09 | O restante da primeira história

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- Não? - perguntou Conor. - Mas a rainha foi derrubada.

- Foi mesmo - disse o monstro. - Mas não por mim.

Conor hesitou, confuso.

- Você disse que fez de tudo para ela nunca mais ser vista.

- E fiz mesmo. Quando os aldeões acenderam as chamas para queimá-la viva, aproximei-me e a salvei.

- Você o quê? - perguntou Conor.

- Peguei-a e levei-a para bem longe, para onde os aldeões jamais a alcançassem, para além até do seu reino de nascimento, para uma vila junto ao mar. E lá a deixei, para viver em paz.

Conor se levantou, aumentando o tom de voz, incrédulo.

- Mas ela matou a filha do fazendeiro! Como você pôde salvar uma assassina? - Então ele ficou sério e deu um passo para trás. - Você realmente é um monstro.

- Nunca afirmei que ela tinha matado a filha do fazendeiro - falou o monstro. - Só disse que o príncipe afirmou que foi assim.

Conor fechou e abriu os olhos. Depois cruzou os braços.

- Então quem a matou?

O monstro abriu as enormes mãos de um jeito que fez soprar uma brisa, trazendo consigo uma névoa úmida. A casa de Conor ainda estava atrás dele, mas a névoa recobriu o jardim, substituindo-o por um campo com um teixo gigante no meio e um homem e uma mulher dormindo junto à sua raiz.

- Depois de se amarem - disse o monstro -, o príncipe permaneceu acordado.

Conor assistiu ao jovem príncipe despertar e olhar para a adormecida filha do fazendeiro, cuja beleza até
mesmo Conor constatava. O príncipe observou-a por um instante, depois se enrolou num cobertor e foi até o cavalo, preso a um dos galhos do teixo. O príncipe pegou algo do alforje, desamarrou o cavalo, estapeando-o com força nos quadris para que saísse em disparada. Ele segurava aquilo que tirara da bolsa.

Uma faca, brilhando ao luar.

- Não! - disse Conor.

O monstro fechou as mãos e a névoa caía novamente à medida que o príncipe se aproximava da filha do
fazendeiro, a faca em punho.

- Você disse que ele ficou surpreso ao ver que ela não acordava! - lembrou Conor.

- Depois de matar a filha do fazendeiro - continuou o monstro -, o príncipe se deitou ao lado dela e
voltou a dormir. Ao acordar, ele representou uma farsa, para o caso
de alguém estar observando. Mas também, e talvez você se surpreenda com isso, para si mesmo. - Os galhos do monstro rangeram. - Às vezes as pessoas precisam mentir para si mesmas acima de tudo.

- Você disse que ele lhe pediu ajuda! E que você o ajudou!

- Só disse que ele falou o bastante para me fazer caminhar.

Conor, de olhos arregalados, fitou o monstro e então o jardim, que reemergia da névoa que se dissipava.

- O que foi que o príncipe disse a você? - perguntou ele.

- Ele me disse que tinha feito aquilo para o bem do reino. Que a nova rainha era na verdade uma bruxa, que seu avô suspeitava disso ao se casar com ela, mas ignorou o fato por causa de sua beleza. O príncipe não podia enfrentar sozinho uma bruxa poderosa. Ele precisava da fúria dos aldeões em
sua ajuda. A morte da filha do fazendeiro tinha esse objetivo. Ele se sentia mal por ter feito aquilo, triste demais, disse, mas, assim como o próprio pai morrera defendendo o reino, ele havia matado sua noiva. A morte dela servia para impedir um mal maior. Quando ele disse que a rainha tinha matado a noiva, ele acreditava, à maneira dele, que aquilo fosse verdade.

- Isso é uma bobagem! - gritou Conor. - Ele não precisava matá-la. As pessoas estavam lhe dando apoio. Elas o acompanhariam de um jeito ou de outro.

- As justificativas dos homens que matam sempre devem ser ouvidas com ceticismo - declarou o monstro. - E então a injustiça que vi, o motivo para eu caminhar, foi com a rainha, não
com o príncipe.

- Ele foi pego? - perguntou Conor, perplexo. - Eles o puniram?

- Ele se tornou um rei muito amado - respondeu o monstro -, que governou feliz até o fim de seus longos dias.

Conor olhou para a janela do próprio quarto, fechando novamente a cara.

- Então o bom príncipe era um assassino, e a rainha má, no fim das contas, não era uma bruxa. É para
haver uma lição nisso tudo? Que eu deveria ser bonzinho com ela?

Ele ouviu um rugido estranho, diferente, e levou um instante para perceber que o monstro estava rindo.

- Acha que conto histórias para lhe dar lições? - perguntou o monstro. - Acha que saí caminhando do tempo e da própria terra para ensinar a você uma lição sobre ser bonzinho?

Ele riu ainda mais alto, até o chão tremer; era como se o próprio céu desmoronasse.

- É verdade - disse Conor, constrangido.

- Não, não - falou o monstro, finalmente se acalmando. - Tudo levava a crer que a rainha era mesmo uma bruxa e podia muito bem fazer um grande mal. Quem pode dizer?

Ela estava tentando se perpetuar no poder, no fim das contas.

- Por que você a salvou, então?

- Porque algo que ela não era é assassina.

Conor deu a volta no jardim, pensativo. Então pensou um pouco mais.

- Não entendo. Quem é o mocinho aqui?

- Nem sempre há um mocinho. Nem sempre há um bandido. A maioria das pessoas fica no meio-termo.

Conor fez que não com a cabeça.

- É uma história horrível. E uma enganação.

- É uma história verdadeira - disse o monstro. - Muitas coisas que são verdadeiras parecem enganação. Reinos têm os príncipes que merecem, filhas de fazendeiros morrem sem motivo e, às vezes, vale a pena salvar bruxas. Na verdade, geralmente é assim. Você ficaria surpreso.

Conor olhou novamente para a janela do quarto, imaginando a avó dormindo na cama dele.

- E como isso ajuda a me salvar dela?

O monstro ergueu-se completamente, olhando para Conor lá do alto.

- Não é dela que você precisa se salvar - sentenciou.

Conor sentou-se no sofá, respirando pesadamente de novo.

00h07, lia-se no relógio.

- Droga! - exclamou ele. - Estou sonhando ou não?

Levantou-se com raiva...

E imediatamente bateu com o dedão em algo.

- O que é isso agora? - resmungou, dobrando-se para acender a luz.

De um nó na tábua do piso brotara uma mudinha de uns trinta centímetros, viçosa e muito sólida.

Conor fitou-a por um tempo. Então foi até a cozinha para pegar uma faca e tirá-la dali.

Sete Minutos Depois Da Meia-Noite [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora