O meu batom bordeaux ficou esborratado assim que os meus lábios encontraram-se com os do Harry. Eu iria ter Literatura e ele Ciências. O que apenas me deixa emocionalmente triste era o facto de eu não ver o rapaz pálido durante dois tempos. A seguir era Filosofia, a única aula que tínhamos juntos, com aquele professor psicótico. O professor que fez o Harry chorar.
[...]
Já na sala onde iria ocorrer a aula de Filosofia, continuávamos nos mesmos lugares: eu na carteira à frente da do Harry. Atirei a minha cabeça para trás e visualizava a cara do rapaz de cabelo encaracolado a brincar com o meu cabelo enquanto esperávamos pacientemente pelo professor.
Ele entrou e pousou a pasta em cima da secretária. Retirou o estojo e abriu o mesmo.
Virou-se de costas para nós e começou a escrever no quadro.
"A aula de hoje será sobre a..." As sílabas que ele escrevia acompanhavam a sua oralidade "Vida." E rodeou a mesma palavra.
"O assunto da morte foi a aula já há semanas, ou até mesmo meses." Comecei a pensar. "Esse assunto fez com que o Harry chorasse, se isso voltar a acontecer..."
"O que é que farias, Erica?" Perguntava-me agora a minha própria consciência.
"Gritava e batia no professor."
"Na tua imaginação."
"Exatamente."
Quando o Harry não se encontra a meu redor - quando não se situa no outro lado da linha telefónica ou quando não tem a possibilidade de responder - um diálogo entre mim e a minha consciência é criada nos meus pensamentos. Isto decidiu começar a acontecer desde o dia da morte do pai. Não é que ele tenha alterado completamente a minha comunicação com as pessoas ou algo do tipo desde que ele decidiu partir, mas esse mesmo acontecimento fez-me refletir em vários pontos e perspetivas que tenho dificuldade em partilhar com o Harry.
Ainda por cima que, após este tempo que o conheço, sei a sensibilidade dele quando se toca neste tipo de assunto - morte.
"Digam-me palavras que vos lembre da palavra e do significado de vida." Pediu o homem.
"Liberdade." Uma aluna ruiva do canto da sala falou.
"Existência." Um aluno que não me foi captado igualmente proferiu.
O professor ia escrevendo as palavras quando iam sendo pronunciadas.
"Amor." O Harry afirmou.
Nove palavras já haviam sido ditas, mas o professor não se encontrava satisfeito. Não a meu ver.
"Mais uma, por favor."
Ninguém se voluntariava. A turma não era grande o suficiente para haver vários exemplos, nesta divisão não era possível sequer encontrar cabeças a funcionar pelo cansaço imenso do que havia sido percorrido.
"Tu." Apontou-me o velho.
Fiquei calada durante um curto período de tempo quando a mesma pessoa começou a olhar para mim.
"Não sei."
"Qualquer coisa."
"Desculpe." Baixei a cabeça, sem acrescentar mais e nada menos que um suspiro seco.
O professor caminhou na direção do quadro. Abri o meu caderno na última página que estava completamente vazia. Comecei a desenhar do que me conseguia lembrar do dia em que houve a primeira feira.
"Não sairemos daqui sem uma resposta, menina."
Pousei o lápis na mesa.
"Tem mesmo de ser, professor?"