Aos pés de Glórienn - Ato II

81 3 0
                                    

Ato II

"A noite é bela", uma voz pequena ribombou no templo escuro, "... e não nos vai machucar".

"Pois se a noite é bela", Yarid respondeu, imediatamente recuando as mãos para dentro das mangas de seda, "então é de Glórienn para reinar".

Um elfo pequeno se aproximou do altar e de Yarid, e ele não podia ser mais contrastante. Enquanto Yarid era alta, trajando fina seda élfica com ouro e joias devidamente ordenadas e à mostra, ele era baixinho, usava roupas feitas de vinhas e folhas comuns, com colares de conchas e pedras catadas dos bosques. Seu físico era demasiadamente frágil, braços que seriam incapazes de empunhar o arco longo como se deve, ou manejar a espada longa com brio. Ao passo que Yarid aquilatava um corpo atleticamente esculpido, uma musculatura visível mesmo debaixo dos robes de seda; ela própria carregando um arco às costas e uma espada longa ricamente trabalhada na cintura. O pequeno prostrou-se ao lado dela, fazendo com que ela se afastasse um passo. Queria evitar que os longos cabelos dele – soltos, desarrumados – ficassem resvalando nos dela. Eram pálidos, quase brancos: uma cor feia de elfos caídos e degenerados. Yarid tinha orgulho de seus cabelos escuros, e de sua mecha azulada – símbolo da nobreza – que prendia metodicamente à frente do rosto.

"Vejo que ainda lembra dos dísticos", disse ele, finalmente, com um sorriso de dentes tortos se abrindo no rosto magro.

"Lembro de todos, jamais esquecerei", respondeu Yarid, ainda se afastando dos cabelos pálidos do elfo. "Você me magoa ao imaginar que os possa esquecer".

"Bom, já fazia algum tempo que não vinha ao templo. Seis dias, estou errado?".

"Vejo que ainda sabe contar, Palendriméon".

O elfo suspirou, sentindo a alfinetada.

"Yarid, você sabe que pode me chamar de Palen".

"E você, que pode me chamar de Yaridneane".

Nova pausa desconsertante. Yarid desviou os olhos do elfo e voltou-se novamente para a estátua de sua deusa.

"Eu estava ocupada em oblação, e você interferiu".

"Sim, eu o fiz".

Um visco de desgosto subiu pelas veias de Yarid. Seus punhos se fecharam atrás das mangas longas.

"Irmanada, me diga. Se você tocasse na estátua e não recebesse resposta, o que faria?".

Os punhos de Yarid se soltaram. Seu coração travou. Os olhos voltaram-se diretamente para o rosto de Glórienn, o rosto sem pupilas da estátua de mármore.

"Ela ia responder. Eu senti a presença dela, de Glórienn, de minha deusa. Por acaso duvida de minha fé?".

"Jamais. Antes secarão os rios e as terras afundarão no céu do que a fé de Yaridneane ser questionada".

Silêncio. Os olhos de Yarid piscaram e, depois, se voltaram para o elfo outra vez mais.

"Palen, pode me chamar de Yarid".

O elfo alargou o sorriso. "Senti tua falta nos cultos, é bom que tenha retornado".

"Eu precisava completar os ritos de incensário...precisava tentar".

"Yarid, você não precisa se deixar assombrar pelas sombras. A deusa irá responder quando for o tempo".

"E quando será isso? Que tempo há de chegar que vai ser mais propício do que agora? Estamos às vésperas de um ultimato, o reinado se preparando para uma guerra total, tropas e arautos marchando em plena noite, nas ruas da capital...então, que tempo seria melhor que este para uma mensagem, para alguma espécie de guia? O problema não é o tempo...sou eu. Sou eu quem sou errada".

"Yarid, não diga isso! Você é tão bela e certa quanto a flecha de um arco. Devemos esperar, é isso que podemos fazer. O tempo será o certo quando for um tempo belo. Glória Glórienn", comentou Palen, no que Yarid fez uma careta.

"Detesto como fala isso. É uma desfeita com os ritos próprios. Deve-se dizer 'pela glória de Glórienn', esse é o correto".

"Pelo caminho antigo, os dizeres são diferentes".

"Eu sinceramente não entendo a razão de vocês quererem tanto ressuscitar esse caminho antigo de que falam – parecem um bando de mendigos, ou, pior, baixo clero dos sacerdotes de Alinhanna, ou do irmão dela, Megalokk".

"Nós erramos, Yarid. Deixamos nos levar por nossa glória vã e de nosso reino ao ponto de esquecermos que a glória verdadeira advém de Glórienn. Precisamos acertar nosso caminho e...".

"Não é o caminho que está errado, Palen! É o mundo. O mundo recusou a beleza em prol da feiura. Abraçou a perversão ao invés da perfeição. Cabe a nós mostrar o caminho para o mundo – o belo, o perfeito: Glórienn".

Palen suspirou pesadamente.

"Foi precisamente este tipo de pensar que nos levou à queda. A glória de Glórienn está na beleza da harmonia entre as coisas, e não em querer estar acima de tudo".

Yarid voltou a fitar o rosto da estátua. "Glória é a beleza da perfeição; perfeição é a união do caminho para se livrar dos erros. No passado, ser 'elfo' era sinônimo de 'perfeição'; todos entendiam isso, todos seguiam o caminho. Por inveja e despeito, planejaram contra nós. E é nesses momentos de escuridão que devemos, mais que nunca, nos ater ao caminho certo e servir de exemplo ao mundo, e guiá-los para longe do abismo sobre o qual querem se jogar".

O barulho de vários passos em marcha interrompeu a discussão dos dois. Apreensivos, escutaram, em silêncio, até que os passos sumissem e desaparecessem. Nas memórias dos dois ainda conseguem ouvir os gritos quando a Aliança invadiu Lenórienn, e todo passo de marcha é um eco daquela época.

"Alguma notícia de Tinllins?", Palen pergunta, tentando afastar as memórias ruins.

"Não. Nenhuma notícia".

"Acredita que ele virá para o conselho teológico?".

Yarid suspirou, "não sei. Haverá representantes dos principais deuses do panteão, para poderem emitir os pareceres divinos. Então, é de se supor que Tinllins, enquanto sumo-sacerdote, aparecerá".

Palen tocou o ombro da colega, "é por isso que estava tentando alcançar nossa deusa?".

"Sim", novamente, os punhos de Yarid se fecharam, "alguém tem que conseguir ser o emissário da deusa. Glórienn precisa comparecer, ela precisa ter suas reclamações ouvidas! E se o sumo-sacerdote Tinllins não puder comparecer, então, nem que isso me custe a vida, irei encontrar um meio de...".

Mais barulhos de passos preencheram as ruas de fora do templo, fazendo com que Yarid silenciasse e escutasse.

"Eles...estão chegando mais perto. Estão se aproximando do templo!", comentou Palen.

"Eu sei!", disse Yarid, já alcançando o arco que tinha às costas, "você está em condições de dar combate?".

"Não precisamos acreditar que são pessoas com intenções hostis".

"Palen, eu perguntei se você tem condições de lutar. Responda!".

Um breve momento de hesitação antes de responder, no que Palen apenas consentiu silencioso com a cabeça. Yarid suspirou e voltou-se para o portal do templo:

"Nada nem ninguém irá ameaçar a integridade deste templo enquanto eu tiver um corpo que possa lutar. Diante de minha deusa eu juro isso. Pela Glória de Glórienn!".

Universo TormentaOnde histórias criam vida. Descubra agora