A CIRANDA DOS DOIS
Ciclo comentado de poesias, editado por Selenia Veralux, clériga cientista de Tanah-toh.
PARTE 1 – AS CANTIGAS DE ESCÁRNIO
Velasseyon I
Lá na terra donde dança
A lira forte, a brisa mansa
Vi e ouvi de algum amigo
Um nome estranho feito umbigo
É o nome dado a alguma fera?
Não é monstro, nem quimera
Pois então é de comer?
Só se for só pra você!
Então me diga, diga agora!
Desse nome de enxerido
Que te lembra de um umbigo
Que não dá nem pra comer
Mas talvez dê prum mexido
De canela, que eu te digo
Bem bonito de se ver
Lá caído rua afora!
Pois não vou, não vou dizer!
Que ela chama Teianê!
Tetsilhianê I
Ouço coisas, ouço vento
Bocas curtas ao relento
Vão dizendo só bobagem
De criança sem linguagem
Pois menino, venha cá
Venha aqui pra me falar
Tem coragem nesse peito
Ou é tudo falso efeito?
Venha aqui e sem demora
Me mostrar qual é que é
Dessa tua malucagem
De se achar ser um alguém
Só porque faz galhardagem
Grita e berra qual neném
Lá em Lenórienn, pois é
Mas aqui não vai ter hora
Pois um nome de bombom
Não dá graça a Val-yon-yon!
><><
Notas Editoriais (Selenia Veralux):
Esses dois breves poemas apresentam um universo um tanto desconhecido da escolástica formal no que diz respeito aos estudos da poesia élfica. Quando se é levantado o assunto, pesquisadores primeiro pensam na poesia clássica palaciana de Lenórienn, ou das poesias sacerdotais dos templos de Glórienn. Contudo, é sempre importante lembrar que Lenórienn, apesar de ter sido capital e coração da nação élfica, não foi a única região por eles habitada. Ainda hoje faltam estudos sobre os chamados Elfos do Mundo – a parcela élfica que não viveu em Lenórienn, descendentes dos elfos exilados ou daqueles que não quiseram dobrar os joelhos diante da Monarquia Gloriosa.
Com isso em mente, a poesia extremamente formal que imaginamos sobre os elfos representa apenas uma parcela pequena da produção cultural deste povo. As duas amostras acima entram nas conhecidas Cantigas de Escárnio, uma prática bastante adorada entre os Elfos do Mundo. Eram formas líricas para se acompanhar com a cítara ou a viola élfica – instrumentos típicos dos chamados camponeses, longe do sangue antigo de Lenórienn, em contraposição com os violinos da aristocracia. Sua métrica era relativamente fluida, mas consistiam de dois quartetos de abertura, com rimas seguidas alternadas em duplas, seguidos de um octeto com rimas entrecortadas e terminando num dueto de fechamento.
Ainda hoje as Cantigas de Escárnio são amplamente praticadas, e não é incomum disputas entre elfos e humanos. O importante a perceber é que essas cantigas eram tomadas mais como uma brincadeira e convite festivo do que algo necessariamente indecoroso ou aflitivo. Repare que a prática, quando abraçada pelos bardos humanos, se tornou muito mais agressiva e com resquícios de crueldade. Por isso é comum ver os bardos elfos delicadamente recusarem responder cantigas humanas – o que, muitas vezes, acaba enfurecendo o humano, gerando mais e mais cantigas vingativas.
Sobre essas duas cantigas específicas, elas são muito importantes. Primeiro, porque foram as primeiras do ciclo poético "A Ciranda dos Dois", que representa o encontro poético entre Velasseyon e Tetsilhianê. Segundo, devido a enorme disparidade entre esses dois indivíduos, sendo por si só um marco importante na sociedade élfica.
