04 | Histórias de vida

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Histórias, pensou Conor assustado ao voltar caminhando para casa.

As aulas tinham acabado e ele conseguiu escapar. Passou o dia todo evitando Harry e os outros, apesar
de eles provavelmente saberem que era melhor não arriscar causando-lhe outro “acidente” logo depois de quase serem pegos pela srta. Kwan. Ele também evitou Lily, que voltara à aula com os olhos vermelhos e inchados, e uma carranca de dar medo.

Quando o último sinal tocou, Conor saiu correndo, sentindo o peso da escola, de Harry e de Lily saindo de seus ombros ao abrir ruas e mais ruas de distância entre ele e tudo o mais.

Histórias, pensou ele de novo.

— Suas histórias — disse a sra. Marl na aula de inglês. — Não pensem que vocês não viveram o bastante para ter uma história a contar.

Ela chamou isso de histórias de vida, uma tarefa para eles escreverem sobre si mesmos.

Suas árvores genealógicas, onde eles viviam, viagens e lembranças felizes.

Coisas importantes que aconteceram.

Conor arrumou a mochila no ombro. Ele era capaz de pensar em uma ou outra coisa que havia acontecido. Nada sobre o que ele gostaria de escrever. Seu pai os havia abandonado.

O gato tinha fugido um dia sem nunca mais voltar.

A tarde em que sua mãe disse que eles precisavam ter uma conversinha.

Ele franziu a testa e continuou caminhando.

Mas aí então Conor também se lembrou do dia anterior àquele. Sua mãe o havia levado ao restaurante indiano preferido dele e deixou que ele pedisse quanto vindaloo quisesse.

Então ela riu e disse:

— Ora bolas, por que não? — E pediu pratos e mais pratos para ela também. Eles começaram a soltar puns antes mesmo de voltarem ao carro. No caminho para casa, mal conseguiam falar de tanto rir disso.

Conor sorriu ao pensar naquilo. Porque não foi uma volta para casa. Foi uma ida surpresa ao cinema em uma noite com aula no dia seguinte, para verem um filme que Conor já tinha visto quatro vezes e que a mãe, sabia ele, já não aguentava mais ver.

Mesmo assim, lá estavam eles, revendo o filme, ainda rindo um com o outro, comendo baldes de pipoca e bebendo litros de Coca-Cola.

Conor não era burro. No dia seguinte, quando eles tiveram a “conversinha”, ele entendeu o que sua mãe tinha feito e por que o fizera. Mas nem isso conseguiu apagar a diversão daquela noite. As risadas juntos. A sensação de que tudo era possível. A sensação de que nem ficariam surpresos se algo de muito bom lhes acontecesse ali mesmo. Mas ele também não escreveria sobre isso.

— Ei! — Uma voz soando atrás dele o fez gemer. — Ei, Conor, espere!

Lily.

— Ei!— disse ela, alcançando-o e colocando-se diante dele para que Conor parasse ou passasse por cima dela. Ela estava sem fôlego, mas ainda parecia furiosa. — Por que você fez aquilo hoje? — perguntou.

— Deixe-me em paz — falou Conor, passando por ela.

— Por que você não contou à srta. Kwan o que realmente aconteceu? — persistiu Lily, seguindo-o. — Por que você me deixou ser punida?

— Por que você se intromete quando não é da sua conta?

— Estava tentando ajudar você.

— Não preciso da sua ajuda — declarou Conor. — Estava me saindo bem sozinho.

— Não estava! — retrucou Lily. — Você estava sangrando.

— Não é da sua conta — atacou Conor novamente, aumentando o passo.

— Levei um castigo de uma semana — reclamou Lily. — E um bilhete para mostrar aos meus pais.

— Não é problema meu.

— Mas você tem culpa.

Conor parou repentinamente e se virou para ela. Ele parecia com tanta raiva que Lily recuou, impressionada, quase como se estivesse com medo.

— A culpa é sua — emendou ele. — A culpa é toda sua.

Ele saiu correndo pela rua.

— Nós éramos amigos — gritou Lily atrás dele.

— Éramos — repetiu Conor, sem se virar.

Ele conhecia Lily fazia muito tempo. Desde que se entendia por gente, o que era basicamente a mesma coisa.

As mães deles eram amigas desde antes do nascimento de Conor e Lily, e Lily era como uma irmã morando em outra casa, principalmente quando uma ou outra mãe ficava cuidando deles. Ele e Lily, porém, eram apenas amigos, sem o tal envolvimento romântico pelo qual às vezes eram provocados na escola. De certa forma, era até difícil para Conor enxergar Lily como uma menina, pelo menos não da mesma forma como ele olhava para as outras garotas da escola. Como isso seria possível quando os dois
fizeram o papel de ovelhinha do presépio, aos cinco anos? Quando ele sabia quanto ela cutucava o nariz?

Quando ela sabia do tempo que ele passou tendo que dormir com a luz do quarto acesa depois que o pai foi embora de casa? Era apenas uma amizade normal como todas as outras.

Mas então a “conversinha” da sua mãe aconteceu e o que houve em seguida foi simples e repentino.

Ninguém sabia.

Então a mãe de Lily ficou sabendo, claro.

E então Lily ficou sabendo.

E todos ficaram sabendo. Todos. O que mudou o mundo todo num único dia.

E ele jamais a perdoaria por isso.

Mais algumas ruas e lá estava sua casa, pequena mas aconchegante. Foi a única insistência de sua mãe durante o divórcio: a casa deveria ficar com eles livre de hipoteca para que não tivessem de se mudar depois que o pai de Conor fosse para os Estados Unidos com Stephanie, a nova esposa. Isso foi há seis anos; tanto tempo agora, que Conor às vezes nem se lembra de como era ter um pai em casa.

O que não significava que ele não pensasse no assunto.

Conor levantou a cabeça e vislumbrou a colina atrás da casa, a cúpula da igreja despontando no céu nebuloso.

E o teixo pairando sobre o cemitério como um gigante adormecido.

Conor se obrigou a continuar olhando para a árvore, forçando-se a ver que era apenas uma árvore, uma árvore como outra qualquer, como qualquer uma daquelas às margens da ferrovia.

Uma árvore. Só isso. Sempre foi apenas isso. Uma árvore.

Uma árvore que, enquanto ele observava, adquiriu um rosto enorme e o encarava sob a luz do sol, seus braços estendidos, a voz dizendo: Conor…

Ele recuou tão rápido que quase caiu na rua, segurando-se no capô de um carro ali estacionado.

Ao levantar a cabeça, ela era apenas uma árvore novamente.

Sete Minutos Depois Da Meia-Noite [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora