3. Ultimato ◇ Ela

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◇ CAPÍTULO TRÊS ◇

Ultimato — Ela

A NOITE LONDRINA ESTAVA FRIA, e essa mesma frieza resumia bem o meu estado naquele momento. Estava na cobertura do apartamento dos meus amigos, debruçada perigosamente no parapeito que me protegia de uma queda de uns dez metros. Também estava bebendo, como era de praxe, e mais cedo, havia sido expulsa do meu décimo emprego.

— Está tudo bem? — Alicia perguntou.

Não havia percebido ela ali, me virei, e sem responder nada, ela entendeu qual seria minha resposta. Nesta altura, já estava me sentindo um pouco tonta, e as luzes da cidade começavam a dançar num imenso balé de cores.

— Você tem que parar... você saiu de novo de outro emprego. Alana, você precisa...

— Eu não preciso de merda nenhuma — falei sem tirar os olhos das luzes dançantes. Podia perceber ela se aproximando de mim. Naquele momento um leve calor subiu pelo meu corpo eriçando todos os meus pelos.

— Alana... eu sou sua amiga. Eu só acho que... — ela começou a falar com a voz trêmula. Mas como a idiota que sempre fui, eu a interrompi.

— EU NÃO PRECISO DE AJUDA! DA SUA AJUDA! — gritei, como na maioria das vezes após tomar uns goles de vodca. Meu sangue começou a ferver, ela não tinha que me dizer o que fazer, foi o que achei. Ela não tinha o direito de me dizer o que fazer ou deixar de fazer, era isso. Ela não podia. Ela não sabia de nada.

— Alana... — ela falou calmamente. — Você só... é que já faz uns meses que você...

— EU O QUÊ? É POR CAUSA DA MERDA DO DINHEIRO? — gritei novamente. Senti a tensão no ar. Mesmo cambaleante, virei lentamente para ela e quase caí na tentativa humilhante de ficar em pé. Seus olhos estavam vermelhos, foi a primeira coisa que eu percebi e eu não entendia o porquê. Seu cabelo crespo estava amarrado em um coque pequeno no topo da cabeça, e sua camisa de mendigo, como assim ela falava, balançava com o vento que soprava lentamente. — VOCÊ NÃO SABE NADA SOBRE A MERDA DA MINHA VIDA! VOCÊ NÃO PODE FALAR NADA! VOCÊ É UMA GAROTA MIMADA QUE SEMPRE TEVE A MERDA DA VIDA FÁCIL! VOCÊ... VOCÊ...

— CALA A BOCA! — ela gritou, como eu nunca a vi gritar com ninguém.

Alicia estava chorando. Sim, ela estava chorando, mas não parava de olhar pra mim. Podia ver cada lágrima descer pelo seu rosto quase infantil. Então eu percebi que havia feito uma grande merda. Alicia era filha de empresários do ramo hoteleiro de uma cidade do interior da Escócia, a cidade era tão simpática quanto Coldwint. Ela sempre havia sido alguém muito visível, e toda essa visibilidade era constantemente alimentada pela extensa exposição de família perfeita e tradicional que seus pais sempre tentaram demonstrar... mas ela tinha um segredo, e quando Alicia resolveu ser ela mesma, mostrando que gostava de garotas tanto quanto o próprio pai, ele a expulsou de casa, obrigando-a a sair da cidade, e procurar um novo rumo. Londres havia sido o recomeço.

— Você não tinha o direito... — falou soluçando enquanto fechava os olhos.

Se me pedissem para detalhar exatamente o que aconteceu depois que eu desci para o apartamento, provavelmente eu iria falar que eles me expulsaram de lá, sem condições algumas de ficar na rua, pois isso seria conveniente para a minha narrativa de vítima. Mas é claro, mais do que isso, que essa não era exatamente a melhor versão, ou a verdadeira versão de tudo o que havia acontecido em minha última noite londrina.

Por exemplo, posso citar que eu não voltei para o apartamento, e que passei a noite fora carregando uma mala e umas caixas de livros para onde, exatamente, eu não sabia. Depois disso, tudo fica terrivelmente confuso. Mas alguns vislumbres aparecem do momento que eu desci da cobertura.

Lembro que gritei várias coisas — horríveis — das quais me arrependo profundamente.

Lembro que virei no chão vários objetos de vidro que não sabia exatamente o que eram, mas que sabia que poderia usar para meu espetáculo. No final, posso ouvir eles gritando para que eu saísse daquele lugar o quanto antes. Tenho vislumbres da palavra "imediatamente", nada que possa afirmar com certeza, afinal, estava tão fora de mim que acabei xingando as únicas pessoas que haviam estendido as mãos para mim naquela cidade.

Eles jamais me perdoariam.

Então depois de voltar a mim mesma no dia seguinte, percebi que tudo aquilo era Coldwint me chamando de volta. E eu como uma boa filha, atendia ao seu chamado.

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