Capítulo 5

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Toco a campainha dela. Toco de novo. Nada. Toco a terceira vez. Desisto. Ela não deve estar em casa.

Quando estou descendo o primeiro degrau, ouço a porta se abrir. Me viro e olho. Ali está ela. Com roupas de dormir. O rosto, inchado, é de quem acabou de acordar. O cabelo bagun­çado também. Mesmo assim ela continua linda.

-Oi. – a voz mostra claramente que ela ainda está sonolenta

Eu dou meia volta. - Oi! Bom dia! É... Lembra-se de mim? Sou seu vizinho aqui do lado...

-Sim. O que o senhor quer?- ela balança a cabeça mostrando impaciência pela minha demora em chegar ao ponto.

-Então. Eu recebi estas correspondências e acho que são suas. –estendo as cartas para ela- O carteiro deve ter se enga­nado. Não sei quanto aqui, mas de onde eu vim isso era terrivelmente comum... - desando a falar.

-Ok. Obrigada. - ela estende a mão e toma de mim aqueles papéis de uma forma um pouco abrupta. E fecha a porta.

-De nada- eu respondo à porta. Viro-me e em passos lentos volto para minha casa.

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Aqui estou eu novamente tentando escrever. A paralisia em que me vejo neste momento é interrompida quando começo a cantarolar a canção que está na minha cabeça:

-I'm your pain/when you can't feel, /Sad but true...

É o refrão da música que estava tocando na ultima festa que ela deu. Lembro com saudade das festas que ela dava. Da agitação, do som alto, de vê-la lá. Não é possível que eu es­teja sentindo isso. Será que eu realmente estou enlouque­cendo?

Tento ignorar esses pensamentos e me concentrar no que estou fazendo. Não consigo.

À noite parece que meu desejo involuntário se realiza. Nova­mente há movimentação na casa ao lado. Som alto, jovens, perturbação. Tudo está lá de novo. E desta vez me sinto satis­feito. É como se minha fonte de inspiração estivesse de volta. Não compreendo, mas gosto.

Subo ao quarto e espio pela janela. Pego o binóculo e fico olhando.

Deito sorrindo. Por incrível que pareça, estou gostando do som alto. Saber que ela está lá e bem me tranquiliza. É uma boa noite de sono para mim.

Na manhã seguinte sigo a rotina que desenvolvi aqui em Cape May: café quente na varanda, jornal e a expectativa de ver Heidi.

Vou olhar a caixa de correio. Dessa vez, verifico os destinatá­rios das correspondências antes de levá-las para casa. E, nova­mente há cartas endereçadas a ela.

Dentro de casa, bebendo mais um pouco de café, separo cuidado­samente os papéis com o nome dela dos meus. Dirijo-me resolutamente à casa dela. Dessa vez não vou bancar o palhaço, penso.

Toco a campainha.

-Bom dia- eu digo secamente.

-Bom dia- ela responde. Dessa vez está diferente, radiante. Talvez porque esteja bem acordada. Ou talvez esteja feliz por algum motivo. Já trocou as roupas de dormir pelas suas habitu­ais: shorts e regata preta.

-Desculpe te incomodar, mas novamente o carteiro errou e colocou sua correspondência na minha caixa. Aqui está.

-Muito obrigada. - ela estende a mão e as pega.

-Tenha um bom dia. - viro-me para ir embora e, ao começar a descer a escadinha da varanda ouço a voz dela:

-Senhor Whitman!- eu me volto, surpreso.

-Sim? Algum problema?

-Na verdade sim. Acho que devo desculpas ao senhor pelo modo como o tenho tratado.

Fico mudo. Sinceramente, não sei o que dizer. Não esperava isso dela. Fico parado esperando o que ela dirá a seguir.

-O senhor parece ser um cara legal e as únicas vezes que tive­mos contato acho que eu fui um pouco rude.

-Ah... - balbucio- Acho que também tenho de te pedir descul­pas- é a única coisa que me vem à mente no momento. - Tam­bém fui um pouco indelicado com você.

-O senhor quer entrar um pouco? – novamente ela me pega de surpresa.

-Ah... - e novamente balbucio- não sei... O seu namorado pode não gostar...

-Não. Tudo bem. Entra aí. - ela abre mais a porta e eu entro.

A boa arrumação e o silêncio me impediriam de reconhecer a casa. Não parece o mesmo lugar onde rolaram aquelas festas com jovens alcoolizados.

Ela joga as correspondências sobre a mesa de centro e senta-se no sofá.

-Pode sentar senhor Whitman- ela aponta a poltrona que fica à frente do sofá. Eu sento-me ali e passo a observá-la en­quanto ela confere rapidamente as correspondências.

Depois se dirige ao balcão da cozinha.

-O senhor quer alguma coisa? Um café?

Impulsivamente a sigo e aceito a oferta, intrigado em ver esse outro lado dela, aparentemente doce e afável.

-E aí? O que o senhor faz?- ela pergunta olhando para mim enquanto bebo o café.

-Eu sou escritor.

-E que tipo de histórias o senhor escreve?- seu olhar direto nos meus olhos faz me parecer que ela já sabe as respostas às suas próprias perguntas. E isso começa a me deixar intimi­dado.

-Romances, contos, poesia.

-Espere aí. Então o senhor é o escritor Albert Whitman?

-Sou sim.

-Então moro ao lado de um famoso?

-É... Um pouco. Você gosta de ler?

O barulho do telefone a impede de me responder.

-Um segundo. - ela se dirige ao aparelho para atendê-lo. O que ela fala ao telefone é incompreensível para mim. É muito rápido e num idioma que desconheço. Parece holandês ou talvez alemão.

A conversa se prolonga. Sinto que estou sobrando. Deixo a xícara sobre o balcão e aceno para ela que estou indo embora. Ela acena de volta pra mim e continua ao telefone.


A EstrangeiraOnde histórias criam vida. Descubra agora