Largava o atacador meio apertado para retirar as ramelas incómodas dos meus olhos. Caminhei lentamente até à casa de banho fazendo a minha higiene diária. Fui até à sala à procura do Harry para tomar o pequeno-almoço. Acabada de descer as escadas encontro uma cabeça com cabelos castanhos atados a destacar-se do sofá. Era a Srª. Flintson. Aproximei-me dela para a saudar, quando o seu olhar encontra-se com o meu ela situa o indicador nos lábios pedindo-me para não fazer muito barulho. O Harry havia adormecido no sofá com a cabeça em cima das pernas da mãe.
“Ele acordou cedo.” sussurrou a senhora, acariciando os seus caracóis “Pelos vistos não conseguiu adormecer.”
Sorri, sentando-me de seguida no chão observando aquele momento entre mãe e filho. Sentia-me como fizesse parte dele, pelo facto de não ter mãe. Sentia pura saudade dos momentos que tinha com ela. Lembro-me como ela me colocava as madeixas de cabelo atrás da orelha sempre que eu chorava. Lembro-me de como ela assoprava na minha barriga provocando-me um ataque de cócegas sempre que eu a ia acordar. Lembro-me das músicas de embalar que ela cantava, especialmente aquelas que não tinham letra. Eu lembro-me dela, tanto fisicamente como psicologicamente. Lembro-me especialmente da textura do seu cabelo longo com que eu tanto amava brincar.
“Vou preparar-vos o pequeno-almoço.” afirmou a Srª. Flintson enquanto pousava lentamente a cabeça do Harry no sofá, deixando-o exatamente na mesma posição.
Tentei permanecer o mais perto possível da face do rapaz que se situava à minha frente, onde tinha como objeto senti-lo respirar. A minha bochecha estava contra o assento do sofá e o meu peito apoiado à beira do mesmo, já a minha havia-se colocado por detrás da cabeça do mesmo, onde eu acariciava e brincava com os seus caracóis.
Retirei-me lentamente da minha posição, evitando acordar o rapaz pálido que se encontrava num mundo feliz. Onde não havia estado doente, onde a sua família era a biológica, onde tudo era perfeito.
Observava a grande casa da família enquanto caminhava até à cozinha. Assim que cheguei à entrada de um curto corredor que dividia a cozinha da sala, observava a pequena moldura pendurada na parede, era uma foto do Harry com menos anos que o atual. Um sorriso branco, mas falso, era visualizado na mesma fotografia. A mesma fez com que a minha cabeça caísse ligeiramente para o lado esquerdo, a minha cara demonstrava um ar confuso, perguntando-me o porquê de pendurarem uma fotografia do Harry que, para além de ele estar a sorrir, era triste.
Abri a porta da cozinha o mais silenciosamente possível.
“Srª Flintson –“ havia sido interrompida, como já era um acontecimento tão usual decidi ignorar, como quase sempre.
“Chama-me Becca, querida.” um sorriso havia transparecido na sua bela face juntamente com as suas palavras cuidadas, mas o seu pedido iria ser ignorado pelo facto de eu pensar que seria uma falta de educação vindo da minha parte, contudo, afirmei com a cabeça.
“Posso perguntar-lhe algo sobre a fotografia do Harry neste pequeno corredor?”
“Claro.” ela pegava na pequena tigela de plástico onde continha uma pasta e despejando-a para a frigideira que se encontrava ao lume.
“Porque é que o Harry parece triste na fotografia?” hesitei em perguntar mas eu, por mais educada e pouco coscuvilheira que eu quisesse ser, não podia voltar a trás, para além disso eu estava extremamente curiosa.
“É assim tão óbvio?” o olhar da mulher com o avental vestido era agora sério, enquanto ela agarrava na pega da frigideira firmemente, murmurei um sim como resposta, deixando-a continuar “Apenas quisemos pendurar essa fotografia porque foi na altura em que o Harry tinha sido parado de ser diagnosticado com cancro. Queríamos apenas uma foto para celebrar, mas ele nunca havia ficado feliz com isso. Ele tinha medo que ficasse doente mais uma vez, ele estava traumatizado, e ainda está.” foi visualizado a panqueca a sair do pequeno objeto, dando uma volta em pleno ar e aterrar ao contrário no mesmo, sendo essa parte agora cozinhada.
