A VILA

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À noite, Beca e seus pais foram passear na pequena vila turística que antes havia sido uma vila de pescadores. Viver do turismo era mais fácil e divertido do que arriscar-se na aventura do mar. Por isso, com o passar do tempo, as casinhas simples dos pescadores se transformaram em charmosas pousadas. Como a cidadezinha praiana ficava dentro de uma área de reserva natural, e o acesso era muito difícil, as ruas não tinham pavimento, eram ruas cobertas de areia. Era preciso atravessar um mar de dunas para chegar até ali, mas valia a pena.

Nessas ruas, algumas vezes largas, outras estreitas, havia um comércio variado e divertido, com dezenas de lojinhas que vendiam de tudo. Podia-se comprar pequenas conchas coletadas na beira-mar, até luxuosos vestidos com estampas que lembravam o verão e custavam uma fortuna. Havia também muitos restaurantes. Comida de quase todo lugar do mundo podia ser apreciada naquele pequeno vilarejo cercado de dunas e água salgada. Como era de se esperar, os pratos principais eram variedades de frutos do mar. Beca estranhou ver uma lagosta viva e minutos depois, vê-la servida no prato deitada sobre um leito de alfaces, pronta para ser comida. Não sem alguma argumentação por parte dos pais, Beca se animou a provar a lagosta, achou que o sabor era o mesmo de camarão, mas de um camarão gigante.

O djinn aproveitou o jantar da família para explorar sozinho o lugar. Vagando aleatoriamente pelas ruas, ele percebeu que havia uma calma incomum no ar. Aglomerados de humanos costumavam bombardear o djinn com o som de desejos de todos os tipos: medos, anseios, promessas. Mas aqui era diferente, pairava uma calmaria, e os humanos estavam tranquilos – em sua maioria – e tinham poucos desejos. Ele também notou que os pensamentos sobre a sensualidade estavam mais acentuados do que percebia no dia a dia na cidade. Havia um clima romântico pairando no ar. Talvez fosse a aparência descansada, expressa nos rostos bronzeados que passavam por ele, talvez fosse mesmo um efeito colateral da redução das toxinas do estresse cotidiano. Mas o fato era que humanos longe do seu cotidiano, longe de casa, vivendo sua pequena fantasia sem compromissos permanentes, tendiam a ficar mais felizes.

Quando o jantar terminou, a família de Beca saiu caminhando a esmo pelas ruelas apinhadas de turistas. Paravam aqui e ali, compraram sorvetes e sentaram na praça por um tempo. Decidiram ir até a beira-mar para Beca ver a imensidão do céu no breu da noite. Era uma perfeita noite sem lua. A menina ouvia o ruído do mar e sentia um cheiro gostoso que não sabia dizer do que era. Seu pai lhe explicou que era a maresia, o cheiro do mar, e Beca repetiu algumas vezes a palavra para não esquecer. Maresia, maresia, maresia. Era mesmo encantador. Lentamente, os olhos de Beca foram se acostumando com a escuridão quase total, até que ela começou a distinguir os pequenos pontos luminosos. Parecia que brotavam do céu milhares de estrelas que ela jamais conseguira ver na cidade. Era um grande pano negro com furinhos brilhantes de diferentes tamanhos. As estrelas piscavam para ela, e Beca sorria de volta para as estrelas.

O pai se agachou ao lado dela com o braço esticado e começou a apontar.

– Aquela é Sírius, a estrela mais brilhante do céu.

– E acima dela – ele moveu o braço na diagonal para cima – está Prócion, e depois Marte.

– Uau! – Beca adorou ver Marte. O planeta brilhava mais do que as outras luzes.

– E aquela é a Estrela do Sul – ele girou o corpo com o braço colado no rosto da menina, como se o seu braço fosse uma mira.

– Ela nunca se move – continuou –, e os navegadores podem usá-la como guia para não se perderem na escuridão.

Beca adorou a noite. Ficou boquiaberta com a quantidade de estrelas. O pai ainda apresentou para ela o Cruzeiro do Sul, a via Láctea – que era bastante visível na noite sem lua–, as Três Marias do cinturão de Órion. A mãe de Beca riu e alertou para que tomassem cuidado ou ficariam cheios de verrugas nos dedos. O pai explicou para a menina que apontando para uma estrela você ganhava uma verruga nos dedos, dizia uma antiga lenda. Beca imediatamente abaixou o braço escondendo-o atrás do corpo, e os três riram muito.

