O pai de Beca amava os livros. Por isso, transformou um dos cômodos da casa numa pequena biblioteca onde estantes encostadas nas paredes guardavam volumes de todas as cores, espessura e tamanho.
– Livros – dizia – são experiências de vida que se pode comprar.
Ele ficava horas naquele lugar. Para seu conforto, instalou uma poltrona rechonchuda e reclinável, um banquinho estofado com tecido colorido que servia de apoio para os pés, e uma pequena mesa lateral. Era ali que o pai de Beca deixava o copo de alguma bebida ou a xícara de chá enquanto lia. Quando não estava com Beca, a biblioteca se tornou um dos lugares preferidos do djinn.
Por ser uma criatura mágica, o djinn não precisava ler. Ele já trazia o conhecimento de todas as coisas com ele, mas se fosse o caso de querer mais conhecimento, poderia adquiri-lo somente manifestando a vontade de saber. Não precisava estudar em enciclopédias ou folhear uma única página de livro sequer. Bastava ao djinn tocar sobre a capa de um livro para que, imediatamente, absorvesse todo seu conteúdo. Mas não era isso que ele fazia. Ele tocava as capas, mas bloqueava seu próprio poder de receber o conhecimento sem ler. O djinn desenvolveu um afeto especial por aquelas pilhas de folhas de papel presas com cola e barbante, cheias de palavras impressas.
Todas as noites, quando a casa ficava silenciosa, todos os adultos estavam dormindo e a menina estava com os sonhos encaminhados, o djinn se recolhia para a pequena biblioteca. Lá, imaginando-se parcialmente humano, se sentava na poltrona, esticava os pés no banquinho, escolhia um novo livro e lia a noite inteira. Somente abandonava a leitura ao amanhecer, para aquele momento sagrado de todo amanhecer de djinn.
Diante de um mundo sem dúvidas, como era o mundo dele, a leitura era um passatempo prazeroso. Ele descobriu que os livros podiam revelar a essência da alma humana capturada e retratada por um escritor. O djinn acreditava nisso como uma dádiva. O mais belo de tudo era que quando outros humanos lessem esses escritos podiam ter as mesmas sensações que o escritor teve ao criar sua obra. Os livros eram uma revelação em cadeia, que passavam uma mensagem de um humano para outro. Da mesma fonte, se erguiam diferentes verdades, múltiplas interpretações. Os livros contém toda a pluralidade do grande leque de emoções entregue aos humanos pelo Criador, e a escrita é a criação mais engenhosa dos seres feitos de argila. O círculo-mágico humano da imaginação contido num livro era tentador, mesmo para um djinn.
Foi assim que adquiriu prazer na leitura. Percebeu que conseguia se aproximar da experiência de ser humano através das representações contidas nos livros. Começou pelas leituras essenciais, pelos mestres principais. Divertiu-se com o Cavaleiro da Triste Figura, de Cervantes; passeou de mãos dadas com Virgílio, Beatriz e São Bernardo, encantando-se com a criatividade do inferno, do paraíso e das esferas celestiais criados pela imaginação de Dante. Ouviu os cantos das sereias como se estivesse amarrado no mastro ao lado de Ulisses, e viu a marca na testa dos filhos da família Buendía, ao mesmo tempo em que Garcia Marques se tornou seu escritor preferido. Entendeu melhor o desejo e a fúria humana descritos em Madame Bovary, ouviu os sinos dobrarem pela humanidade na guerra civil espanhola lendo Heminghway, e se impressionou com o pessimismo de Orwell. Em Victor Hugo, teve pena de Jean Valjean "que a miséria pouco a pouco foi abraçando e apertando em seu círculo de ferro". Conheceu autores distantes do oriente e além mar. Leu sobre todos os deuses e todas as crenças divinas nos tantos livros sagrados que o pai de Beca guardava nas estantes apinhadas: Torá, Alcorão, Mahabharata, a Bíblia, Dhammapada e seus provérbios.
Toda noite lia um novo livro, e isto se tornou uma rotina que lhe enchia de prazer. De todas as descobertas do mundo humano, foram os livros a que mais o agradou. Suas incoerências, sua simplicidade na forma, a imaginação sem limites contrastando com o realismo absoluto. Os livros são um repositório da emoção e o conhecimento de toda a humanidade, são a própria humanidade materializada em papel e tinta. Por isso, sempre que precisava explicar algo para Beca ou convencê-la de alguma ideia, apelava para os livros.
– Na vida você só aprenderá interagindo com outras pessoas e lendo – ele dizia.
O pai de Beca começou a estranhar que alguns dias houvesse um ou outro livro fora do lugar nas prateleiras, sobre a mesinha ou caído pelo chão. O djinn ouviu esses comentários e passou a ter mais cuidado com os detalhes. Como ele havia lido em algum lugar, Deus mora nos detalhes.
Beca era acostumada com os livros e frequentava naturalmente a biblioteca desde bem pequena, mas até completar nove anos de idade, sua leitura se resumia a histórias infantis escolhidas pelo pai.
Na manhã em que Beca completou nove anos, o pai a tomou pela mão e a levou até a biblioteca.
– Escolha o que você quiser – ele disse.
A menina olhou para ele, confusa. Ele sempre apontava os livros que ela devia ler, e agora ela era loivre para fazer sua própria escolha. "Um livro pode ser mais importante do que qualquer outra coisa na vida, pode preparar uma pessoa para fazer as melhores escolhas ou ensinar a escapar das piores", seu Pai costumava dizer. E ali estava ela, pronta para fazer sua primeira escolha, frente a frente com a liberdade de pensamento que uma biblioteca representa.
Custava a acreditar! Ela sabia que, mais do que uma simples escolha, a atitude do pai era um sinal de que ela estava pronta, que ele confiava nela e que uma nova fase de sua vida podia estar começando. Beca rodou por alguns minutos tocando em alguns livros e observando as reações do pai, no fundo, ainda queria uma pista de sua aprovação. Ele só fazia pequenos trejeitos com o rosto, o que ela entendia como sugestões de ser melhor ou pior a escolha. A comunicação entre eles sempre fora assim, expressa por gestos, olhares e expressões faciais trocados em silêncio. Beca pegou nas mãos um livro amarelo de cor desbotada e percebeu o brilho nos olhos do pai.
– Este! – disse animada.
O pai sorriu satisfeito, achou uma boa escolha, o djinn também. O Jardim Secreto conta a história de uma menina comum e um menino muito doente, que juntos, descobrem e desvendam a beleza de um jardim secreto. Era um livro sobre valores, amizade, amor e o fim da inocência. Sobre viver e crescer, sobre sonhos despedaçados e esperança. Apesar de não ter interferido, o djinn achou aquela leitura adequada para o que vinha pela frente. Beca ainda não sabia, mas era urgente que ela encontrasse seu próprio jardim secreto, pois o mundo como ela conhecia e tanto apreciava não existiria para sempre.
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A menina e o djinn
General FictionEsta é a história de Beca, uma menina comum, mas que tem um Djinn todo seu, uma criatura mágica capaz de realizar qualquer desejo. A trama acompanha a vida de Beca mesmo antes de seu nascimento até a idade adulta. A menina recorre ao seu Djinn para...