Prólogo

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  O vestido de tecido negro era pesado

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  O vestido de tecido negro era pesado. E pelos deuses, muito quente. Incômodo e desconfortável, este apetrecho de tortura em forma de roupa pinicava cada parte do corpo. Para evitar de me contorcer, me coçar, ou retirar essa maldita peça infernal de mim, eu observava fixamente cada movimento da pá enquanto cavava a terra e me concentrava no barulho peculiar que tal movimento produzia.

     Um vento suave soprou, balançando meus cabelos, beijando meu rosto e pescoço com seu frescor, como se a natureza notasse meu desconforto e nessa delicada carícia primaveril me enviasse forças para seguir e aguentar firme até o fim desse maldito dia. "Obrigada, deusa mãe", pensei com um suspiro ao fechar os olhos e agradecer mentalmente.

     Nesse milésimo de segundo a pá parou e um caminhar começou a se fazer ouvir. Passos e respirações ofegantes de quatro homens faziam barulho enquanto pisoteavam a grama, carregando aquele fardo entre eles: um quinto homem, deitado numa grande e pesada tábua de madeira.

     Virei-me para observar a cena, ecoando em meus pensamentos as palavras que me fizeram chegar até aqui, que me ajudaram a sobreviver aos meus piores dias: "é real e terrível, mas tudo vai ficar bem".

     Essa minha oração particular me acompanha há anos, e a primeira vez que foi entoada fora num outro enterro, por uma garotinha que havia acabado de perder a mãe. Eu a repeti incessantemente enquanto observava a terra sendo jogada sobre seu corpo e enquanto as lágrimas escorriam por meu rosto. Eu a repeti até alguém me bater, "cale a boca sua garota estúpida" papai gritou.

     E agora era ele quem estava prestes a ser enterrado naquela cova recém aberta.

     Os homens pararam e me aproximei. Coloquei uma rosa vermelha sob as mãos de papai, que  descansavam cruzadas em seu peito, e senti sua pele gelada, endurecida e pegajosa. Nesse momento decidi me permitir observa-lo uma última vez. Estava trajado em suas melhores vestes, que escolhi pessoalmente. No pescoço uma grossa corrente de ouro com um grande pingente de rubi. Enterrar aquele tesouro me doeu no âmago mas era uma tradição, e como filha e herdeira meu dever era respeita-la. Por fim, observei meticulosamente seu rosto, que ainda trazia aquele semblante maquiavélico.

     "Oh, papai, nem mesmo no além mundo se arrependerá de tudo o que fez? Certamente que não. O mais provável é que o senhor me atormente até que seja eu nessa tábua mortuária", pensei tristemente.

     Estava na hora da despedida. Eu podia sentir os olhares dos empregados da fazenda sobre mim. Podia sentir seus pensamentos, que basicamente se dividiam em dois: "pobre menina órfã, sem irmãos, sem marido, e com uma propriedade caindo aos pedaços", ou "quanto tempo levarei para ludibriar essa tola inocente e lhe tomar todo o pouco que lhe restou?"

     Sim, eu via os lobos se excitando, ansiosos para atacar o que eles julgam ser um cordeiro.

     Quando senti uma lágrima escorrer de meus olhos, quente e rápida, acariciei o rosto do meu pai, abaixei-me e depositei um pequenino beijo em sua testa. Essa seria a única lembrança que levaria comigo de beijar meu próprio pai, já que quando vivo ele só se aproximava de mim na intenção de agredir-me. Devagar, como se não quisesse soltá-lo, levei meus lábios ao seu ouvido.

-- Nos vemos no inferno, papai. -- disse tão baixo que eu mesma quase não ouvi.

     "É real e terrível, mas tudo vai ficar bem"

     Dei um pequeno aceno aos homens que o carregavam. Como se quisessem logo se livrar da carga pesada, eles se apressaram a deposita-lo na cova e, sem mais delongas, pá a pá ele foi enterrado. Não houve uma oração, não houve velas ou incenso, não houve cânticos. Papai não acreditava em nada que não fosse a si mesmo.

     "É real e terrível, mas tudo vai ficar bem"

     Enquanto eu observava papai voltar ao pó, notei os empregados se retirarem, talvez voltando aos seus afazeres, ou então indo para casa acender velas para que o fantasma do patrão morto não os perturbe. Alguns se despediram de mim, ofertando condolências, outros apenas saíram de fininho. Quando terminou, o coveiro fez uma leve reverência e se retirou, não sem antes pegar suas moedas. Agora ali éramos só nos 3. Papai, eu e Agnes, minha dama de companhia.

-- Senhorita, não há mais nada para fazermos aqui, devemos ir e deixar os mortos em paz.

-- Acha que ele encontrará paz, Agnes? Um homem como ele? Nesse momento deve estar gritando e queimando no inferno.

     Vi quando os olhos escuros dela de arregalaram com o que eu disse. Ah mas foi tão bom dizer aquilo, expressar o que realmente penso. E o melhor, sem ser agredida por isso depois.

-- Senhorita! Não diga isso! Pelos deuses, se um dos capangas do patrão a escuta eu nem sei o que são capazes de fazer.

     Sorri com a genuína preocupação dela.

-- Não farão nada pois agora quem manda naqueles porcos sujos sou eu. -- peguei a mão dela -- Eu sei, Agnes. O que ele fez a você.

     Minha dama de companhia expressou confusão com minha declaração, e depois, vergonha.

-- Senhorita…

-- Agnes, eu preciso ser sincera com você, e preciso que o seja comigo. -- ela assentiu -- Você sabe que logo os abutres estarão me cercando, tentando tomar tudo de mim. Mas não vou deixar. E preciso das pessoas de confiança junto a mim. Você é uma delas.

-- Eu farei o que for necessário, senhorita Kedard. Eu juro.

-- Ótimo! Uma guerra terminou, Agnes, mas possívelmente ainda seremos atacadas. Precisamos estar preparadas. Agora, antes de irmos, preciso que faça uma coisa.

-- O que, senhorita?

     Olhei para ela, com um sorriso no rosto.

-- Admita que está feliz por Edmund Kedard estar nesse momento sofrendo todo o mal que nos fez, agonizando no além mundo.

     Observei enquanto ela olhava fixamente a cova ali. Vi seu sorriso se abrir, o maior que já vi no belo rosto moreno dela. Agnes deu um passo e cuspiu na terra remexida.

-- Eu gostaria de poder ouvir seus gritos, homem maldito. Desejo que pague por tudo que fez a senhorita Missy e… desejo que pague com dor e sangue por ter violado meu corpo.

     Agnes chorou e eu a abracei. Sentindo-me feliz por ela ter expurgado de si aqueles sentimentos.

     "É real e terrível, mas tudo ficará bem"

-- Vamos embora, Agnes. Está na hora do almoço.

     Sem olhar para trás saímos dali, seguindo rumo ao que quer que fosse que nos esperava para enfrentarmos: lobos ou abutres, o bem ou o mal.

      "É real e maravilhoso, tudo vai ficar bem pois ele está morto."

     Um começo tenso nessa história, né não? O que acharam?

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Um começo tenso nessa história, né não? O que acharam?

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PS: logo, logo nosso querido senhor Mackenzie dará o ar da graça ❤️

Meu querido Senhor Mackenzie - Livro 2Onde histórias criam vida. Descubra agora