ANIMAIS

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Após retornar da fazenda, Beca se sentia mais independente e mais tranquila na relação com os pais. O final de semana do acampamento havia sido inesquecível para ela, e um final de semana diferente para o djinn. Pela primeira vez, ele se encontrou cara a cara com a natureza que cerca a civilização em sua forma intocada. Viu muitos animais selvagens e irracionais.

Tudo que sabia sobre animais estava dentro dele desde o dia em que o Criador lhe soprou o conhecimento completo, nada mais. O djinn nunca abraçou um cachorro, nem sentiu nele o cheiro azedo dos ancestrais selvagens. Nunca se sentiu reconfortado com o calor ou o olhar hipnotizante de um cão. Nunca tentou segurar um gato arisco, nem viu as garras se abrindo ou ouviu o ronronar carregado de carinho. Não tocou as penas suaves de um pássaro ou acompanhou seus olhos inquietos e brilhantes. Não sentiu a fragilidade das patas de um pequeno roedor mexendo seu pequenino focinho constantemente. Ele sabia todas essas coisas, mas ele jamais conhecera tais coisas.

Durante os dias na fazenda, o djinn aproveitou alguns momentos em que estava sozinho e perambulou pelos campos e pela pequena mata nativa. A mata circundava um rio raso, cujo leito era formado por uma camada de areia pedregosa. Serpenteava entre colinas baixas e rochas, ziguezagueando pela terra em busca do mar e deixando florescer a vida ao seu redor.

Nessa mata ciliar, ele descobriu uma variedade de plantas de muitos tons de verde e folhas exóticas. Eram samambaias, café-do-mato, jequitibás, pitangueiras e gabirobas. Mas o djinn ficou mesmo encantado com os animais selvagens que proliferavam por ali, praticamente ignorados pelos humanos.

Havia pássaros, peixes, gatos selvagens de porte médio, macaquinhos ariscos, mamíferos roedores – pequenos e minúsculos. Também havia uma infinidade de minúsculos animais numa mistura de todas as cores possíveis, com muitas antenas ou nenhuma, com seis ou oito patas, que voavam, caminhavam, pulavam ou até rastejavam pelos troncos e folhas. A mata nativa ao redor do rio era um imenso depósito de vida em seu estado mais bruto. No dia a dia de caçar e ser caçado, comer e ser comido, as forças se equilibravam de um modo natural, do menor ao maior.

O djinn só pensou sistematicamente sobre isso na segunda-feira após a viagem. De uma maneira geral, se surpreendeu pelo fato do Criador ter se importado com coisas tão pequenas no processo da criação. Qual seria a contribuição dessas criaturas insignificantes na imensidão do planeta? Qual o papel que a multiplicidade de espécies desempenharia diante de um mundo tão dedicado à sua criação mais querida moldada de barro? Será que isso justificava o envolvimento do Criador pessoalmente na criação, ofertando a elas também um precioso sopro de vida? Eram respostas impossíveis ao djinn. O Criador devia ter seus motivos, e o simples equilíbrio entre as espécies não parecia ser argumento suficiente para descrever a beleza da pluralidade ou mesmo sua precisão.

Era como no mundo humano, pensava o djinn, havia milhões de homens e mulheres absolutamente iguais, mas totalmente diferentes. Emocionalmente incompletas, as criaturas humanas haviam rompido algumas barreiras que tinham sido impostas pelo Criador. Uma abstração levava à outra, e o djinn imaginava agora o que pensaria o Criador da rebeldia de seus filhos. Se fosse um pai zeloso, acharia interessante que eles e elas avançassem sobre suas capacidades natas. Ou seria o Criador uma autoridade perene, cuja benevolência somente se manifestaria se fossem mantidos os limites do corpo humano definidos por Ele durante a criação? Será que o Criador sofria ao ver sua humanidade riscando o céu entre nuvens, fugindo dos limites da Terra, controlando doenças, salvando vidas, criando diversão e distrações desnecessárias? Ou será que sofria mais em ver as armas feitas para matar, o preconceito nutrido pelo desconhecimento, as desigualdades sociais incentivadas pela valorização de coisas sem valor, a escassez proposital de oportunidades sustentada para manter as diferenças de direitos entre humanos nascidos do mesmo Criador? "Estou disposto a chorar os filhos dos ricos, se primeiro chorares comigo os filhos dos pobres, pois são eles que mais sofrem", lembrou-se.

O mundo humano era um mundo paralelo ao mundo divino e, certamente, paralelo ao mundo natural. Na natureza, um filhote doente é morto ao nascer, um animal velho abandonado para não atrasar o grupo, um macho não se detém em uma única fêmea e não tem nenhuma responsabilidade em sustentar sua prole até a idade adulta. O mundo dos humanos foi criado dentro de regras e normas não naturais, um mundo moldado muito mais por abstrações e conceitos do que pela realidade. O mundo dos homens é um mundo criado para conter as forças naturais.

Que criaturas arrogantes são os humanos! Mesmo sem a força do menor dos leões, conseguiram subjugar todas as espécies vivas sobre o planeta. Mesmo sem asas, conseguem voar mais distâncias do que qualquer dos falcões. Mergulham em águas profundas com a mesma desenvoltura que os próprios peixes e atravessam oceanos por prazer, sem nenhuma pressão ancestral ou biológica, como fazem as tartarugas gigantes ou os salmões do Alaska. Superam a velocidade do caçador mais veloz do reino animal. Criam máquinas inventivas para fazer coisas que não precisariam ser feitas, produzem mais comida do que necessitam e, mesmo assim, ainda permitem que uma parcela significativa de seus irmãos – da própria raça – morra de fome. A humanidade mata com mais naturalidade que o maior dos predadores do Criador e não se contenta em matar somente o necessário, muitas vezes o faz por diversão.

A ideia da morte, e a morte em si, eram compreensíveis para o djinn. Mas quando ele considerava todas as formulações possíveis sobre a morte, entender a ideia de matar sem nenhuma relação com uma necessidade suprema era a mais difícil das reflexões. O mais complexo desafio que a mente completa de um djinn se sentia incapaz de processar. A morte estava conectada ao universo desde a criação da vida, desde o primeiro sopro da criatura mais improvável. Ela relembrava a finitude da existência, descrevia a vida como fenômeno efêmero e se manifestava na permanente sensação de urgência humana. Com base na ideia da morte, o tempo se tornou o maior bem da humanidade, mesmo que ainda seja o mais mal-usado. "Afinal" – refletia o djinn –, "a vida é somente uma corrente". E como qualquer corrente, em algum momento terá um elo partido libertando seu desfecho final. Essa será somente a marca do fim, esse momento da descontinuidade daquilo que nasceu com o intuito de ser finito, comum a todas as criaturas da Terra. "A morte não tem magia", refletia o djinn, "é simplesmente o fim. Nada mais, nada menos".

A menina e o djinnOnde histórias criam vida. Descubra agora