3 | Razões

2K 199 252
                                    

Dois dias haviam se passado e não recebi nenhuma notícia de Kurt. Desde que o vi naquele estado, seu nome rodeava minha cabeça, enquanto gritava preocupação sem parar. Courtney habitava o apartamento de Andy agora e ele fazia com que minhas faxinas fossem piores, pois sempre estava sentado no sofá, vendo TV e jogando suas latas de cerveja pela sala e onde quer que precisasse ir. Seus cigarros também não conheciam um cinzeiro e sua barba caía por todo o lugar.

Fique Calma, Evelyn. Pense nas razões de estar trabalhando para ela.

Uma pintura dos meus pais no jardim de casa se fez em meus pensamentos. Eles estavam se balançando no balanço branco que ficava abaixo do nosso Ipê cor de rosa. Sorri e desejei que pudessem ver, mas meu sorriso logo se desfez quando, próximo aos lírios do canteiro distante, a figura de um certo vocalista apareceu, sem foco. Chacoalhei minha cabeça, afastando essa cena. Estava confusa, me perguntando como Cobain pode ter sido visualizado. Ele não era uma das minhas razões, não poderia ser.

Assim que terminei com a louça, me dediquei a limpar a mesa de vidro. Subitamente, tive a primeira visão da agenda de Courtney quando ela a jogou em minha frente.

"Temos um festival para tocar esse final de semana e algumas entrevistas, está tudo escrito naquele bilhete. Organize isso, querida." Seu cabelo estava uma bagunça loira e descolorida, todo arrepiado como nos anos 80. Não pude conter um sorriso. Finalmente eu faria algo relacionado ao trabalho que fui contratada. "Talvez eu tenha abusado dos seus dotes de limpeza, mas não pense que não serão mais necessários." Complementou, me deixando sozinha e indo sentar no colo de Andy, que assistia algum jogo de futebol.

Sua agenda era uma desordem. Post-it amarelos caíam das paginas cor de café com leite e havia rabiscos por toda parte. Sua letra parecia com a caligrafia de médicos, mas dava para entender. Peguei o bilhete onde as datas seguintes estavam anotadas e passei-as a limpo, nos dias corretos. Deixei o festival por último, pois eu estava ansiosa. Entraria de graça, veria bandas maravilhosas de graça, beberia de graça...

Quando cheguei a página com a data do evento, não pude deixar de ler a única anotação de Courtney que não era letra de alguma música ou sobre encomendas de drogas e parecia ter sido escrita com cuidado:

Reconquistar Kurt, meu querido Kurt. Também havia um coração desenhado ao lado.

Isso significava que Nirvana também estaria no festival. Meu coração se agitou, metade dele por empolgação e a outra metade por nojo de Love e suas intenções. Ela não poderia pensar que tudo era fácil, que podia fazer da vida dele um inferno e depois acalmar a tempestade que criou.

Ugh.

Assim que terminei, devolvi a agenda a guitarrista. "Você é boa nisso, garota." Falou, tragando seu cigarro. Me perguntei como ela queria Kurt de volta se nesse exato momento estava com suas pernas esbranquiçadas sobre as de Andy, causando volume no jeans rasgado dele. "Já desfez minhas malas?"

Meu otimismo se apagou. Courtney não mudaria e não sentiria-se culpada por não cumprir com meu contrato. Ela queria o inferno e o traria para terra, perturbando a vida de todos ao seu redor. No fundo, eu relevava. Love deveria estar lutando contra seus demônios internos tanto quanto lidávamos com seus externos, mas não sabíamos até que ponto isso era justo.

"Ainda não..." Respondi, virando minhas costas e indo em direção a suíte do apartamento. Caminhei para longe antes que pegasse qualquer fragmento de visão dele passando a língua pelo pescoço da guitarrista.

E demoraria uma eternidade para o final de semana.

*

No sábado, às 9h da manhã, ouvi o telefone de meu apartamento tocar. Quando finalmente, na noite anterior, pude deixar o apartamento de Andy e tarefas de Courtney para trás e dormir, o barulho estridente vindo da sala tirava meu raro momento de paz.

Salvando Kurt CobainOnde histórias criam vida. Descubra agora