal tocou na comida, jogou-se na cama e chorou em silêncio.

O djinn não podia ignorar essa tristeza e apareceu para ela perguntando se podia fazer algo a respeito. A menina ficou irritada com ele e ordenou que não a incomodasse. O djinn desapareceu, mas ficou por perto, para ver como aquela tristeza iria evoluir.

Passados alguns dias, um novo garoto descabelado e de aparelho ortodôntico, agora da mesma altura de Beca, mudou-se para a vizinhança. Em pouco tempo, o humor da menina voltou a ser o que era. Conversava com o djinn abertamente sobre o garoto, enumerando qualidades como engraçado, inteligente, descolado, bobo e outros adjetivos com os quais as meninas de onze anos costumam descrever garotos por quem estão apaixonadas. Foi numa dessas conversas que o djinn aproveitou para explicar para Beca a diferença entre o que é verdadeiro e o que é real.

– Verdadeiro – disse ele – é tudo aquilo em que você acredita. Mas nem tudo aquilo em que você acredita é real. A menina franziu o cenho.

O djinn riu, mil flautas foram ouvidas.

– Quando você era uma menina muito pequena, alguém lhe disse que o Papai Noel existia. Para a Beca de três anos, ele realmente existia. Ela acreditava que ele trazia os presentes no dia de Natal. Mas hoje, a Beca de onze anos sabe que ele não é real, que é uma invenção dos adultos. Muitas vezes, os humanos confundem o que é verdadeiro com o que é real. Digamos que você tenha algum tipo de sentimento por um garoto. Nesse momento, essa afeição será "verdadeira" para você, mas... e se todas as suas amigas disserem que ele não é um cara legal? Você discorda delas e, com o tempo, descobre que ele realmente não é tão legal assim, exatamente como suas amigas falavam. Isso seria o "real" que você não conseguiu ver porque estava sendo levada por sua própria "verdade" naquele momento de empolgação anterior.

Beca olhava o djinn com curiosidade. Uma espécie de simulação de tédio, mas no fundo, estava interessada nas ideias dele.

– E como vou saber se minha verdade corresponde ao que é real? – ela perguntou.

– Depois que o real aparecer – o djinn respondeu.

Beca olhou para ele desapontada.

– Muito difícil. Muitos enigmas.

O djinn riu.

– Pois bem – ela continuou –, então fique sabendo que, no momento, minha verdade é que estou apaixonada por esse garoto e pretendo beijar ele até o final da semana.

O djinn preferia ter desaparecido, mas não seria apropriado diante da revelação.

– E o que a sua mãe pensa a respeito disso? – ele perguntou, com um leve sarcasmo na voz, franzindo o cenho para cima.

– Minha mãe não precisa saber – ela disse enquanto piscava um olho, devolvendo o sarcasmo para o djinn.

– Pois eu acho que ela deveria saber.

– Por que? Porque ela é minha mãe?

– Não – respondeu o djinn. – Porque você é sua filha. Não existe maior retribuição ao amor do que a confiança.

Beca não falou mais nada, mas o djinn percebeu que aquela ideia ficou reverberando tanto dentro dela que até apareceu nos sonhos.

No dia seguinte após o jantar, Beca se juntou à mãe na cozinha e começou a difícil conversa que toda mãe e filha precisam ter um dia. Conversaram por bastante tempo, o djinn observou de longe, e quando elas se abraçaram e beijaram ao final da conversa, ele teve a agradável sensação de que as duas eram a mesma pessoa em diferentes momentos da vida. Quando foi se deitar, Beca estava mais tranquila. O djinn sentia no coração da menina o júbilo de uma paz com si mesma. Era como se o turbilhão que a habitava houvesse sido controlado pelas palavras da mãe. A conversa fora repleta de amor. Como o djinn sempre soube desde o segundo sopro do Criador, o amor sempre é o melhor caminho para romper barreiras, e o amor verdadeiro sempre se manifesta em coisas tão simples como uma conversa sincera entre pessoas que se desejam o bem.

A menina mudou de ideia e decidiu não beijar o garoto. Mas antes de dormir, mesmo sem ver o djinn que a observava invisível, Beca falou:

– Sei que você está aí, obrigada por me ajudar hoje. Amo você.

Apesar de já ter visto e observado inúmeras vezes as sensações que precedem o choro de emoção humano, somente nesta noite o djinn entendeu a profundidade do sentimento capaz de derrubar uma lágrima de amor. Alguma coisa molhada caiu de seus olhos escorrendo pelo rosto incandescente, e um aperto forte no peito o fez soltar um suspiro inesperado.E

A menina e o djinnOnde histórias criam vida. Descubra agora