“Porque não a tiram?” apoiei as costas à bancada “Não quero ser rude, mas se ele está triste, não há nenhum tipo de objetivo em continuar com uma moldura assim pregada à parede. Aquela fotografia relembra a luta de Harry contra si mesmo, e com as fobias que ele tem, normal que ele –“ perguntava-me se o facto de estar a ser interrompida na maior parte das vezes iria terminar, mas eu duvidava. Duvidava plenamente que um dia acabasse.
“Tens razão, Erica.” ela agora colocava o pequeno-almoço num prato, sobrepondo as panquecas umas nas outras “Mas agora não consigo. Nem eu, nem o meu marido.”
“Entendo.” coloquei-me atrás da Becca, que seria apenas um ou dois centímetros mais baixa que eu. “Peço desculpa.”
“Não tens nada que desculpar.” a sua mão encontrou-se com a minha, onde se aliviou, mimando-a “Acorda o Harry, o pequeno-almoço está quase pronto.”
Ele ainda tinha o pijama vestido, o padrão do mesmo eram linhas perpendiculares e paralelas vermelhas e amarelas e o fundo do mesmo era castanho, da mesma cor que o seu cabelo.
Decidi sentar-me novamente no chão da larga sala, apoiar-me no móvel com uma textura macia e começar a tocar na bochecha do Harry vezes consecutivas – a cutucar.
“Podes parar?” ele protestava sonolento, grunhindo e virando-se de costas para mim.
“É para acordar, Harry.” tentava conter um riso, focando-me no facto que o tinha de acordar.
Coloquei cada perna minha ao lado das suas e pousei lentamente o meu corpo sobre o seu, começando a deixar cair mais peso em cima do corpo mole que estava por debaixo do meu.
“Harry, acorda!” exclamei, apoiando o meu queixo na cabeça do rapaz “Levanta-te!”
“Eu levantava-me se saísses de cima de mim.” ele afirmou, começando a utilizar as mãos para lhe ajudar a retirar o meu peso total de cima dele.
“Bom dia.” estava agora sentada no pequeno móvel verde, com bonitas cornucópias castanhas.
“Boas.” o Harry agachou-se, e os seus lábios foram na direção da minha bochecha onde ele depositou um beijo no mesmo. Dois pares de segundos mais tarde o polegar dele foi ao mesmo sítio, limpando o local do meu corpo invadido pela sua carícia.
“A tua mãe disse para irmos tomar o pequeno-almoço.”
“Não tenho muita fome.”
“Mas tens de comer.”
“E se eu não quiser?”
“Enfio-te as panquecas pela goela abaixo.”
“Não sejas ridícula.”
“Pelos vistos ainda não me conheces suficientemente bem.”
“Por mais que não queira, é melhor comer. Até tenho medo que me mates enquanto me enfias o prato na boca.”
“Agora tu é que estás a ser ridículo.”
“Vamos ser ridículos juntos.”
“Está bem, Harry, chega. Vai lavar a cara e vai para a cozinha.” fingi estar aborrecida com a lamechice dele, por mais que o que ele dizia era metade verdade, tanto como mentira.
“Estava a brincar, Erica.” ele abriu os olhos, surpreendido por alguma razão aparente “Não te atrevas a comer sem mim.”
“Mas se tu mal vais comer.”
“Eu como por ti.”
“A frase soou muito mal.” pensei.
O Harry parou a meio do caminho, dando-me atenção mais uma vez.
“Eu sei que soou mal, mas tu percebeste o que quis dizer.” comentou.
“Despacha-te.” ordenei.
“Estamos sem comer à provavelmente mais de oito horas, como é que ele não tem fome?” perguntas vaguearam nos meus pensamentos, confusa “Eu que mal como, estou esfomeada.”
“Vamos?” questionou-me o Harry apoiando-se na cabeça do sofá.
“Claro.”