15 | A segunda história

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— Há cento e cinquenta anos — começou o monstro —, este país se tornou um lugar industrializado.
As fábricas se espalharam pela paisagem como ervas daninhas. Árvores foram derrubadas, campos
foram nivelados, rios foram poluídos. O céu se engasgou com a fumaça e a fuligem também, passando
os dias tossindo e se coçando, os olhos para sempre voltados para o chão. As vilas se transformaram
em cidades, as cidades em metrópoles. E as pessoas começaram a viver sobre a terra, e não com a
terra.
Mas ainda havia o verde, se você soubesse para onde olhar.
O monstro abriu as mãos novamente, e uma névoa se espalhou pela sala da avó. Quando ficou claro,
Conor e o monstro estavam no meio de um campo verdejante com vista para um vale de metal e tijolos.
— Então estou mesmo dormindo — falou Conor.
— Silêncio — disse o monstro. — Aí vem ele. — E Conor viu um homem aparentemente amargurado,
com roupas pretas e pesadas e um olhar muito, muito severo, caminhando na direção deles, colina abaixo.
— No limite deste campo vivia um homem. O nome dele não é importante, já que ninguém o usava. Os
aldeões só o chamavam de o Boticário.
— O quê? — perguntou Conor.
— O Boticário — repetiu o monstro.
— O quê?
— Boticário era um nome antiquado, mesmo naquela época, para um farmacêutico.
— Ah! — exclamou Conor. — Por que você não disse logo?
— Mas o nome fazia sentido, porque boticários eram antiquados e lidavam com a medicina antiga
também. Com ervas e cascas de árvore, com poções feitas com frutos e folhas.
— A nova esposa do papai faz isso — disse Conor ao observarem o homem pegar uma
raiz. — Ela é dona de uma loja que vende cristais.
O monstro fez uma cara feia.
— Não é nem de longe a mesma coisa.
Vários dias o Boticário saía para coletar ervas e folhas no campo que cercava a aldeia.
Contudo, à medida que os anos passavam, suas caminhadas demoravam mais e mais, já que as
fábricas e estradas se espalhavam como as sarnas que ele com tanta eficiência tratava. Ele costumava
coletar passiflora e bela-rosa antes do chá da manhã e agora levava o dia todo para conseguir as
ervas.
O mundo estava mudando e o Boticário ficou amargurado. Ou melhor, mais amargurado, porque ele
sempre foi um homem desagradável. Ele era mesquinho e cobrava demais pelas curas, geralmente
mais do que o paciente podia pagar. Ainda
assim, ele se surpreendia ao notar o ódio que os aldeões tinham dele, pensando que eles deveriam
tratá-lo com mais respeito. E, como ele se comportava mal, eles se comportavam mal em relação ao
Boticário, até que, com o passar do tempo, seus pacientes passaram a procurar outros remédios mais
modernos e outros curandeiros mais modernos. O que, claro, só tornou o Boticário ainda mais
amargurado.
A névoa os cercou novamente e o cenário mudou. Agora estavam num gramado no alto
de um montículo. Havia uma casa paroquial de um lado e um enorme teixo no meio de algumas lápides.
— Na aldeia do Boticário também vivia um pároco…
— Esta é a colina atrás da minha casa — interrompeu Conor. Ele olhou em volta, mas
não havia ferrovia ainda, nada daquela fileira de casas, só umas trilhas e um riozinho.
— O pároco tinha duas filhas — continuou o monstro —, que eram a luz da vida dele.
Duas jovens saíram gritando da casa paroquial, falando, rindo e tentando jogar punhados de grama uma
na outra. Correram ao redor do tronco do teixo, escondendo-se uma da outra.
— Este é você — disse Conor, apontando a árvore, que no momento era apenas uma árvore.
— Sim, bem, no terreno da casa paroquial também crescia um teixo. E era um belíssimo teixo —
acrescentou o monstro.
— Se você diz… — falou Conor.
— Ora, o Boticário queria muito aquele teixo.
— Queria? — perguntou Conor. — Por quê?
O monstro pareceu surpreso. — O teixo é a mais importante das árvores medicinais —
explicou. — Ele vive mil anos. Seus frutos, casca, folhas, seiva, polpa, madeira, tudo fervilha, queima
e se contorce em vida. Ele pode curar quase qualquer doença de que o homem padece, se manipulado
e tratado pelo boticário certo.
— Você está inventando isso. — Conor franziu a testa.
A expressão do monstro se tornou tempestuosa. — Você ousa me questionar, menino?
— Não — disse Conor, recuando diante da raiva do monstro. — Só nunca ouvi falar disso antes.
O monstro franziu a testa por um tempo, depois continuou a história.
— A fim de coletar essas coisas da árvore, o Boticário teria de cortá-la. E isso o pároco não
permitiria. O teixo existia neste terreno desde antes de ele ser ocupado pela igreja.
Um cemitério já estava começando a ser usado e planejavam a construção de uma nova igreja. O teixo
a protegeria das chuvas pesadas e do clima mais inclemente, e o pároco —
por mais que o Boticário pedisse, e ele pedia com frequência — não ia permitir que aquele homem
chegasse perto da árvore.
Ora, o pároco era um homem bom e esclarecido. Ele queria o melhor para sua congregação, queria
tirá-los da idade das trevas da superstição e da bruxaria. Ele
pregava contra o que o Boticário praticava, e o mau humor e a cobiça do Boticário com certeza
faziam chegar os sermões a ouvidos ansiosos. Seus negócios diminuíam cada vez mais.
Até que, um dia, as filhas do pároco adoeceram. Primeiro uma, depois a outra, com uma doença que
varreu o interior do país.
O céu escureceu e Conor podia ouvir a tosse das filhas dentro da casa paroquial, e também as orações do
pároco e as lágrimas da esposa.
— Nada que o pároco fazia ajudava. Nenhuma oração, nenhuma cura dos médicos modernos a duas
cidades de distância, nenhum remédio do campo tímida e secretamente oferecido pelos paroquianos.
Nada. As filhas mirravam e estavam prestes a morrer. Por fim, não havia outra opção que não abordar
o Boticário. O pároco engoliu o orgulho e foi implorar o perdão do homem.
“Você ajudaria minhas filhas?”, perguntou o pároco ajoelhado à porta do Boticário.
“Se não por mim, então por minhas duas meninas inocentes.”
“Por que eu faria isso?” perguntou o Boticário. “Você tem destruído meus negócios com suas
pregações. Você me recusa acesso ao teixo, minha melhor fonte de cura. Você fez a vila se voltar
contra mim.”
“Você pode ficar com o teixo”, disse o pároco. “Vou pregar em seu favor. Vou encaminhar meus
paroquianos para você em todos os casos de doença. Você pode ter o que quiser, basta salvar minhas
filhas.”
O Boticário ficou surpreso.
“Você abdicaria de tudo em que acredita?”
“Se você salvar minhas filhas”, declarou o pároco. “Abdico de tudo.”
“Então não há nada que eu possa fazer para ajudá-lo”, sentenciou o Boticário, batendo a porta na
cara do pároco.
— O quê? — perguntou Conor.
— Naquela mesma noite, as duas filhas do pároco morreram.
— O quê? — repetiu, o pesadelo parecendo se apoderar dele.
— E naquela mesma noite eu saí caminhando.
— Que bom! — gritou Conor. — Aquele idiota merece ser punido!
— Eu também achava — disse o monstro. — Foi pouco depois da meia-noite que arranquei a casa do
pároco de suas fundações.

Sete Minutos Depois Da Meia-Noite [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora