Introspectivo

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O teto do meu novo lar era inusitadamente excêntrico. Obviamente tinha sido repintado várias vezes. Por quê? Nem eu sei o porquê de estar reparando nisso. Ah, deve ser porque estou deitada em um sofá relativamente novo que achamos na loja de móveis usados de Ipanema, que Felipe tanto adora, e não em minha casa, com minha família. Pensei que o primeiro dia de aula me daria um up, afinal tenho tantos planos de aula para finalizar e tudo para planejar, entretanto ainda não sinto vontade de sair daqui para comer ou beber algo. Só escutar Matilda em looping e sentir pena de mim mesma. Caralho!

A campainha toca e levanto de supetão, como se aquilo fosse o milagre que minha vida necessita. Arrumo meu robe ao mesmo tempo que abro a porta e encaro o ser do outro lado. Encostado no portal, com um sorriso culpado: Felipe Siqueira.

- Ah, não acredito que o primeiro dia de aula já te abalou. – falou ao mesmo tempo em que entrava pelo apartamento. – Argh, e essa música de novo? Puta merda, mulher! O volume ainda está alto e nossos vizinhos são – fez aspas com seus longos dedos – comportadinhos.

- Ai, só me deixa assim, na minha. – respondi já retornando ao sofá.

- Sentindo pena de si mesma e pensando no que não devia?

- Para Fê – jogo uma almofada em sua carinha linda.

- Laura, estamos em 2012, muita música animada sendo lançada. Música nova viu!? – sentando-se ao meu lado e abaixando o volume do som.

- Rá, rá – falo com sarcasmo. - E essa visita um tanto inesperada?

- Querida, não é por que trabalhamos no mesmo lugar que vamos deixar de ser vizinhos.

- Estou começando a achar que morar no mesmo prédio que você não é tão legal assim. – fingi estar brava. – Afinal, eu prezo pela minha intimidade e solidão. 

- Não vem com essa melancolia. – fala mais seriamente. - E eu sei que você adorou.

- Ei, estou brincando. – tento descontrair algo que no fundo sei que não é sério.

- Sei. – ainda continua fingindo.

- Verdade mesmo. Aliás, como foi seu primeiro dia de aula? Volta às aulas, né. – ri.

- Sabe, era eu quem deveria estar fazendo essa pergunta sua novata.

- O quê? Bullying com a nova professora, professor antigo? – ambos rimos. – Além do mais, duvido que seja tão antigo assim. Tem gente ali que parece ter trabalhado a vida inteira lá.

- E não mentiu, viu? – gargalhou. – O casal Machado mesmo é um dos professores dos mais antigos da escola. Ela é mais tranquila, mas ele é meio ríspido com todos, sobretudo novatos.

- Hm... – tento rir da situação. – Ele pegou no seu pé, bebezinho?

- Sabe que comigo é assim: começou a pegar no meu pé, já jogo pra esparro.

- Eita, como é carioca.

- Sou do Rio de Janeiro, meu amor. – rimos. – Carioca da gema. Centro. Ok!? Para de enrolação. Fala como foi...

- Ai, tá bom. – revirei os olhos, mesmo não querendo. – Achei que fui bem recebida, de modo geral. Tanto pelos estudantes quanto professores, mas tem uma aluna no terceiro que sei lá. Foi um tanto ríspida.

- Quem? A Camila?

- Como você sabe?

- Ah, escutei que estavam animados para te conhecer, mas que Camila odeia a matéria. Achei isso um puta pré-conceito.

- Nossa! Não sabia que tinha rolado algo assim antes.

- Deixa pra lá, ué.

- Sim, não há muito o que fazer. Porém é chato e desconfortável para um caramba. – ele somente balançou a cabeça e já fui emendando para outro assunto. - E, hm, conhece a Carolina? – questiono curiosa.

- Moraes? Herdeira do Colégio? – me olhou estranhamente.

