Capítulo 16Jk

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O barulho dos meus passos ecoa abafado pelas meias brancas.
Desço a escadaria até chegar na cozinha ainda escura, procuro pelas chaves dos fundos, tateando a mobília mais alta e a encontrando no mesmo lugar de sempre, atrás do pote de biscoitos, com tamanha facilidade levo a mão direita até alcançá-la, sorrindo assim que consigo.

Dou a volta até a porta de madeira escura, escutando a mesma ranger baixo quando introduzo a chave na fechadura.
Meu coração está acelerado.
Calço um par de ténis brancos e corro até o carro de papai, ali está ele me esperando, me olhando com um sorriso bonito no rosto.
São exatamente cinco e trinta da manhã, sei que é imprudente nossa ideia estúpida, mas todas as quartas feiras de lua minguante, papai pega o carro e me leva para a praia para andarmos um pouco e vermos o começo do sol quente surgir sobre o céu.
Não me lembro quando foi que isso começou, mas sei que acabou se tornando nosso segredo, gosto dos momentos que temos juntos.
Meu pai é realmente adorável, mamãe costuma dizer que somos muito parecidos, não só na aparência física mais também nos pensamentos, e ouvir elogios assim me faz ficar feliz.

— Você me parece leve.

Ele comenta, bagunçando meus fios despenteados com uma das mãos.
Concordo com a cabeça, apoiando as costas no banco, e suspirando alto.

— Tae a-acabou me...deixando assim, não pensei que gostar de alguém f-f-fosse algo tão tran...traquilizador. 

Respondo no fio de voz. 
Quando o sinal fecha, meu pai me encara sorrindo.

— Taehyung te faz bem, e isso acaba me deixando feliz também. _Ele comenta deixando-me com as bochechas coradas. — Você sabe que qualquer situação complicada vou estar do seu lado não sabe? 

Concordo feliz, acho que comecei acreditando que não havia uma cura definitiva, que meu fim seria o mesmo do de vovô, e incrivelmente, pensar sobre tal coisa não me era tão ruim, afinal, quando alguém que já não tem mais esperanças parte, a família pode finalmente parar de sofrer também.
Depois da morte do vovô as coisas estenderam-se de forma difícil demais, privações de sair, cuidado redobrado com a saúde, horários e mais horários.
Minha disartria começou a atacar e juntamente a ela todas as outras doenças.
Nada foi confirmado ainda, mas viver sendo vítima de remédios e do "talvez funcione" faz-me sentir como se estivesse vivendo inutilmente.
As reuniões de trabalho já não mais participo, atividades diárias já não sei o'que são a tempos, e até mesmo a guitarra foi abandonada em um canto qualquer do escritório que me pertencia.
O centro de apoio não serviu-me para absolutamente nada, pelo menos não para os adultos.
Já quando novo, o centro de crianças foi sem sombra de dúvidas e ainda às vezes consegue ser o motivo das minhas crises explosivas e pesadelos.
Do meu medo de não ser bom o suficiente e de ficar sozinho.

Tenho um diário de capa de couro que ganhei de um amigo que se não me engano tinha distúrbios alimentares.
O caderno tornou-se meu aliado naquele inferno, e todos os meus sentimentos, pensamentos e dúvidas eram registrados ali.
Wendy e Yoongi são os únicos que têm conhecimento profundo sobre tudo que escrevi, e acho que é por isso que Wendy resolveu aumentar as minhas doses de remédios em níveis superiores a cada ano que se passa.

A primeira coisa que escrevi, foi uma divagação sobre vida e morte, lembro-me vagamente que isso aconteceu enquanto eu olhava distraidamente um pequeno filhote de passarinho que parecia ter caído do ninho já falecido enquanto sua mamãe piava com vigor a fim de fazer alguém notar e botar seu pequeno filho novamente no lugar de sempre.
Isso me entristeceu de uma forma devastadora, e foi de alguma forma a primeira morte que presenciei com meus próprios olhos.
Quando perguntei ao papai porque as coisas são assim, o mesmo abraçou-me e disse que tudo acontece para nos deixar mais fortes. Já mamãe respondeu-me que todos temos que morrer um dia, às vezes é melhor assim.

Talvez com esse tratamento, tudo dê certo e então poderei realmente continuar com essa história de amor.
Kim Taehyung, não pensar nele depois é quase impossível: lembro-me de seus olhos de mel brilhantes e suas mãos firmes porém de toque sutil.
Seus lábios perfeitamente colados aos meus quando nos beijam e sua respiração entrecortada.

— Chegamos! 

Papai anuncia.
Sei que não vamos ficar tanto tempo na praia, mas gosto da sensação do vento sobre meus cabelos enquanto caminhamos sobre a areia, gosto de vê-lo feliz à medida que segura meu ombro, analisando-me vez ou outra.

Eu gosto dessa parte de estar vivo, nessa pequena parte onde não há necessidade de preocupação, ou algo que me faça calcular a quantidade de remédios que tomo, se o tratamento que fiz terá ou não efeitos positivos a longo prazo, ou se o huntington não irá aparecer explodindo como uma bomba relógio me tirando as expectativas que só agora consegui criar.
Gosto de ser apenas eu mesmo aqui, enquanto deslizo meus dedos aos de papai e seguro o seu polegar como fazia quando bem pequeno.
A volta para casa também foi tranquila, conversamos e rimos enquanto Coldplay tocava no rádio, pela primeira vez em muito tempo realmente me senti leve, vivo e de algum modo satisfeito comigo mesmo. 

Ao chegar em casa, mamãe pediu ajuda para fazer biscoitos, e papai acabou resolvendo todos os afazeres do trabalho e passando para me visitar, ao que vez ou outra aparecia no quarto para me olhar.
Taehyung surgiu a noite, sendo responsável por ficar comigo, ele me ajudou com o banho e depois fez cafuné em meus cabelos até finalmente adormecermos juntos.
Sonhei com a felicidade, mesmo ela estando ao meu lado.

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