Abstinência

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Contra sua vontade, agora Clara encontra-se trancada no escritório de seu pai, na companhia de um desconhecido que somente a analisa e escreve em um bloquinho.

– Quer falar sobre o que te trouxe até aqui?

Clara ri sarcasticamente e responde:

– Como se o senhor não soubesse o que está havendo aqui!... Assim como o senhor, eu sou só mais uma peça em um jogo de xadrez, movida por alguém que tenta controlar todo o jogo… A minha dúvida é, quanto o senhor deve estar recebendo por isso?!

– Mas o que está tentando insinuar, minha jovem? – o Dr. questiona ainda escrevendo no bloquinho.

– Que meu pai costuma recompensar bem quem faz suas vontades!

– Não admito que me ofenda!... – Ele aumenta o tom de voz, mas logo volta a falar em uma tranquilidade irritante – Eu sei o que está tentando fazer, é essa a sua forma de defesa?!... É muito difícil para as pessoas encararem seus problemas, a agressividade é uma forma de impedir que as pessoas se aproximem…

– Eu não tenho problemas!... Vocês é quem são os problemas! – Ela já grita completamente irritada.

– Controle-se, minha jovem!... Eu já tenho o suficiente por hoje… Passarei alguns comprimidos para controlar essa sua agitação… – Ele arranca uma folha e fecha o bloquinho.

– Eu não vou tomar nada!... Vocês não vão me dopar!

– Esse comportamento é perigoso para você – Ele levanta serenamente e sai do escritório, enquanto Clara ainda espuma de raiva com a situação em que seu pai a colocou.

Chegando na sala o Dr. entrega um papel para Charlie.

– Já concluí minhas avaliações por hoje, preciso que administrem esses comprimidos a ela. Isso ajudará a controlar sua agressividade.

– Ok, Dr. Agradecemos por ter aceitado vir nos atender… Eu só te peço que mantenha o sigilo sobre o caso – ele pega o papel e comprimenta-o.

– Manterei senhor, é o meu trabalho. Não falo lá fora sobre meus pacientes.

– Eu posso cuidar dos comprimidos – Olga se intromete na conversa se prontificando para o trabalho.
Era uma senhora já com uma certa idade, parecia ter uns 60 anos. Era alta e forte, como uma sargenta durona.

– Sim, faça isso! – ele afirma, enquanto acompanha o Dr até a porta.

Clara assiste toda a cena, em seguida vai até seu pai.

– O que está fazendo?... Ficou louco?... É essa a sua forma de me punir?

– Estou fazendo o que é melhor para nossa família! – ele fala caminhando tentando se desvencilhar de seus questionamentos, mas Clara segue firme, parando em sua frente encarando-o.

– Chama isso de melhor? – ela abre os braços em deboche – Quer me enlouquecer de verdade, isso sim!

– Eu não admito que use esse tom para se dirigir a mim! – ele responde encarando-a sério.

– E a senhora mãe?... Vai compactuar com essa loucura? – Clara agora dirigir-se para sua mãe.

– Eu… Estamos tentando te proteger de você mesma, minha filha – Marta responde com lágrimas nos olhos, enquanto Clara os encara, como se não acreditasse que estavam mesmo fazendo isso.

– E quanto aos Simmons?... O que vão pensar disso tudo? Ainda vão querer que seu filho tão majestoso se case com uma louca?... Já parou para pensar nisso pai? – Clara usa toda a sua ironia, tentando fazê-lo desistir.

– Acredito que você não deve estar mesmo preocupada com isso. Deixe que com os Simmons eu me entendo. Não se trata de loucura, é apenas um estresse devido a toda pressão com o trabalho. Tenho certeza que logo logo estará com sua cabeça no lugar!... Agora vá com a senhora Olga e me deixe em paz!

– Vamos senhorita! – Aquela mulher grotesca pega em seu braço, e a arrasta para o quarto.