Como dito no próprio texto, Velasseyon vinha de Lenórienn. Era um Elfo Gracioso (ou Alto Elfo, ou Elfo do Centro, ou Elfo da Luz, ou Elfo do Sul), isto é, um elfo que nasceu e cresceu dentro do esplendor da capital. Mais ainda, ele tinha sangue antigo – o que significa que pertencia à aristocracia. E, para terminar, havia terminado os desafios no colégio bárdico e se tornara um Enn-len, um dos bardos sagrados da cidade e respondendo ao próprio Enn, título popularmente chamado de 'rei bardo'. Velasseyon foi um dos primeiros – talvez o primeiro, mas me faltam dados para concluir isso – dos enn-len a produzir arte considerada 'inferior'. No caso, uma Cantiga de Escárnio. Pior ainda, essa cantiga foi direcionada a Tetsilhianê, uma elfa do mundo (ou Baixo Elfo, Elfo do Norte, Elfo da Terra, Elfo Menor, Elfo Comum) que convivia com humanos na 'primitiva cidade' de Valkaria.
Em minhas pesquisas, tive a boa ventura de encontrar a barda e deixarei que seus comentários elucidem a situação. Como dita o protocolo metodológico do templo científico de Tanah-toh, transcreverei as palavras na modalidade entrevista conforme a pessoa em questão for dizendo. Portanto, por favor, peço comente sobre esses primeiros poemas, barda Tetsilhianê.
Entrevista (Tetsilhianê):
Lembro-me bem quando ouvi essa cantiga pela primeira vez. Ela havia chegado durante uma das caravanas mercantes de Lenórienn – naquela época o tratado de Lamnor já estava em vigência há alguns séculos, proibindo a entrada de outras raças nas terras élficas, o que não impedia que os elfos mercantes de Lenórienn 'espalhassem a glória pelas raças inferiores' de Arton. Bando de interesseiros.
De qualquer forma, as caravanas faziam rotas de comércio, e essa trouxe a cantiga. Veio com um bardo em treinamento, aspirante a enn-len – um jovem verde como broto de primavera, quase chegando em seus primeiros 50 anos. Ele estava nervoso quando me cantou a canção, numa taverna cheia, diante dos olhos de elfos, meio-elfos e humanos. Eu não podia acreditar no que ouvia: a canção era de um tal de Velasseyon, um enn-lenn, e ele estava me chamando para um duelo de escárnio? Se não fosse o lacre imperial e a tinta mágica permanente que era trazida na carta, escrita com uma caligrafia impecável, eu teria duvidado de sua autoria.
Como manda o costume, esperei uma noite para revidar a canção: e acredite, não me segurei nas palavras! Só porque era um elfo gracinha de Lenórienn não quer dizer que eu ia poupar desaforo. Foi uma noite bonita na taverna, o rapaz teve que ouvir as palavras e as escrever. Uma tarefa um pouco difícil em meio à gritaria alucinada do bar; devo dizer que os elfos do mundo não perdem a chance de zoar um pouco com os gracinhas da cidade – bom, isso antes da tragédia e da Aliança goblinóide...mas enfim, não vamos pensar em tragédia. O ponto é que fiz minha canção de resposta, a taverna explodiu de euforia, e o garoto ficou muito envergonhado. Era um bom garoto, mais tarde naquela noite tivemos momentos de alegria; pude confortá-lo, ensiná-lo sobre o terceiro amor de Glórienn, e também algumas das formas de poesia de fora da capital. Daí, ele retornou com a minha canção resposta para Lenórienn. Achei que isso seria tudo, mas o tal do Velasseyon continuou a mandar canções, e as coisas começaram a ficar muito interessantes. Foi nesse momento que começamos a trocar canções de esmero e...o quê? Você ainda vai falar disso? Tudo bem, tudo bem, eu espero você comentar.
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Universo Tormenta
FantasyColetânea sempre crescente de contos, artigos e guias meus sobre o universo de Tormenta - maior cenário de fantasia medieval brasileiro.