Capítulo Um

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Eu estava atrasada. Claro que sim, eu sempre perco a hora depois de passar uma semana dormindo até tarde porque estava matando aula e dessa vez não era diferente. Então sim, eu estou atrasada, pulando o muro do senhor Lee e rezando para que o cachorro enorme que ele tem nos fundos do quintal esteja preso como todos os outros dias do ano.

Aquele cachorro era bravo demais para ficar solto, o bairro inteiro sabe disso, mas o senhor Lee precisa manter o quintal e sua sucata – que eu chamo de coleção "inestimável" de lixo – em segurança. Então ele mantém o bicho lá, numa corrente gigante que permite que ele ande entre os corredores de sucata sem realmente estar solto. Eu sei, é um risco pular o muro e dar de cara com aquele rottweiler, mas felizmente para mim eu sei exatamente qual o limite da corrente que segura Thor de me matar.

Fiz o sinal da cruz por hábito assim que meus pés bateram no chão do ferro-velho. Também pedi proteção à Buda, Shiva e todos os deuses de que me lembrei o nome. Fui andando encostada ao muro, medindo mentalmente qual distância eu tinha que dar entre a casa do senhor Lee – e o ponto inicial da corrente de Thor – e o corredor de lixo que poderia correr para chegar ao outro lado e me poupar de um dos dois quilômetros que separavam minha casa da escola. Moleza. Era só achar a carcaça de um taxi genuinamente americano – que ninguém sabe como ou onde ou quando o senhor Lee conseguiu – entre as geladeiras e fogões velhos.

Aquele taxi era sua relíquia mais preciosa, a única que ele nunca, em hipótese alguma venderia, então ela estava lá há anos, marcando o ponto exato onde eu poderia passar. Não que ele saiba disso, mas sorte a minha ele manter aquele carro ali. E isso faz dele o meu cacareco favorito daquele ferro-velho. E não estava lá. Meu coração começou a bater descontrolado quando cheguei ao fim do muro e nem sinal do carro amarelo.

– Ai não. Onde tá? Cadê a porcaria do taxi? – olhei no relógio de pulso. Faltavam cinco minutos para eu ser colocada numa detenção por estar atrasada. Cinco preciosos minutos que me salvariam da reprovação por falta na aula da senhorita Kang. – Eu deveria ter prestado atenção na previsão da madame Min. "Não se atrase enquanto Marte estiver retrógrado". Cá estou eu atrasada. Cadê esse taxi?!

Voltei alguns metros, tentando lembrar exatamente qual sucata ficava ao redor do taxi. Não podia me dar ao luxo de passar correndo aleatoriamente por aquele mar de coisas inúteis e ser pega por Thor. Resolvi calcular mentalmente a partir da minha memória não muito boa qual a distância entre o taxi e o muro que marcava o final do terreno e fui. Já contei que sou péssima em matemática?

Um rosnado familiar me fez virar a cabeça rapidamente. Lá estava ele, todo preto, os dentes arreganhados e o corpo tremendo em cima de uma perua velha, me observando. Hora de correr. Thor veio imediatamente em meu encalço, latindo desesperadamente. Se eu soubesse a língua dos cães, com certeza entenderia que ele estava me xingando por estar atrasada e cortando caminho por ali de novo. "VOCÊ NÃO PODE PASSAR POR AQUI! EU VOU TE MATAR" – é isso que o latido me diz agora. Sou obrigada a concordar.

Segurei o amuleto da madame Min com força, rezando mentalmente para todos os deuses da boa sorte me tirarem daquela enrascada e prometendo que nunca, nunquinha, nunca mais eu cortaria caminho por ali. Ou perderia hora, para ser mais exata. O som da corrente de Thor se esticando conforme ele me alcançava virou o som mais assustador do mundo, mas não me atrevi a olhar para trás para descobrir se ele ia me pegar pelo pescoço agora ou daqui dois segundos, continuei correndo como se minha vida dependesse disso. E olha só que coincidência, ela depende!

O portão foi ficando mais próximo e o som da corrente mais baixo, me dando a falsa ilusão de que, apesar da falta do taxi, tinha traçado a rota certa, então sorri tolamente. O sorriso morreu assim que eu senti os dentes de Thor se fechando na barra do meu moletom. Por que eu tenho que usar isso aberto? Não poderia ter usado com o zíper fechado? Ou escolhido outro moletom, um que não tivesse a porcaria de um zíper para começar? Não. Escolhi justamente o moletom novo do BTS para usar na minha volta triunfal para a escola. Não foi barato consegui-lo, sabe? E agora ele esta arruinado.

Senti meu corpo perder o chão e ser puxado para trás pouco antes de sentir o baque das minhas costas ao cair. Thor estava no limite da corrente, mas minha blusa ainda estava em sua boca gigante, me puxando com força para o seu alcance. Para a minha morte certa. Eu gritei, ele latiu e quando ele latiu soltou minha jaqueta por tempo suficiente para que eu voltasse a correr. Assim que cheguei ao portão, a corrente estava esticada ao máximo e Thor a meio metro de distância de mim.

– HÁ! – gritei apontando para ele e rindo aliviada por ter sobrevivido. Ele latiu de novo e a corrente deu uma esticada perigosa, fazendo um barulho que eu não esperei para ver se era o que eu achava que era, porque já estava correndo de novo. O coração batia acelerado e eu já estava sofrendo internamente pelo moletom danificado, mas não fiquei para ver o que aconteceria, corri pela minha vida. E vi o chão de novo ao trombar com uma muralha humana usando chapéu de pescador e máscara.

– Malditos idols! – xinguei sem ver exatamente se era ou não um idol, apenas pelo prazer de xingar.

– Sinto muito! – murmurou a muralha humana, já me ajudando a levantar com uma extrema facilidade. A mão enorme fechou ao redor da minha, enquanto a outra se apoiava bem no meio das minhas costas, me levantando em cinco segundos e me deixando envergonhada por ter xingado. – Não te vi. Foi mal. – murmurou por trás da máscara.

– Tudo bem. Quase virei ração de cachorro há menos de dois minutos, não vai ser um tombo que vai me tombar. – dei risada da minha própria piada.

Ele olhou para meu rosto, meu moletom, arregalou os olhos e logo um segurança apareceu do nada entre nós dois. Pelo jeito não é um bom dia para piadas e eu trombei mesmo num idol. Ele murmurou outro pedido de desculpas, eu pedi desculpas também e saí com a impressão de que conhecia aquele garoto de algum lugar. Olhei de novo para o relógio.

– PUTA QUE PARIU, A AULA! – gritei voltando a correr.

Estava tão preocupada em não pegar mais uma detenção que nem percebi que estava sem o colar dado pela madame Min. Muito menos que ela ria de se acabar da porta de sua loja, apontando para mim e para o garoto-muralha de longe, como se soubesse de alguma coisa que mais ninguém sabe. Bom, ela sempre sabe de alguma coisa que ninguém mais sabe, é uma xamã, mas isso não vem ao caso agora. Estou atrasada. 

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