Agora Clara se mantém prisioneira em sua própria casa. A cada canto da casa que fosse, aquele armário em forma de mulher a perseguia. Estava sempre à espreita, era esperta, não tinha quem conseguisse passa-lá para trás. Aquela senhora passou a vida inteira educando jovens delinquentes. Ela os treinava para comportar-se em sociedade, de maneira que já poderia prever todos os seus truques.  

Mas tinha algo ainda pior, aqueles comprimidos!... Ela os trazia para Clara tomar, mas Clara ainda os escondia debaixo da língua, em seguida os cuspia em um canto escondido debaixo de sua cama.

As horas passavam e Clara permanecia murcha a beira da janela, enquanto Olga lia um livro a seu lado. Uma verdadeira tortura! No entanto, Clara não ouvia uma só palavra, tudo que pensava era em como conseguiria retornar à gruta e como explicaria tudo isso a Thomas. Será que ele a entenderia? Como será que ele está agora? A noite passada não saia de sua mente, estar com ele foi incrível, mas agora sentia que talvez nunca mais voltaria a vê-lo. Ela abraça o colar com as mãos enquanto encara o vazio.

Thomas retorna a gruta, cumprindo o combinado de encontrá-la todos os dias para os treinos. Mas Clara não está lá. Ele espera e espera, e só o silêncio o faz companhia. Clara não apareceu, e agora as dúvidas começam a rondar a sua mente. Será que aconteceu alguma coisa com ela? Ou será que apenas perdeu o interesse? Eles não conversaram depois do que aconteceu. Ele retorna para casa tentando se convencer que ela apenas teve um imprevisto, e que provavelmente no dia seguinte ela estaria lá.

Os dias vão passando e passando, mas Clara não consegue se desvencilhar daquela mulher, e ainda tem as consultas com o Dr. Bernard. Ela já sentia falta de tudo. Da sua liberdade, de poder mergulhar, da gruta e de Thomas. Sentia saudade até do seu jeito sério e sua forma irritante de reclamar.

Em um ato desesperado, ela vai até seu pai a suplicar:

– Não acha que já fui punida o suficiente? Por favor eu te imploro, me deixar sair…

– Porque quer tanto sair? O que quer fazer Clara? Acha que engoli aquele seu sumiço? Eu tenho medo só de pensar o que pode ter feito!

Ela gela com os questionamentos do pai.

– Eu não sei ficar presa, o senhor me conhece…

Ela sai rapidamente dali, sabendo que precisa fugir dessa conversa. Então retorna chorando para seu quarto.

Olga estava a rabiscar algumas anotações no livro, quando para azar de Clara, a sua caneta rola para debaixo da cama. Agora o estoque de comprimidos de Clara é descoberto.

Aquela senhora só olha furiosa e pensa. "Já tratei de garotos muito piores, não vai ser ela quem vai me enganar."

Ela pega um comprimido como antes e vai até Clara.

– Percebo que só lhe entregar o comprimido não está sendo o suficiente. Agora me certificarei de que vai engolir! – Ela segura a mandíbula de Clara, abri sua boca e enfia o comprimido até a sua garganta. Em seguida despeja água de maneira que Clara chega a engasgar.

– Boa menina! Agora pode descansar.

Os comprimidos a deixava ainda mais sem ação, sentia tanto sono que mal conseguia ficar de pé.

Longe dali, Thomas precisa se concentrar e preparar a sua apresentação para o conselho, já havia encaminhado seu trabalho para eles, mas ainda seria julgado. Era muito importante estar preparado para isso, porém sua mente não deixava de questionar o porquê do sumiço de Clara. Por três semanas ele continuava indo todos os dias para aquela gruta, mas Clara não aparecia. Aos poucos ele começava a acreditar que ela não retornaria. Mas porque sumir sem dar explicação? Não é possível que após aquela noite ela simplesmente desapareça! Ao menos ela o diria alguma coisa. Isso não parecia ser ela, mas ao mesmo tempo era tão misteriosa que nem ao menos ele sabia o que poderia pensar. Então encara a água todos os dias, na esperança de vê-la surgir dela. Aquilo o deixava completamente perturbado.

Quando terra e água se encontram Onde histórias criam vida. Descubra agora