Capítulo 3 - O príncipe virou um chato

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"Bobeira é não viver a realidade

E eu ainda tenho uma tarde inteira"

(Malandragem – Cássia Eller)

Acordou num susto com a televisão ligando no telejornal. Ela ainda estava em seu quarto de adolescente, ainda era 2001 e esse era seu despertador, na inexistência dos smartphones.

Por alguns segundos lembrou-se de Tiago puxando-a para si na manhã do sábado e em Clarinha brincando de aviãozinho. Regina não tinha calculado muito bem a saudade que sentiria ficando longe deles por um ano, não que ela tivesse realmente achado que aquele feitiço maluco funcionaria. Levantou-se e sacudiu a cabeça, o melhor era se ocupar e aproveitar a oportunidade de viver mais uma vez aquele ano ao invés de ficar pensando nas coisas e pessoas que estariam intactas e a sua espera na volta.

Ela se lembrava um pouco do que costumava fazer nas manhãs daquela época porque sempre foi adepta das rotinas: se banhava, tomava café-da-manhã e depois o pai a levava de carro para a escola, antes de seguir para o trabalho. Mesmo assim tentava se concentrar, para que não tivesse que responder perguntas do tipo "porque você está estranha hoje?", pois não saberia o que dizer. Ainda estava tentando entender a grandiosidade daquilo.

Ao ficar nua no banheiro, se olhou no espelho, coisa que não tinha feito na noite anterior. Ela não se achava bonita ou atraente nesta época, o corpo em formato retangular, sem seios volumosos ou curvas acentuadas, não era considerado belo. Regina sorriu sabendo o quanto era boba, pois no futuro, ainda mais com a gravidez, seu corpo desenvolveria gordura localizada, celulite e teria outros detalhes que a deixariam definitivamente fora do padrão, ou seja, alí, aos dezesseis anos, era exatamente como ela gostaria de aparentar aos trinta e cinco.

— Mulheres, quase sempre insatisfeitas consigo mesmas... — Ela inclinou a cabeça e achou ainda mais graça ao se enxergar como era, antes de se acostumar a fazer depilação íntima.

Ligou o chuveiro e se apressou, pois não tinha tempo para ficar analisando cada parte do corpo.

Vestiu a camiseta da escola, calças jeans de boca larga, as costumeiras botinhas de camurça bege, conhecidas como "botinhas de surfista" e desceu para a cozinha.

Brigite, distraída, providenciava o café e, sentado à mesa, Cido passava margarina num pão. O rádio, ligado numa estação de notícias, preenchia o silêncio.

— Bom dia. — Demorou alguns segundos tentando se lembrar em qual das portas dos armários ficavam os copos, contudo o corpo pareceu reagir sozinho e se direcionar ao lugar certo, para seu alívio.

— Bom dia... — o pai resmungou.

— Bom dia! — Brigite beijou o rosto da filha e correu para o andar de cima — Até mais tarde.

Regina encheu um copo com café e leite e se sentou ao lado do pai. O gosto da bebida a fez sorrir e ela poderia ficar saboreando-a por muitos minutos, mas, ao observar o relógio, acelerou o processo. No futuro ela comeria torradas integrais e uma fruta no café-da-manhã, mas nessa época seu corpo recusava qualquer alimento, ela se recordou ao não sentir desejo algum pelo saco de pão francês a sua frente.

Cido se levantou e começou a recolher os utensílios quando o repórter anunciava a previsão do tempo para aquele dia.

— Dez minutos. — Comunicou.

Regina riu baixo, se lembrando que o pai sempre avisava quando faltava pouco tempo para saírem de casa e isso acontecia quase sempre durante o anúncio do clima. Terminou de beber o leite com café, correu para escovar os dentes e pegar a mochila cinza básica, sem nada que a distinguisse de uma mochila de qualquer outro adolescente, seja menino ou menina, pobre ou rico. Grunhiu ao colocar o objeto nas costas, se recordando do peso provocado pelos livros grossos e saiu da casa a tempo de ver o pai na garagem, acabando de fumar um cigarro. Cido consumia um único cigarro por dia, após o café da manhã e, segundo ele próprio, era um dos melhores momentos de seu dia.

O último feitiço de Cassandra [Vencedor wattys 2021]Onde histórias criam vida. Descubra agora