O dever dos fortes

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A minúscula flor crescia agarrada ao chão. Era a única que tentara crescer naquela faixa de terra, em meio aos arbustos espessos que se erguiam alto e ardilosos. Não se podia imaginar como ou quando sua semente havia caído ali, tão longe de suas iguais que viviam do outro lado do campo. Mesmo assim, sozinha, perdida, ela acabou por lá ficar, e por lá crescer, oculta no ventre da terra até, timidamente, lançar o botão fechado para a luz.

Um dedo enorme e rústico se aproximou da flor de pétalas finas e violetas. Contudo, contrário ao que se poderia imaginar, o toque foi suave. Delicadíssimo. A planta recebeu alegremente o contato, dançando com gentileza na superfície da pele.

Sentindo o peso nos joelhos arqueados e nas costas curvadas, o grande minotauro se levantou. As articulações de Decius não mais operavam como antigamente, e mesmo os gestos mais simples estavam se tornando um enfado rotineiro. Pelo menos, aquela pequena florzinha intrépida existia, e sua ousadia conseguia arrancar dele um sorriso toda manhã.

Então, como de costume, tratou de retomar sua ronda pelo jardim. Seus olhos – cansados, mas atentos – procurando por ervas daninhas precisando ser retiradas, e novos botões que necessitavam de um cuidado mais atento. Cuidadosamente, com minúcia, Decius foi escrutinando o perímetro, cerceando insetos e pragas, confrontando ameaças, distribuindo rações de água e...

Bocejou, a mandíbula já velha estalando no maxilar, rindo:

"Você pode tirar o touro do exército, mas não pode tirar o exército do touro", disse, sua voz rouca e grave competindo com os ventos fortes, "não concorda, Suedonius?".

Atrás, o jovem minotauro deu um salto com a súbita percepção de sua presença.

"Desculpe. Não queria ser incômodo", comentou o legionário, trajando já a loriga e o gládio da legião, mesmo o sol sequer tendo totalmente rompido a escuridão do amanhecer.

"Não se preocupe. Eu que sou desconfiado demais. Pensava que quando eu me aposentasse poderia finalmente deixar os instintos de batalha descansarem. Humph, parece que é o contrário: eu fico velho, e eles ficam cada vez mais ariscos!".

O velho minotauro deu outra risada, que terminou numa tosse úmida. Parou um momento para respirar e, novamente, retornou ao cuidado do jardim.

"Vamos, Suedonius. Eu consigo sentir o peso dos seus olhos. O que quer falar?".

O legionário, nervoso, matinha a prontidão militar.

"Nada, senhor centurião. Desculpe pela impert-"...

"Não sou mais centurião, estou aposentado. E aqui em minhas terras, você não precisa temer a hierarquia. Se quiser falar que sou um velho senil, pode falar. Só também saiba que meus punhos ainda podem cravar um malho de ferro na fundação de um edifício de três andares", riu-se o ancião.

Suedonius, ganhando coragem, resolveu perguntar:

"O senhor, trabalhando assim no jardim. Apenas estranhei. Esse não seria um trabalho para os servos? Não seria uma coisa de"...

"De elfos?", completou o ex-centurião. O olhar culpado do legionário foi tudo que precisou ver para dar outra risada, "sabe qual é um dos grandes problemas desse mundo, meu jovem? Um dos grandes problemas de toda Arton? É que cada um tenta dizer que existe a coisa certa de cada povo. E então, a coisa de seu povo é melhor, e a dos outros é pior. Mas quer ouvir uma verdade da vida, garoto? Não existe coisa de elfo, ou de minotauro, ou de hobgoblin, ou de humano, halfling, dahleen, centauro ou sei lá o que mais. O que existe é o que preenche seu coração, aquilo em que você acredita, e que você está disposto a proteger".

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