◇ CAPÍTULO DEZESSEIS ◇
Persistência - Ela
O SILÊNCIO QUE VINHA com a noite era o pior.
A nova casa que a minha mãe havia conseguido era espaçosa, porém, um pouco menor que a nossa antiga. De qualquer forma, essa mudança havia sido necessária, pois, tendo em vista o que havia se sucedido dentro da outra residência, nem eu e nem ela iria ficar mais um dia sequer lá dentro. Havia sido, de certa forma, um consenso mútuo.
A nova vizinhança era individualista o suficiente para não prestar atenção a quem acabara de se mudar para lá; o que era bom, pois, qualquer maldito comentário que pudesse ser feito iria cessar (ou esperávamos).
- Está tudo bem? - minha mãe perguntou assim que pôs a cabeça para dentro do meu quarto. - Qualquer coisa, é só me chamar. Okay? - disse ela com ternura e normalidade, mas o tom melancólico de tudo apenas evidenciava o quão errada toda aquela situação estava.
Não respondi à minha mãe, e assim se seguiu nos primeiros dias naquela casa. Ela tentava, mesmo que pouquíssimas vezes, o contato entre nós duas e então eu simplesmente a ignorava.
A incidente com meu pai e a culpa da minha mãe ainda reverberavam em minha mente. Cada detalhe; tudo o que havia acontecido. O inferno que havia se instalado desde que o meu pai caiu com um baque surdo no carpete empoeirado daquela sala. Os trovões daquela noite se confundiam com os meus próprios trovões, em minha própria tempestade.
Um mês que pareceu anos se passou. E quando a confirmação de sua morte veio, eu já estava preparada para ela, mas, não pude evitar a destruição que ela causou. Foi numa tarde de outubro, a chuva caía sem cessar no gramado do pequeno cemitério da cidade onde ele havia nascido.
Eu segurava um guarda-chuva transparente, mas às vezes deixava-o cair para o lado, e sentia os pingos da água gelada me molhando, enquanto observava o caixão pouco adornado com apenas algumas flores azuis e que mais pareciam estarem murchas.
Estava vestida com um sobretudo vermelho que cobria um vestido preto que a minha mãe havia pedido para que eu vestisse. Ela não estava lá, apenas eu, com pouco mais de uma década de idade, suportando todas as lágrimas do céu, que saudavam e se perdiam com as minhas. Um amigo de infância do meu pai se fazia presente, seu nome eu nunca soube ao certo, mas ele estava vestido de forma diferente dos demais, aliás, poucas pessoas estavam presentes na cerimônia.
Uma assistente social, um padre e os coveiros. Apenas.
Algumas pessoas dentro do cemitério observavam a pequena aglomeração de detrás de alguns túmulos, mas aparentemente ninguém notava elas. Eu também não me importava muito.
A tempestade, que aos poucos tomava mais força, se assemelhava com tudo o que eu sentia. Estava cinza e estava triste; da mesma forma que o céu estava naquela tarde. Aos poucos, percebia que enquanto o caixão descia para a terra, e a chuva até meu rosto, aquela água gelada era o evento que inaugurava a pior e mais duradoura fase da minha vida. Fase a qual eu nunca saí.
Meu pai não havia sido o melhor pai, e por muitas vezes, esteve no extremo oposto do que era considerado "melhor pai". Ele não havia sido um bom marido, o álcool não havia permitido que esse título fosse estampado em seu peito. Tampouco, ele seria a melhor pessoa, brigas e mais brigas, isso era o que ele colecionava além das inimizades ao longo do tempo.
Mas ele, ele, ele era o meu pai.
E o meu pai não estava mais aqui.
Nem naquele caixão.
Poucos dias depois, as meninas na escola haviam se afastado de mim sem decidir um motivo exato para isso acontecer (mesmo que ouvisse cochichos como "a mãe dela matou o pai dela"). Tudo só piorava, e ver a minha mãe não ajudou nem um pouco.
Ela havia tentado o auxílio do governo até conseguir um emprego, mas até então, estava tudo difícil pois ninguém considerava dar uma chance a ela.
Entrei na sala, limpado os sapatos de lama. Havia acabado de chagar da escola.
- Que bom que chegou... quer fazer o jantar comigo? - Era a primeira vez em meses que ela me chamava para a atividade que sempre fazíamos antes do incidente com meu pai.
Eu não respondi de imediato. Apenas neguei com a cabeça e disse que estava cansada; segui para o meu quarto onde me afundei dentro dos lençóis. Naquela noite, eu sonhei com ele. Meu pai estava sentado num banco de praça e chorava com o rosto enterrado entre as mãos. Mas não era um choro igual àqueles quando se está bêbado, ele estava desesperado.
- P... pai... - gaguejei, e ele olhou para mim.
Seu choro era como o de uma criança, contínuo e arrebatador.
- Des... des... culpa. - Foi o que ele falou, entre soluços.
- Não... você...
Mas então ele começou a gritar e gritar. E eu me assustei com aquilo, tentava me afastar dele, mas acabava caindo. Caía três ou quatro vezes até conseguir ficar de pé. Então eu corria, mas o grito dele ecoava no meu ouvido me deixando quase sem orientação, até que eu mesma parava em algum lugar e gritava também. O meu grito se fundindo ao dele, até que a minha mãe aparecia e eu percebia que na verdade estava dentro do meu quarto.
Ela enxugava o meu suor, que estava ensopando a cama e me abraçava na tentativa de me acalmar. Era esse o seu objetivo, mas ela não obtinha muito êxito. No fim de tudo, apenas uma coisa fazia sentido, a minha mãe era a culpada por tudo o que acontecia. Tudo aquilo. Ela era a culpada.
Apenas uma vez eu consegui falar isso pra ela, e eu me arrependi profundamente, mesmo que não deixasse claro isso. Ela estava deitada comigo e acariciava meus cabelos, pela primeira vez ela conseguira me acalmar de verdade, e sem pensar muito agradeci pelo que ela havia feito dizendo "A culpa é toda sua!". Senti sua respiração mudar, e percebi que ela chorava também quando minha nuca foi molhada pelas suas lágrimas.
- Eu sinto muito, Alana. - Sua voz embargada sussurrava. - Eu sinto muito. Por tudo.
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O que acharam?
GUS SILVER
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O Apagar das Luzes [DISPONÍVEL NA AMAZON]
RomansaAlana é uma garota que enfrenta problemas com álcool e com o passado que a persegue. Desde nova, deixou que sua vida se tornasse cinza e sem perspectiva alguma. Residindo em Londres, ela consegue ser demitida do seu décimo emprego, e se vê "obrigada...