- Sim, ela mesma. – ri sem graça.

- O que tem ela, Laura? – continuou com aquele olhar.

- Ué, curiosidade.

- Rá rá. – riu Felipe. – Sei. Mas ok! Ela é uma das melhores alunas da escola, além de ser um doce de pessoa. É inteligente e super engajada em projetos contra o desmatamento. Mas...

- O que tem? – indaguei mais curiosa ainda.

- A Carol passou por muitas perdas na vida. – falou com certo pesar. – Perdeu os pais logo cedo e depois foi criada pelo padrasto. Os pais eram biólogos e ela quer seguir o mesmo caminho. – rola os olhos. – Tadinha! É uma área bonita, mas somos todos pobres.

- Caramba, Fê. Isso é realmente muito chato. Tadinha!

- Demais. Imagina perder os pais logo cedo...

- E por quê ela foi criada pelo padrasto? Não tem mais ninguém além dele?

- Sabe que não sei? – ficou com uma expressão pensativa. – Esses assuntos são meio que proibidos naquele lugar, mas sei que geral tem curiosidade. Ela tem uma avó, que mora aqui no Rio, em Petrópolis, e vem de vez em quando. É tudo que sei também, Lauril.

- Nossa, que coisa estranha! Nem quero pensar nisso. – resolvo mudar desse assunto mórbido. - Tomas um vinho comigo?

- Gata, não vai dar, fica pra próxima. Preciso terminar de preparar minhas aulas da semana.

- Ainda?

- Tuas aulas já estão todas prontas? Que competência, gauchinha! – odeio quando ele me chama assim.

- Tu largas de ser besta. – dei um tapa em sua coxa. - Ah, é que não tem muita coisa para fazer e aí...

- Se você sair dessa fossa, terá coisas a se fazer. – comenta levantando do sofá. - Se cuida e muda de música, viu? – disse me abraçando e saindo.

- Pode deixar, louro fake. – ele odeia isso rá, rá.

Também levantei e finalmente desliguei aquele som. Tinha enjoado da canção. Mesmo que o Fê não tivesse aceitado o convite para o vinho, resolvo tomar um pouco. Pego uma taça e me sirvo de um vinho branco cuja garrafa já estava aberta a dias na geladeira. Tomei rapidamente e com sede. Repeti o movimento uma segunda vez e na terceira, resolvo me sentar na poltrona de velho, que compramos. Lá descansava um livro da Cecília Meirelles. Abri aleatoriamente e me deparei com o poema 'As meninas'. Já o conhecia de cor, porém não consegui não sorrir quando pousei os olhos no trecho: 'Carolina,
a mais sábia menina. '

Permiti que minha mente vagasse até a dona desse nome. Realmente aparentava ser sábia e curiosa, como Felipe havia comentado. Seu rosto divertidamente vermelho quando nossas mãos se encontraram na biblioteca. E assustado quando me viu na sala de seu padrasto.

Sobre isso, não sei realmente a razão para qual fui chamada para aquele encontro. Qual era o verdadeiro proposito? Ele comentou que era para revisar meu plano de ensino que entreguei antes de começar as aulas. No dia, ele conferiu e disse que estava tudo certo. Agora me pede readequações e mudanças? Estranho! Bom, vou arrumar seus pedidos, porque preciso desse emprego. É definitivamente uma nova chance.

Engraçado que, voltando ao poema, lembro que minha mãe lia poemas da Cecília Meirelles todas as noites quando nos colocava para dormir. Ela não lia muitos livros como meu avô, mas gostava de poemas. Dona Eva sempre nos deixava escolher os poemas da noite, mas Marie e eu, geralmente escolhíamos 'As meninas'.

Olha como é difícil sair desse ponto de melancolia que é minha vida. Sinto saudades dos meus. E sinto muito por tudo. 

Stubborn Love ⚢Onde histórias criam vida. Descubra agora