O djinn assistia satisfeito. Ele gostava desses momentos de integração da família, era sempre uma experiência reveladora. Ele ouvia os corações que só repercutiam coisas boas. O djinn também olhou as estrelas, mas subiu bem alto. De lá, pode ver todas as constelações no céu, a imensidão do escuro do mar, a grande faixa de areia que terminava nas dunas e o salpicar das luzes na terra. Era como um segundo céu criado pelo próprio homem.

Na volta para a pousada, havia um pequeno aglomerado de pessoas em frente a um restaurante. Eles foram se aproximando e ouviram música, eram dois músicos tocando na rua. Um deles tocava um violão plugado em uma pequena caixa de som. O jovem tinha o cabelo longo amarrado na nuca, vestia uma camisa surrada, bermudas e chinelos de dedo. Tocava com o olhar atento ao seu companheiro de dupla. Parecia sentir a música como se ela fosse algo físico, seus olhos deixavam transparecer a embriaguez pelas notas musicais. O parceiro era um sujeito magro, com uma barba desgrenhada, cabelos ralos e malcuidados. Trajava uma camiseta já desbotada, também uma bermuda e tênis que se confundiam com a cor da areia. O som que produzia o instrumento que ele manejava parecia tocar a alma dos turistas. O djinn se elevou por sobre a pequena multidão para observar melhor. Quando viu o instrumento teve dificuldade para compreender. Era um violino. Mas não um violino comum, ou melhor, um violino desses que se pode comprar em qualquer casa de artigos musicais. Aparentemente, era um violino feito pelo próprio homem. Um pedaço de pau, cortado de maneira tosca, em formato de violino, com cordas de violão improvisadas, que se prendiam a tarraxas também esculpidas grosseiramente. Ele tocava com o arco feito de madeira bruta, mais um galho de árvore do que um arco, cujas fibras eram feitas de fios de sisal, longe do arco de crinas dos violinos tradicionais. Um captador elétrico, preso com pregos na peça inusitada, captava o belíssimo som, transmitido aos turistas por uma minúscula caixa acústica. O djinn ficou encantado. A música realmente tocava a alma.

Como seria possível que a beleza da arte habitasse aquele pedaço de pau? De onde vinha a música encantadora e melodiosa que ele ouvia? Vinha do homem, ou do instrumento? O djinn compreendeu que podia haver arte em qualquer coisa que fosse tocada pelo homem. Ficou curioso e escutou a voz interior daquele músico, descobriu que ele se salvara através da música. A vida pode estar em qualquer objeto – pensou. A salvação pela arte. Algo tão simples como um pedaço de pau e tão complexo como um violino, a arte encontrada no inusitado. O djinn pensou na imaterialidade da beleza e quantas vezes viu alguém com poderes para mudar o mundo questionar o valor da arte. Era triste. Era triste saber que a arte era realmente capaz de feitos maravilhosos, mas que era encarada pelos poderosos como supérflua e descartável. Quantos ditadores ainda irão empreender sua caça às bruxas perseguindo os artistas, somente porque têm medo que sua arte mude o mundo? Aquele homem e seu pedaço de madeira eram a prova viva de que não há casa que seja indigna de ser habitada pela beleza, independente da aparência da forma.

Naquela noite, depois que a família dormiu, o djinn saiu para perambular pelas ruas quase vazias da pequena cidade praiana e só retornou muito mais tarde. Quando o músico que tocava o violino improvisado chegou a seu pequeno barraco de madeira coberto de palha – muito aquém do glamour das pousadas turísticas–, encontrou sobre a cama um violino e uma caixa acústica novinhos, da mesma marca de instrumentos Höfner imortalizada pelos Beatles. Confuso, não entendeu o que aquilo significava, mas havia um bilhete junto da caixa. Ele abriu o envelope escrito numa caligrafia rebuscada, feita com pena e tinta dourada. "Sua música encontrou minha alma nesta noite, por isso lhe entrego este presente. Amplifique a beleza do som que emana de seu coração. Com as saudações cordiais de um amigo". Depois que leu, o homem se abraçou ao instrumento e chorando agradeceu ao Criador.

A menina e o djinnOnde histórias criam vida. Descubra agora