Toco a campainha dela. Toco de novo. Nada. Toco a terceira vez. Desisto. Ela não deve estar em casa.
Quando estou descendo o primeiro degrau, ouço a porta se abrir. Me viro e olho. Ali está ela. Com roupas de dormir. O rosto, inchado, é de quem acabou de acordar. O cabelo bagunçado também. Mesmo assim ela continua linda.
-Oi. – a voz mostra claramente que ela ainda está sonolenta
Eu dou meia volta. - Oi! Bom dia! É... Lembra-se de mim? Sou seu vizinho aqui do lado...
-Sim. O que o senhor quer?- ela balança a cabeça mostrando impaciência pela minha demora em chegar ao ponto.
-Então. Eu recebi estas correspondências e acho que são suas. –estendo as cartas para ela- O carteiro deve ter se enganado. Não sei quanto aqui, mas de onde eu vim isso era terrivelmente comum... - desando a falar.
-Ok. Obrigada. - ela estende a mão e toma de mim aqueles papéis de uma forma um pouco abrupta. E fecha a porta.
-De nada- eu respondo à porta. Viro-me e em passos lentos volto para minha casa.
&&&
Aqui estou eu novamente tentando escrever. A paralisia em que me vejo neste momento é interrompida quando começo a cantarolar a canção que está na minha cabeça:
-I'm your pain/when you can't feel, /Sad but true...
É o refrão da música que estava tocando na ultima festa que ela deu. Lembro com saudade das festas que ela dava. Da agitação, do som alto, de vê-la lá. Não é possível que eu esteja sentindo isso. Será que eu realmente estou enlouquecendo?
Tento ignorar esses pensamentos e me concentrar no que estou fazendo. Não consigo.
À noite parece que meu desejo involuntário se realiza. Novamente há movimentação na casa ao lado. Som alto, jovens, perturbação. Tudo está lá de novo. E desta vez me sinto satisfeito. É como se minha fonte de inspiração estivesse de volta. Não compreendo, mas gosto.
Subo ao quarto e espio pela janela. Pego o binóculo e fico olhando.
Deito sorrindo. Por incrível que pareça, estou gostando do som alto. Saber que ela está lá e bem me tranquiliza. É uma boa noite de sono para mim.
Na manhã seguinte sigo a rotina que desenvolvi aqui em Cape May: café quente na varanda, jornal e a expectativa de ver Heidi.
Vou olhar a caixa de correio. Dessa vez, verifico os destinatários das correspondências antes de levá-las para casa. E, novamente há cartas endereçadas a ela.
Dentro de casa, bebendo mais um pouco de café, separo cuidadosamente os papéis com o nome dela dos meus. Dirijo-me resolutamente à casa dela. Dessa vez não vou bancar o palhaço, penso.
Toco a campainha.
-Bom dia- eu digo secamente.
-Bom dia- ela responde. Dessa vez está diferente, radiante. Talvez porque esteja bem acordada. Ou talvez esteja feliz por algum motivo. Já trocou as roupas de dormir pelas suas habituais: shorts e regata preta.
-Desculpe te incomodar, mas novamente o carteiro errou e colocou sua correspondência na minha caixa. Aqui está.
-Muito obrigada. - ela estende a mão e as pega.
-Tenha um bom dia. - viro-me para ir embora e, ao começar a descer a escadinha da varanda ouço a voz dela:
-Senhor Whitman!- eu me volto, surpreso.
-Sim? Algum problema?
-Na verdade sim. Acho que devo desculpas ao senhor pelo modo como o tenho tratado.
Fico mudo. Sinceramente, não sei o que dizer. Não esperava isso dela. Fico parado esperando o que ela dirá a seguir.
-O senhor parece ser um cara legal e as únicas vezes que tivemos contato acho que eu fui um pouco rude.
-Ah... - balbucio- Acho que também tenho de te pedir desculpas- é a única coisa que me vem à mente no momento. - Também fui um pouco indelicado com você.
-O senhor quer entrar um pouco? – novamente ela me pega de surpresa.
-Ah... - e novamente balbucio- não sei... O seu namorado pode não gostar...
-Não. Tudo bem. Entra aí. - ela abre mais a porta e eu entro.
A boa arrumação e o silêncio me impediriam de reconhecer a casa. Não parece o mesmo lugar onde rolaram aquelas festas com jovens alcoolizados.
Ela joga as correspondências sobre a mesa de centro e senta-se no sofá.
-Pode sentar senhor Whitman- ela aponta a poltrona que fica à frente do sofá. Eu sento-me ali e passo a observá-la enquanto ela confere rapidamente as correspondências.
Depois se dirige ao balcão da cozinha.
-O senhor quer alguma coisa? Um café?
Impulsivamente a sigo e aceito a oferta, intrigado em ver esse outro lado dela, aparentemente doce e afável.
-E aí? O que o senhor faz?- ela pergunta olhando para mim enquanto bebo o café.
-Eu sou escritor.
-E que tipo de histórias o senhor escreve?- seu olhar direto nos meus olhos faz me parecer que ela já sabe as respostas às suas próprias perguntas. E isso começa a me deixar intimidado.
-Romances, contos, poesia.
-Espere aí. Então o senhor é o escritor Albert Whitman?
-Sou sim.
-Então moro ao lado de um famoso?
-É... Um pouco. Você gosta de ler?
O barulho do telefone a impede de me responder.
-Um segundo. - ela se dirige ao aparelho para atendê-lo. O que ela fala ao telefone é incompreensível para mim. É muito rápido e num idioma que desconheço. Parece holandês ou talvez alemão.
A conversa se prolonga. Sinto que estou sobrando. Deixo a xícara sobre o balcão e aceno para ela que estou indo embora. Ela acena de volta pra mim e continua ao telefone.

VOCÊ ESTÁ LENDO
A Estrangeira
RomanceUma misteriosa jovem transforma a vida de um escritor mais velho que acabou de perder a esposa.